VERBO SER
GERÚNDIO: SENDO
PARTICÍPIO: SIDO
VERBO ESTAR
GERÚNDIO: estando
PARTICÍPIO: estado
VERBO HAVER
GERÚNDIO: havendo
PARTICÍPIO: havido
OBJETIVO: DISPONIBILIZAR OBRAS DA LITERATURA, TEXTOS E TAREFAS SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA .
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Reportagem e Editorial
Reportagem
A reportagem é um dos gêneros mais nobres em jornalismo. É na reportagem que se evidenciam os grandes jornalistas. Além disso, a reportagem permite uma maior criatividade, estado ligada à subjetividade de quem a escreve. No fundo, trata-se do “contar de uma história”, segundo um ângulo escolhido pelo jornalista que a investigou. Feita a investigação, o jornalista parte dos fatos e constrói uma história integrando citações dos personagens que nela participam e/ou citações de documentos importantes para a validação e comprovação dos fatos apresentados.
Por isso, na escrita, deve ser usado o estilo direto, a maior parte das vezes no tempo presente, havendo referência a episódios concretos, havendo imagens, pormenores e expressões. Tudo isto, é contado de acordo com a subjetividade de quem conta, porém, a narrativa terá de ser objetiva e verídica no que respeita aos fatos e aos acontecimentos.
Tal como a entrevista, uma reportagem também deve ser preparada. Até porque, uma boa e grande reportagem envolve investigação, seleção das melhores fontes, leitura de documentos, conversa com os diferentes protagonistas ou personagens envolvidos na história e exige que se capte o ambiente onde decorrem ou decorreram os acontecimentos.
Logo:
Investigação
Escolha do ângulo/tema
Recurso ao centro de documentação/Internet, etc.
Exame dos documentos, Definição de um roteiro com os locais e as pessoas a contactar
Quanto à estrutura ou corpo da reportagem, convém frisar que esta deve ter uma boa abertura, ou seja, deve começar de um modo que prenda a atenção do leitor. Portanto, compete ao jornalista selecionar para o início algo que chame de imediato a atenção e que desperte a curiosidade para que o leitor queria ler e perceber o resto da história. É por esta razão, que na gíria jornalística, o início das reportagem é designado por “ataque”.
Exemplo:
Editorial
Editoriais são textos de um jornal em que o conteúdo expressa a opinião da empresa, da direção ou da equipe de redação, sem a obrigação de ter alguma imparcialidade ou objetividade. Geralmente, grandes jornais reservam um espaço predeterminado para os editoriais em duas ou mais colunas logo nas primeiras páginas internas. Os boxes (quadros) dos editoriais são normalmente demarcados com uma borda ou tipografia diferente para marcar claramente que aquele texto é opinativo, e não informativo. Editoriais maiores e mais analíticos são chamados de artigos de fundo.
O profissional da redação encarregado de redigir os editoriais é chamado de editorialista.
Na chamada "grande imprensa", os editoriais são apócrifos — isto é, nunca são assinados por ninguém em particular.
A opinião de um veículo, entretanto, não é expressada exclusivamente nos editoriais, mas também na forma como organiza os assuntos publicados, pela qualidade e quantidade que atribui a cada um (no processo de Edição jornalística). Em casos em que as próprias matérias do jornal são imbuídas de uma carga opinativa forte, mas não chegam a ser separados como editoriais, diz-se que é Jornalismo de Opinião.
Exemplo:
O exemplo de São Paulo
Quando o tema é a segurança pública, a cidade de São Paulo ainda é lembrada por episódios sangrentos, como o massacre do Carandiru, em 1992, pelas freqüentes chacinas promovidas por policiais na periferia e pela rebelião do Primeiro Comando da Capital (PCC), em 2006. São traumas estigmatizantes, que tiveram repercussão nacional e que vêm tendo o contraponto de ações positivas, implementadas ao longo dos últimos anos e aos poucos reconhecidas em todo o país. A cidade dos massacres faz prosperar, desde o início da década, uma série de iniciativas adotadas não só pela capital, mas por todo o Estado, no sentido de reduzir a violência e a criminalidade.
São políticas de segurança implementadas pelo governo do Estado, com a participação das prefeituras, de ONGs, de estudiosos e das comunidades, que podem inspirar atitudes semelhantes em outros Estados. Estados com problemas crônicos de segurança e soluções sempre adiadas com a desculpa da falta de recursos deveriam, não como simples cópia, mas como referências adaptadas às suas realidades, implementar muitas das ações dos paulistas. Em uma década, São Paulo reduziu a grande maioria dos casos de violência, com destaque para os homicídios. Caíram também os índices de assaltos e furtos de automóveis, mesmo que em seis anos a frota em circulação no Estado tenha sido ampliada em cerca de 2,4 milhões de veículos.
A melhoria no perfil da segurança fez-se, sim, com mais investimentos financeiros do Estado. O conjunto de iniciativas revela que os ganhos são resultantes da sinergia entre as polícias civil e militar e da vontade de superar traumas que vinham marcando as forças de segurança paulistas como ineficientes e violentas. O Estado contratou e pôs mais 9 mil policiais nas ruas, informatizou e agilizou a circulação de informações, estimulou iniciativas comunitárias, construiu presídios e tirou das operações ostensivas o caráter apenas de reprimir e intimidar.
Também deve ser inspirador outro mérito dos programas. Implementados desde o início da década, os projetos passaram de um governo para outro sem que se repetisse a lamentável prática de um sucessor depreciar e descartar idéias do antecessor. Tanto que os pontos centrais das ações são mantidos até hoje. É evidente que medidas de combate à violência devem levar em conta o contexto social e que não se deve ver o Estado como o melhor dos mundos na área da segurança, até porque o confronto com o tráfico de drogas ainda não obteve o êxito esperado. O que importa é que, além das estatísticas, o sentimento de mudança está no cotidiano da população e nas reações das próprias comunidades ao que vem sendo feito. Os cidadãos confiam mais nas suas polícias. A recuperação da credibilidade e da autoridade de órgãos e quadros da segurança pode ser, em meio a tantos benefícios, o mais alentador resultado do que se faz em São Paulo.
A QUEDA
O índice de homicídios no Estado de São Paulo, de 35,7 mortes para cada 100 mil habitantes em 1999, caiu hoje para 11,5. (Zero Hora, edição on-line)
A reportagem é um dos gêneros mais nobres em jornalismo. É na reportagem que se evidenciam os grandes jornalistas. Além disso, a reportagem permite uma maior criatividade, estado ligada à subjetividade de quem a escreve. No fundo, trata-se do “contar de uma história”, segundo um ângulo escolhido pelo jornalista que a investigou. Feita a investigação, o jornalista parte dos fatos e constrói uma história integrando citações dos personagens que nela participam e/ou citações de documentos importantes para a validação e comprovação dos fatos apresentados.
Por isso, na escrita, deve ser usado o estilo direto, a maior parte das vezes no tempo presente, havendo referência a episódios concretos, havendo imagens, pormenores e expressões. Tudo isto, é contado de acordo com a subjetividade de quem conta, porém, a narrativa terá de ser objetiva e verídica no que respeita aos fatos e aos acontecimentos.
Tal como a entrevista, uma reportagem também deve ser preparada. Até porque, uma boa e grande reportagem envolve investigação, seleção das melhores fontes, leitura de documentos, conversa com os diferentes protagonistas ou personagens envolvidos na história e exige que se capte o ambiente onde decorrem ou decorreram os acontecimentos.
Logo:
Investigação
Escolha do ângulo/tema
Recurso ao centro de documentação/Internet, etc.
Exame dos documentos, Definição de um roteiro com os locais e as pessoas a contactar
Quanto à estrutura ou corpo da reportagem, convém frisar que esta deve ter uma boa abertura, ou seja, deve começar de um modo que prenda a atenção do leitor. Portanto, compete ao jornalista selecionar para o início algo que chame de imediato a atenção e que desperte a curiosidade para que o leitor queria ler e perceber o resto da história. É por esta razão, que na gíria jornalística, o início das reportagem é designado por “ataque”.
Exemplo:
Editorial
Editoriais são textos de um jornal em que o conteúdo expressa a opinião da empresa, da direção ou da equipe de redação, sem a obrigação de ter alguma imparcialidade ou objetividade. Geralmente, grandes jornais reservam um espaço predeterminado para os editoriais em duas ou mais colunas logo nas primeiras páginas internas. Os boxes (quadros) dos editoriais são normalmente demarcados com uma borda ou tipografia diferente para marcar claramente que aquele texto é opinativo, e não informativo. Editoriais maiores e mais analíticos são chamados de artigos de fundo.
O profissional da redação encarregado de redigir os editoriais é chamado de editorialista.
Na chamada "grande imprensa", os editoriais são apócrifos — isto é, nunca são assinados por ninguém em particular.
A opinião de um veículo, entretanto, não é expressada exclusivamente nos editoriais, mas também na forma como organiza os assuntos publicados, pela qualidade e quantidade que atribui a cada um (no processo de Edição jornalística). Em casos em que as próprias matérias do jornal são imbuídas de uma carga opinativa forte, mas não chegam a ser separados como editoriais, diz-se que é Jornalismo de Opinião.
Exemplo:
O exemplo de São Paulo
Quando o tema é a segurança pública, a cidade de São Paulo ainda é lembrada por episódios sangrentos, como o massacre do Carandiru, em 1992, pelas freqüentes chacinas promovidas por policiais na periferia e pela rebelião do Primeiro Comando da Capital (PCC), em 2006. São traumas estigmatizantes, que tiveram repercussão nacional e que vêm tendo o contraponto de ações positivas, implementadas ao longo dos últimos anos e aos poucos reconhecidas em todo o país. A cidade dos massacres faz prosperar, desde o início da década, uma série de iniciativas adotadas não só pela capital, mas por todo o Estado, no sentido de reduzir a violência e a criminalidade.
São políticas de segurança implementadas pelo governo do Estado, com a participação das prefeituras, de ONGs, de estudiosos e das comunidades, que podem inspirar atitudes semelhantes em outros Estados. Estados com problemas crônicos de segurança e soluções sempre adiadas com a desculpa da falta de recursos deveriam, não como simples cópia, mas como referências adaptadas às suas realidades, implementar muitas das ações dos paulistas. Em uma década, São Paulo reduziu a grande maioria dos casos de violência, com destaque para os homicídios. Caíram também os índices de assaltos e furtos de automóveis, mesmo que em seis anos a frota em circulação no Estado tenha sido ampliada em cerca de 2,4 milhões de veículos.
A melhoria no perfil da segurança fez-se, sim, com mais investimentos financeiros do Estado. O conjunto de iniciativas revela que os ganhos são resultantes da sinergia entre as polícias civil e militar e da vontade de superar traumas que vinham marcando as forças de segurança paulistas como ineficientes e violentas. O Estado contratou e pôs mais 9 mil policiais nas ruas, informatizou e agilizou a circulação de informações, estimulou iniciativas comunitárias, construiu presídios e tirou das operações ostensivas o caráter apenas de reprimir e intimidar.
Também deve ser inspirador outro mérito dos programas. Implementados desde o início da década, os projetos passaram de um governo para outro sem que se repetisse a lamentável prática de um sucessor depreciar e descartar idéias do antecessor. Tanto que os pontos centrais das ações são mantidos até hoje. É evidente que medidas de combate à violência devem levar em conta o contexto social e que não se deve ver o Estado como o melhor dos mundos na área da segurança, até porque o confronto com o tráfico de drogas ainda não obteve o êxito esperado. O que importa é que, além das estatísticas, o sentimento de mudança está no cotidiano da população e nas reações das próprias comunidades ao que vem sendo feito. Os cidadãos confiam mais nas suas polícias. A recuperação da credibilidade e da autoridade de órgãos e quadros da segurança pode ser, em meio a tantos benefícios, o mais alentador resultado do que se faz em São Paulo.
A QUEDA
O índice de homicídios no Estado de São Paulo, de 35,7 mortes para cada 100 mil habitantes em 1999, caiu hoje para 11,5. (Zero Hora, edição on-line)
Conto
Características do conto
O conto tem origem desconhecida e remonta aos primórdios da própria arte literária. Segundo Massaud Moisés, alguns exemplares podem ser localizados antes do nascimento de Cristo, como "O Naufrágio de Simônides" de Fedro e "A Matrona de Éfeso" de Petrônio na Antiguidade Clássica.
No Século XIX o conto se distancia da novela e do romance adquirindo espaço próprio. Grandes contistas surgem no mundo inteiro: Edgar Allan Poe nos EUA, Maupassant na França, Eça de Queirós em Portugal e Machado de Assis no Brasil.
Na estrutura do conto há um só drama, um só conflito. Rejeita as digressões e as extrapolações, pois busca um só objetivo, um só efeito. Com isso, a dimensão do conto é reduzida: o autor usa a contração, isto é, a economia dos meios narrativos. Essa preferência pela concisão e a concentração dos efeitos torna o conto uma narrativa curta. Uma característica importante é que ele termina justamente no clímax, ao contrário do romance em que o clímax aparece em algum ponto antes do final.
O espaço físico da narrativa normalmente não varia muito devido à própria dimensão do conto. A variação temporal não importa: o passado e o futuro do fato narrado são irrelevantes. Caso seja necessário, o contista condensa o passado e o expõe ao leitor em poucas linhas.
Devido a essas características (pequena extensão e pouca variação espacial e temporal) o número de personagens que participam do conto é pequeno. Também não há espaço para personagens complexas: a ênfase é colocada em suas ações e não em seu caráter.
É claro que essas características do conto podem variar de uma época para outra, mas essas variações ocorrem em maior ou menor grau constituindo sempre uma estrutura básica que configura o gênero.
Bibliografia:
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1987.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
Exemplo:
VENHA VER O PÔR DO SOL, Lygia Fagundes Telles
ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
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Lygia Fagundes Telles In:.Antes do Baile Verde.
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O conto tem origem desconhecida e remonta aos primórdios da própria arte literária. Segundo Massaud Moisés, alguns exemplares podem ser localizados antes do nascimento de Cristo, como "O Naufrágio de Simônides" de Fedro e "A Matrona de Éfeso" de Petrônio na Antiguidade Clássica.
No Século XIX o conto se distancia da novela e do romance adquirindo espaço próprio. Grandes contistas surgem no mundo inteiro: Edgar Allan Poe nos EUA, Maupassant na França, Eça de Queirós em Portugal e Machado de Assis no Brasil.
Na estrutura do conto há um só drama, um só conflito. Rejeita as digressões e as extrapolações, pois busca um só objetivo, um só efeito. Com isso, a dimensão do conto é reduzida: o autor usa a contração, isto é, a economia dos meios narrativos. Essa preferência pela concisão e a concentração dos efeitos torna o conto uma narrativa curta. Uma característica importante é que ele termina justamente no clímax, ao contrário do romance em que o clímax aparece em algum ponto antes do final.
O espaço físico da narrativa normalmente não varia muito devido à própria dimensão do conto. A variação temporal não importa: o passado e o futuro do fato narrado são irrelevantes. Caso seja necessário, o contista condensa o passado e o expõe ao leitor em poucas linhas.
Devido a essas características (pequena extensão e pouca variação espacial e temporal) o número de personagens que participam do conto é pequeno. Também não há espaço para personagens complexas: a ênfase é colocada em suas ações e não em seu caráter.
É claro que essas características do conto podem variar de uma época para outra, mas essas variações ocorrem em maior ou menor grau constituindo sempre uma estrutura básica que configura o gênero.
Bibliografia:
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1987.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
Exemplo:
VENHA VER O PÔR DO SOL, Lygia Fagundes Telles
ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
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Lygia Fagundes Telles In:.Antes do Baile Verde.
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Apólogo, Fábula e Alegoria
APÓLOGO
Género alegórico que consiste numa narrativa que ilustra uma lição de sabedoria, utilizando personagens de índole diversa, reais ou fantásticas, animadas ou inanimadas. Servem de exemplos clássicos os apólogos de Fedro e Esopo. Confunde-se facilmente com a fábula, embora esta se concentre mais em relações nais que envolvem coisas e animais, e com a parábola, que se ocupa mais de histórias entre homens e figuras alegóricas com sentido religioso. Hegel considera-a uma forma de parábola: “Pode-se considerar o apólogo como uma parábola que não utiliza apenas, e a título de analogia, um caso particular a fim de tornar perceptível uma significação geral de tal modo que ela fica realmente contida no caso particular que, no entanto, só é narrado a título de exemplo especial.” (Estética, II, 2c, Guimarães Editores, Lisboa, 1993, p.223).
No século XVII, em Espanha, fizeram escola os apólogos de Los Sueños, de Quevedo, e Coloquio de los perros, de Cervantes. Ficaram célebres entre nós, os Apólogos Dialogais (1712), de D. Francisco Manuel de Melo. Como todos os apólogos, têm por fim interferir de alguma forma com o comportamento social e moral dos homens, modificando-o pelo exemplo, se possível. No século XIX, registam-se os Apólogos (1820), de João Vicente Pimentel Maldonado, poeta menor do arcadismo, inspirado nas fábulas de La Fontaine, e “Um Apólogo”, de Machado de Assis (incluído na colectânea Várias Histórias, 1896). Os Contos Tradicionais Portugueses, compilados por Teófilo Braga, são, na maior parte, verdadeiros apólogos.
Exemplo:
Um Apólogo (Machado de Assis)
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.
EM RESUMO:
O apólogo é uma narrativa que busca ilustrar lições de sabedoria ou ética, através do uso de personalidades de índole diversa, imaginárias ou reais, que podem ser tanto inanimadas como animadas.
Bem parecido com a fábula em sua estrutura, o apólogo é um tipo de narrativa que personifica os seres inanimados, transformando-os em personagens da história.
Diversos autores consideram que pode-se considerar o apólogo como uma parábola que não utiliza apenas, e a título de analogia, um caso particular a fim de tornar perceptível uma significação geral.
FÁBULA
Características das Fábulas
apresenta os elementos essenciais da narrativa;
a narrativa é curta, geralmente, um diálogo;
as personagens quase sempre são animais;
transmite um ensinamento;
no final da história, destaca-se uma moral.
Estrutura das Fábulas
Através das fábulas podemos fazer duas leituras independentes:
1. A Narrativa propriamente dita cuja estrutura narrativa sempre se repete:
Situação inicial
Obstáculo
Tentativa de solução
Resultado final
Moral
2. Moral - linguagem temática, dissertativa. Ela pode ser usada e analisada independentemente da fábula.
A fábula nos leva a dois mundos:
o imaginário, o narrativo, fantástico;
e o real, o dissertativo, temático.
Na verdade, a fábula é um “estudo sério sobre o comportamento humano”, a ética e a cidadania.
Exemplo:
O LEÃO E O RATINHO (Monteiro Lobato)
Ao sair do buraco viu-se o ratinho estre as patas do leão. Estacou, de pêlos em pé, paralisado pelo terror. O leão, porém, não lhe fez mal nenhum.
- Segue em paz, ratinho; não tenhas medo do teu rei.
Dias depois o leão caiu numa rede.. Urrou desesperadamente, de bateu-se, mas quanto mais se agitava mais preso no laço ficava.
Atraído pelos urros, apareceu o ratinho.
- Amor com amor se paga – disse ele lá consigo e pôs-se a roer as cordas. Um instante conseguir romper uma das malhas. E como a rede era das tais que rompida a primeira malha e fugir.
Mais vale paciência pequenina
Do que arrancos de leão.
Monteiro Lobato. Fábulas, 1994.
ALEGORIA
Uma alegoria é uma representação tal que transmite um outro siginificado em adição ao significado literal do texto. Em outras palavras, é uma coisa que é dita para dar a noção de outra, normalmente por meio d’alguma ilação moral.
É bastante fácil confundir a alegoria com a metáfora, pois elas têm muitos pontos em comum.
Para melhor entender o que seja uma alegoria, podemos citar alguns exemplos.
O mais conhecido exemplo de alegoria é provável que seja O Mito da Caverna, de Platão. O autor referia-se aos mitos e superstições de seus contemporâneos, comportamento que ficou representado pela alegoria da caverna em que as pessoas ficariam presas e imóveis, sem jamais poder contemplar diretamente o que acontecia fora dali.
A Bíblia está repleta de alegorias, o próprio Cristo ensinava por meio delas. Mas antes mesmo do Novo Testamento encontramos muitas alegorias, e muitos talvez considerem uma das mais belas a que faz a comparação da história de Israel ao crescimento de uma vinha no Salmo 80.
Os ditados populares são alegorias contextualizadas:
“Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.”
“Mais vale um pássaro na mão que dois voando.”
“Casa de ferreiro, espeto de pau.”
Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal” (allos, “outro”, e agoreuein, “falar em público”).
Género alegórico que consiste numa narrativa que ilustra uma lição de sabedoria, utilizando personagens de índole diversa, reais ou fantásticas, animadas ou inanimadas. Servem de exemplos clássicos os apólogos de Fedro e Esopo. Confunde-se facilmente com a fábula, embora esta se concentre mais em relações nais que envolvem coisas e animais, e com a parábola, que se ocupa mais de histórias entre homens e figuras alegóricas com sentido religioso. Hegel considera-a uma forma de parábola: “Pode-se considerar o apólogo como uma parábola que não utiliza apenas, e a título de analogia, um caso particular a fim de tornar perceptível uma significação geral de tal modo que ela fica realmente contida no caso particular que, no entanto, só é narrado a título de exemplo especial.” (Estética, II, 2c, Guimarães Editores, Lisboa, 1993, p.223).
No século XVII, em Espanha, fizeram escola os apólogos de Los Sueños, de Quevedo, e Coloquio de los perros, de Cervantes. Ficaram célebres entre nós, os Apólogos Dialogais (1712), de D. Francisco Manuel de Melo. Como todos os apólogos, têm por fim interferir de alguma forma com o comportamento social e moral dos homens, modificando-o pelo exemplo, se possível. No século XIX, registam-se os Apólogos (1820), de João Vicente Pimentel Maldonado, poeta menor do arcadismo, inspirado nas fábulas de La Fontaine, e “Um Apólogo”, de Machado de Assis (incluído na colectânea Várias Histórias, 1896). Os Contos Tradicionais Portugueses, compilados por Teófilo Braga, são, na maior parte, verdadeiros apólogos.
Exemplo:
Um Apólogo (Machado de Assis)
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.
EM RESUMO:
O apólogo é uma narrativa que busca ilustrar lições de sabedoria ou ética, através do uso de personalidades de índole diversa, imaginárias ou reais, que podem ser tanto inanimadas como animadas.
Bem parecido com a fábula em sua estrutura, o apólogo é um tipo de narrativa que personifica os seres inanimados, transformando-os em personagens da história.
Diversos autores consideram que pode-se considerar o apólogo como uma parábola que não utiliza apenas, e a título de analogia, um caso particular a fim de tornar perceptível uma significação geral.
FÁBULA
Características das Fábulas
apresenta os elementos essenciais da narrativa;
a narrativa é curta, geralmente, um diálogo;
as personagens quase sempre são animais;
transmite um ensinamento;
no final da história, destaca-se uma moral.
Estrutura das Fábulas
Através das fábulas podemos fazer duas leituras independentes:
1. A Narrativa propriamente dita cuja estrutura narrativa sempre se repete:
Situação inicial
Obstáculo
Tentativa de solução
Resultado final
Moral
2. Moral - linguagem temática, dissertativa. Ela pode ser usada e analisada independentemente da fábula.
A fábula nos leva a dois mundos:
o imaginário, o narrativo, fantástico;
e o real, o dissertativo, temático.
Na verdade, a fábula é um “estudo sério sobre o comportamento humano”, a ética e a cidadania.
Exemplo:
O LEÃO E O RATINHO (Monteiro Lobato)
Ao sair do buraco viu-se o ratinho estre as patas do leão. Estacou, de pêlos em pé, paralisado pelo terror. O leão, porém, não lhe fez mal nenhum.
- Segue em paz, ratinho; não tenhas medo do teu rei.
Dias depois o leão caiu numa rede.. Urrou desesperadamente, de bateu-se, mas quanto mais se agitava mais preso no laço ficava.
Atraído pelos urros, apareceu o ratinho.
- Amor com amor se paga – disse ele lá consigo e pôs-se a roer as cordas. Um instante conseguir romper uma das malhas. E como a rede era das tais que rompida a primeira malha e fugir.
Mais vale paciência pequenina
Do que arrancos de leão.
Monteiro Lobato. Fábulas, 1994.
ALEGORIA
Uma alegoria é uma representação tal que transmite um outro siginificado em adição ao significado literal do texto. Em outras palavras, é uma coisa que é dita para dar a noção de outra, normalmente por meio d’alguma ilação moral.
É bastante fácil confundir a alegoria com a metáfora, pois elas têm muitos pontos em comum.
Para melhor entender o que seja uma alegoria, podemos citar alguns exemplos.
O mais conhecido exemplo de alegoria é provável que seja O Mito da Caverna, de Platão. O autor referia-se aos mitos e superstições de seus contemporâneos, comportamento que ficou representado pela alegoria da caverna em que as pessoas ficariam presas e imóveis, sem jamais poder contemplar diretamente o que acontecia fora dali.
A Bíblia está repleta de alegorias, o próprio Cristo ensinava por meio delas. Mas antes mesmo do Novo Testamento encontramos muitas alegorias, e muitos talvez considerem uma das mais belas a que faz a comparação da história de Israel ao crescimento de uma vinha no Salmo 80.
Os ditados populares são alegorias contextualizadas:
“Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.”
“Mais vale um pássaro na mão que dois voando.”
“Casa de ferreiro, espeto de pau.”
Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal” (allos, “outro”, e agoreuein, “falar em público”).
Carta do Leitor
Você já observou que nos jornais e revistas há um espaço reservado para que a opinião dos leitores seja publicada?
Estamos falando das cartas dos leitores, as quais mostram opiniões e sugestões; debatem os argumentos levantados nos artigos e fazem críticas a respeito; trazem perguntas, reflexões, elogios, incentivos, etc.
Para o leitor é o meio de expor seu ponto de vista em relação ao assunto lido, para o veículo de informação é uma arma publicitária para saber o que está agradando a opinião pública.
Não há regras estabelecidas para se fazer uma carta no estilo “carta do leitor”, a não ser as que já são preconizadas, ou seja, recomendadas ao escrevermos a alguém: especifique o assunto e seja breve; trace previamente o objetivo da carta (opinar, sugerir, debater); escreva em uma linguagem clara, precisa e nunca faça uso de palavras de baixo calão, pois sua carta não será publicada!
O objetivo do leitor ao escrever uma carta para um jornal da cidade ou uma revista de circulação nacional é tornar pública sua ideia e se sentir parte da informação. A carta do leitor é tão importante que pode ser fonte para uma nova notícia, uma vez que ao expor suas considerações a respeito de um assunto, o destinatário pode acrescentar outros fatos igualmente interessantes que estejam acontecendo e possam ser abordados!
Deve-se ter muito cuidado ao redigir uma carta, pois será lida por muitas pessoas. Por isso, revise o texto e observe com atenção se há clareza nas frases, se os períodos não estão muito longos e se não há repetições de ideias ou palavras, se há erros de pontuação e grafia.
Importante: Não se preocupe apenas em dizer o que pensa, o que acha, mas dê seu ponto de vista sempre explicando com muito cautela e se expor fatos, tenha certeza que são verdadeiros.
Por Sabrina Vilarinho
Graduada em Letras
Equipe Brasil Escola
Carta Pessoal
Escrevemos uma carta pessoal quando queremos nos comunicar com alguém próximo de nós, como amigos ou familiares.
As características desse tipo de gênero textual são simples, ou seja, não possuem muitas regras e estrutura para serem seguidas. Vejamos:
• O assunto é livre, geralmente de ordem íntima, sentimental.
• O tamanho varia entre médio e grande. Quando é pequeno, é considerado bilhete e não carta.
• O tipo de linguagem acompanhará o grau de intimidade entre remetente e destinatário. Portanto, cabe ao escritor saber se pode usar termos coloquiais ou mesmo gírias.
• Quanto à estrutura, a carta pessoal deve seguir a sequência: 1. local e data escritos à esquerda, 2. vocativo, 3. corpo do texto e 4. despedida e assinatura.
Como o grau de intimidade é variável, o vocativo, por consequência, também: Minha querida, Amado meu, Querido Amigo Fulano, Fulaninho, Caro Senhor, Estimado cliente, etc. A pontuação após o vocativo pode ser vírgula ou dois-pontos.
Assim também é em relação à despedida, a qual pode variar entre Atenciosamente, Cordialmente, etc. até Adeus, Saudades, Até em breve, etc.
Quanto à assinatura, pode ser desde só o primeiro nome até o apelido, dependendo da situação.
Caso se esqueça de dizer algo importante e já tenha finalizado a carta é só acrescentar a abreviação latina P.S (post scriptum) ou Obs. (observação).
A carta pessoal geralmente é entregue em mãos ou enviada pelo correio, pois é manuscrita!
Curiosidade sobre P.S: essa sigla é originada do verbo latino “post scribere” que significa “escrever depois”!
(http://www.brasilescola.com/redacao/carta-pessoal.htm)
As características desse tipo de gênero textual são simples, ou seja, não possuem muitas regras e estrutura para serem seguidas. Vejamos:
• O assunto é livre, geralmente de ordem íntima, sentimental.
• O tamanho varia entre médio e grande. Quando é pequeno, é considerado bilhete e não carta.
• O tipo de linguagem acompanhará o grau de intimidade entre remetente e destinatário. Portanto, cabe ao escritor saber se pode usar termos coloquiais ou mesmo gírias.
• Quanto à estrutura, a carta pessoal deve seguir a sequência: 1. local e data escritos à esquerda, 2. vocativo, 3. corpo do texto e 4. despedida e assinatura.
Como o grau de intimidade é variável, o vocativo, por consequência, também: Minha querida, Amado meu, Querido Amigo Fulano, Fulaninho, Caro Senhor, Estimado cliente, etc. A pontuação após o vocativo pode ser vírgula ou dois-pontos.
Assim também é em relação à despedida, a qual pode variar entre Atenciosamente, Cordialmente, etc. até Adeus, Saudades, Até em breve, etc.
Quanto à assinatura, pode ser desde só o primeiro nome até o apelido, dependendo da situação.
Caso se esqueça de dizer algo importante e já tenha finalizado a carta é só acrescentar a abreviação latina P.S (post scriptum) ou Obs. (observação).
A carta pessoal geralmente é entregue em mãos ou enviada pelo correio, pois é manuscrita!
Curiosidade sobre P.S: essa sigla é originada do verbo latino “post scribere” que significa “escrever depois”!
(http://www.brasilescola.com/redacao/carta-pessoal.htm)
COMO FAZER UM RESUMO?
Resumo é uma síntese das ideias, fatos e argumentos contidos num texto. Para fazê-lo, você deverá empregar suas próprias palavras, evitando, na medida do possível, fazer cópias do texto original.
Etapas:
1. ler o texto sem interrupções para ter uma noção geral do que o autor pretende expressar;
2. reler, de preferência, o primeiro e último parágrafo, para descobrir a ideia central do texto. Sublinhe o que você achar mais importante;
3. ler, com bastante atenção, parágrafo por parágrafo, procurando a ideia básica de cada um. Escreva com suas próprias palavras o que você achou fundamental, tentando eliminar os adjetivos e outras expressões que julgar desnecessárias para a compreensão global do texto;
4. redigir o resumo a partir das frases que você escreveu sobre cada parágrafo. Procure relacionar as ideias, não fazendo uma simples enumeração.
Etapas:
1. ler o texto sem interrupções para ter uma noção geral do que o autor pretende expressar;
2. reler, de preferência, o primeiro e último parágrafo, para descobrir a ideia central do texto. Sublinhe o que você achar mais importante;
3. ler, com bastante atenção, parágrafo por parágrafo, procurando a ideia básica de cada um. Escreva com suas próprias palavras o que você achou fundamental, tentando eliminar os adjetivos e outras expressões que julgar desnecessárias para a compreensão global do texto;
4. redigir o resumo a partir das frases que você escreveu sobre cada parágrafo. Procure relacionar as ideias, não fazendo uma simples enumeração.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
CRIAÇÃO DOS MEUS QUERIDOS
VOCÊ
O amor verdadeiro,
Eu nunca acreditei,
Mas sem perceber
Por você me apaixonei.
As pessoas me diziam,
Para não acreditar,
Mas pensando em você,
Não ouvia ninguém falar.
Você me fez acreditar em algo,
Que pra mim não existia,
Mas foi em você, que eu encontrei
A verdadeira alegria.
Eu sei que Deus existe
E a ele, eu vou agradecer,
Mas eu vou fazer de tudo
Pra esse amor prevalecer.
(Everton Rocha Lima – 2.º D)
QUERO VOCÊ PRA SEMPRE
Viver com você,
Faz um bem pra mim.
Só vou ser feliz,
Se você estiver aqui.
Quando estou com você,
Esqueço tudo,
Esqueço o mundo,
Sinto prazer.
Meu amor é profundo,
Você está confuso
E não consigo entender,
Não quero te fazer sofrer.
Quero palavra clara,
Sente minha alma,
Que sempre te acalma
E te faz delirar.
Com seu encanto
Me fez te amar tanto
Por isso, eu canto:
Te amo, te amo...
(Franciele Lacerda – 2.º D)
LEMBRANÇAS QUE ME SEGUEM
Caminho entre as sombras
Na melancolia do sonhar,
Sem saber, o que eu vou encontrar,
Onde tudo impulsiona-me a buscar...
Sigo então em paz,
Para os caminhos mais profundos,
A razão sobre o meu mundo,
Eu sei que um dia vou encontrar...
Tudo o que eu penso é buscar
O calor desse amor,
Nada me impede
E eu vou seguindo sem te olhar.
Não quero o seu beijo,
Se está no seu olhar
O caminhar dessa paixão,
Que me traz lembranças
Que me seguem todos os minutos
E segundos, que me fazem sorrir...
Reflexos que passam,
Sobre a mente mais confusa,
Sabendo que um dia,
Poderá te odiar.
Pois toda minha vida,
Se consiste em uma única coisa:
“Sua mera lembrança
E a vontade de amar”.
(Robert Berato – 2.º B)
TRAIÇÃO
A minha vida é uma derrota,
Não sei mais o que fazer,
Tudo acabou em minha volta,
Não tenho a quem recorrer.
Cada lágrima que foi derramada,
Com você não ter mais nada
E ainda abalada,
Pois estava tão apaixonada.
Suas palavras foram tão em vão,
Que no meu coração não quis partir
E minhas dores não me fazem sorrir
E no meu coração, só há solidão...
E quando penso que vou conseguir,
Você aparece e eu não consigo resistir,
Com suas mentiras, voltam a me iludir,
Mas afinal, o que você quer de mim?
Acho que nunca mais por ti, vou me apaixonar,
Meu ódio tornou-se mais um sentimento,
Às vezes, não gostaria de me magoar.
Adeus dor! Adeus solidão!
Nunca mais irei sofrer,
Por causa de uma paixão.
(Caroline – 2.º B)
FILÓSOFO DO AMOR
Um filósofo uma vez disse,
Que existem males que vem para o bem,
Mas ele esqueceu de citar,
Que existem bens que fazem o mal,
Pois um amor exagerado
Sempre vem acompanhado
De um homem irracional.
Aceitar os fatos, às vezes é difícil,
Fatos esses que surgiram, graças aos meus atos,
Porém não foi um erro de maldade,
Mas um erro de amor,
Um tipo de erro,
Que se transforma em dor.
Na imensidão do Universo,
Faço mais um verso,
Não imensidão do meu amor,
Te admiro com esplendor e furor.
Neste amor teve de tudo um pouco.
Agora que acabou,
E Meu peito está oco...
Na imensidão,
Sigo o meu caminho,
Eu sei, é triste, mas vou seguir sozinho...
Erros cometi, mas com eles aprendi,
Depois de você, não consigo mais sorrir,
E assim, não dá pra ser feliz,
Pois só penso em você.
(Flávio Gomes - 2.ºB)
CAMINHAR É PRECISO
Uma vida sem sentido,
Onde nada tem fluído,
Às vezes, acho melhor parar,
Mas sei que ainda consigo me reanimar.
Dependente do momento, minha vida para
E vejo que minha decisão, ainda não é clara
E paro pra pensar em tudo o que realizar,
Retomo a vontade de me levantar.
Vejo as coisas em minha volta,
Não percebo o meu chão,
Minha vida que dá voltas,
Me causando depressão.
Mas ainda me conforta
E abala o coração
E sinto uma sensação
Em levantar e sentir meus pés no chão.
Pois nada está perdido,
Ainda tenho emus objetivos,
Estou começando me reanimar,
Porque os meus objetivos, quero alcançar.
Então, agora,
Vou para a escola estudar,
Criar, imaginar,
Pois é disso, que vou precisar,
Assim realizar tudo
Que um dia pude sonhar.
(Larissa da Silva – 2.º B)
ELA
Por ela pego chuva ou sol,
Por ela perco o futebol,
Por ela aceito brincadeiras,
Só não troco-a pelo meu Palmeiras.
Caminho por ela no mundão,
Ela conseguiu tocar meu coração.
Sentimento involuntário,
Lutei pra não acontecer,
Mas agora estou mergulhado
E escrevo pra você.
Nos seus olhos me inspiro,
Eles são minha inspiração,
Sonhar com ela eu desejo
Dias e noites de emoção.
Duas vidas muito ligadas,
Muitos laços de carinho,
Várias coisas engraçadas,
Que fazem parte de nosso ninho.
Já falei demais e agora
Vou-me encaminhando,
Deixo meus versos aqui
E a poesia vou terminando.
(Henrique Martins de Lucca – 2.ºB)
BRASILEIRÃO
No campeonato brasileiro
Tem times de vários lugares
Do sul, do norte, do centro-oeste,
Mas também tem do sudeste e do nordeste.
Nele tem muita emoção:
De várias rivalidades
Com vários times
De vários lugares.
O futebol de mais rivalidade
É o futebol paulistano
Entre Corinthians e São Caetano
É de muita finalidade,
Mas também times do sul,
O famoso Grenal,
Entre o Grêmio e o Internacional,
Que é um clássico fenomenal.
E também subimos mais um pouco,
Não podemos deixar de falar do clássico atlético,
Que é lá em Curitiba
E também, temos o mineiro
Entre Atlético e Cruzeiro,
Que para o centro inteiro
E que ficam loucos, os mineiros.
Essa é a força do do futebol brasileiro.
(Guilherme - 2.ºB)
O amor verdadeiro,
Eu nunca acreditei,
Mas sem perceber
Por você me apaixonei.
As pessoas me diziam,
Para não acreditar,
Mas pensando em você,
Não ouvia ninguém falar.
Você me fez acreditar em algo,
Que pra mim não existia,
Mas foi em você, que eu encontrei
A verdadeira alegria.
Eu sei que Deus existe
E a ele, eu vou agradecer,
Mas eu vou fazer de tudo
Pra esse amor prevalecer.
(Everton Rocha Lima – 2.º D)
QUERO VOCÊ PRA SEMPRE
Viver com você,
Faz um bem pra mim.
Só vou ser feliz,
Se você estiver aqui.
Quando estou com você,
Esqueço tudo,
Esqueço o mundo,
Sinto prazer.
Meu amor é profundo,
Você está confuso
E não consigo entender,
Não quero te fazer sofrer.
Quero palavra clara,
Sente minha alma,
Que sempre te acalma
E te faz delirar.
Com seu encanto
Me fez te amar tanto
Por isso, eu canto:
Te amo, te amo...
(Franciele Lacerda – 2.º D)
LEMBRANÇAS QUE ME SEGUEM
Caminho entre as sombras
Na melancolia do sonhar,
Sem saber, o que eu vou encontrar,
Onde tudo impulsiona-me a buscar...
Sigo então em paz,
Para os caminhos mais profundos,
A razão sobre o meu mundo,
Eu sei que um dia vou encontrar...
Tudo o que eu penso é buscar
O calor desse amor,
Nada me impede
E eu vou seguindo sem te olhar.
Não quero o seu beijo,
Se está no seu olhar
O caminhar dessa paixão,
Que me traz lembranças
Que me seguem todos os minutos
E segundos, que me fazem sorrir...
Reflexos que passam,
Sobre a mente mais confusa,
Sabendo que um dia,
Poderá te odiar.
Pois toda minha vida,
Se consiste em uma única coisa:
“Sua mera lembrança
E a vontade de amar”.
(Robert Berato – 2.º B)
TRAIÇÃO
A minha vida é uma derrota,
Não sei mais o que fazer,
Tudo acabou em minha volta,
Não tenho a quem recorrer.
Cada lágrima que foi derramada,
Com você não ter mais nada
E ainda abalada,
Pois estava tão apaixonada.
Suas palavras foram tão em vão,
Que no meu coração não quis partir
E minhas dores não me fazem sorrir
E no meu coração, só há solidão...
E quando penso que vou conseguir,
Você aparece e eu não consigo resistir,
Com suas mentiras, voltam a me iludir,
Mas afinal, o que você quer de mim?
Acho que nunca mais por ti, vou me apaixonar,
Meu ódio tornou-se mais um sentimento,
Às vezes, não gostaria de me magoar.
Adeus dor! Adeus solidão!
Nunca mais irei sofrer,
Por causa de uma paixão.
(Caroline – 2.º B)
FILÓSOFO DO AMOR
Um filósofo uma vez disse,
Que existem males que vem para o bem,
Mas ele esqueceu de citar,
Que existem bens que fazem o mal,
Pois um amor exagerado
Sempre vem acompanhado
De um homem irracional.
Aceitar os fatos, às vezes é difícil,
Fatos esses que surgiram, graças aos meus atos,
Porém não foi um erro de maldade,
Mas um erro de amor,
Um tipo de erro,
Que se transforma em dor.
Na imensidão do Universo,
Faço mais um verso,
Não imensidão do meu amor,
Te admiro com esplendor e furor.
Neste amor teve de tudo um pouco.
Agora que acabou,
E Meu peito está oco...
Na imensidão,
Sigo o meu caminho,
Eu sei, é triste, mas vou seguir sozinho...
Erros cometi, mas com eles aprendi,
Depois de você, não consigo mais sorrir,
E assim, não dá pra ser feliz,
Pois só penso em você.
(Flávio Gomes - 2.ºB)
CAMINHAR É PRECISO
Uma vida sem sentido,
Onde nada tem fluído,
Às vezes, acho melhor parar,
Mas sei que ainda consigo me reanimar.
Dependente do momento, minha vida para
E vejo que minha decisão, ainda não é clara
E paro pra pensar em tudo o que realizar,
Retomo a vontade de me levantar.
Vejo as coisas em minha volta,
Não percebo o meu chão,
Minha vida que dá voltas,
Me causando depressão.
Mas ainda me conforta
E abala o coração
E sinto uma sensação
Em levantar e sentir meus pés no chão.
Pois nada está perdido,
Ainda tenho emus objetivos,
Estou começando me reanimar,
Porque os meus objetivos, quero alcançar.
Então, agora,
Vou para a escola estudar,
Criar, imaginar,
Pois é disso, que vou precisar,
Assim realizar tudo
Que um dia pude sonhar.
(Larissa da Silva – 2.º B)
ELA
Por ela pego chuva ou sol,
Por ela perco o futebol,
Por ela aceito brincadeiras,
Só não troco-a pelo meu Palmeiras.
Caminho por ela no mundão,
Ela conseguiu tocar meu coração.
Sentimento involuntário,
Lutei pra não acontecer,
Mas agora estou mergulhado
E escrevo pra você.
Nos seus olhos me inspiro,
Eles são minha inspiração,
Sonhar com ela eu desejo
Dias e noites de emoção.
Duas vidas muito ligadas,
Muitos laços de carinho,
Várias coisas engraçadas,
Que fazem parte de nosso ninho.
Já falei demais e agora
Vou-me encaminhando,
Deixo meus versos aqui
E a poesia vou terminando.
(Henrique Martins de Lucca – 2.ºB)
BRASILEIRÃO
No campeonato brasileiro
Tem times de vários lugares
Do sul, do norte, do centro-oeste,
Mas também tem do sudeste e do nordeste.
Nele tem muita emoção:
De várias rivalidades
Com vários times
De vários lugares.
O futebol de mais rivalidade
É o futebol paulistano
Entre Corinthians e São Caetano
É de muita finalidade,
Mas também times do sul,
O famoso Grenal,
Entre o Grêmio e o Internacional,
Que é um clássico fenomenal.
E também subimos mais um pouco,
Não podemos deixar de falar do clássico atlético,
Que é lá em Curitiba
E também, temos o mineiro
Entre Atlético e Cruzeiro,
Que para o centro inteiro
E que ficam loucos, os mineiros.
Essa é a força do do futebol brasileiro.
(Guilherme - 2.ºB)
terça-feira, 12 de maio de 2009
FIGURAS DE LINGUAGEM
São recursos que tornam mais expressivas as mensagens. Subdividem-se em figuras de som, figuras de construção, figuras de pensamento e figuras de palavras.
Figuras de som
a) aliteração: consiste na repetição ordenada de mesmos sons consonantais.
“Esperando, parada, pregada na pedra do porto.”
b) assonância: consiste na repetição ordenada de sons vocálicos idênticos.
“Sou um mulato nato no sentido lato
mulato democrático do litoral.”
c) paronomásia: consiste na aproximação de palavras de sons parecidos, mas de significados distintos.
“Eu que passo, penso e peço.”
Figuras de construção
a) elipse: consiste na omissão de um termo facilmente identificável pelo contexto.
“Na sala, apenas quatro ou cinco convidados.” (omissão de havia)
b) zeugma: consiste na elipse de um termo que já apareceu antes.
Ele prefere cinema; eu, teatro. (omissão de prefiro)
c) polissíndeto: consiste na repetição de conectivos ligando termos da oração ou elementos do período.
“ E sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito (...)”
d) inversão: consiste na mudança da ordem natural dos termos na frase.
“De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.”
e) silepse: consiste na concordância não com o que vem expresso, mas com o que se sebentende, com o que está implícito. A silepse pode ser:
• De gênero
Vossa Excelência está preocupado.
• De número
Os lusíadas glorificou nossa literatura.
• De pessoa
“O que me parece inexplicável é que os brasileiros persistamos em comer essa coisinha verde e mole que se derrete na boca.”
f) anacoluto: consiste em deixar um termo solto na frase. Normalmente, isso ocorre porque se inicia uma determinada construção sintática e depois se opta por outra.
A vida, não sei realmente se ela vale alguma coisa.
g) pleonasmo: consiste numa redundância cuja finalidade é reforçar a mensagem.
“E rir meu riso e derramar meu pranto.”
h) anáfora: consiste na repetição de uma mesma palavra no início de versos ou frases.
“ Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer”
Figuras de pensamento
a) antítese: consiste na aproximação de termos contrários, de palavras que se opõem pelo sentido.
“Os jardins têm vida e morte.”
b) ironia: é a figura que apresenta um termo em sentido oposto ao usual, obtendo-se, com isso, efeito crítico ou humorístico.
“A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças.”
c) eufemismo: consiste em substituir uma expressão por outra menos brusca; em síntese, procura-se suavizar alguma afirmação desagradável.
Ele enriqueceu por meios ilícitos. (em vez de ele roubou)
d) hipérbole: trata-se de exagerar uma idéia com finalidade enfática.
Estou morrendo de sede. (em vez de estou com muita sede)
e) prosopopéia ou personificação: consiste em atribuir a seres inanimados predicativos que são próprios de seres animados.
O jardim olhava as crianças sem dizer nada.
f) gradação ou clímax: é a apresentação de idéias em progressão ascendente (clímax) ou descendente (anticlímax)
“Um coração chagado de desejos
Latejando, batendo, restrugindo.”
g) apóstrofe: consiste na interpelação enfática a alguém (ou alguma coisa personificada).
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!”
Figuras de palavras
a) metáfora: consiste em empregar um termo com significado diferente do habitual, com base numa relação de similaridade entre o sentido próprio e o sentido figurado. A metáfora implica, pois, uma comparação em que o conectivo comparativo fica subentendido.
“Meu pensamento é um rio subterrâneo.”
b) metonímia: como a metáfora, consiste numa transposição de significado, ou seja, uma palavra que usualmente significa uma coisa passa a ser usada com outro significado. Todavia, a transposição de significados não é mais feita com base em traços de semelhança, como na metáfora. A metonímia explora sempre alguma relação lógica entre os termos. Observe:
Não tinha teto em que se abrigasse. (teto em lugar de casa)
c) catacrese: ocorre quando, por falta de um termo específico para designar um conceito, torna-se outro por empréstimo. Entretanto, devido ao uso contínuo, não mais se percebe que ele está sendo empregado em sentido figurado.
O pé da mesa estava quebrado.
d) antonomásia ou perífrase: consiste em substituir um nome por uma expressão que o identifique com facilidade:
...os quatro rapazes de Liverpool (em vez de os Beatles)
e) sinestesia: trata-se de mesclar, numa expressão, sensações percebidas por diferentes órgãos do sentido.
A luz crua da madrugada invadia meu quarto.
Figuras de som
a) aliteração: consiste na repetição ordenada de mesmos sons consonantais.
“Esperando, parada, pregada na pedra do porto.”
b) assonância: consiste na repetição ordenada de sons vocálicos idênticos.
“Sou um mulato nato no sentido lato
mulato democrático do litoral.”
c) paronomásia: consiste na aproximação de palavras de sons parecidos, mas de significados distintos.
“Eu que passo, penso e peço.”
Figuras de construção
a) elipse: consiste na omissão de um termo facilmente identificável pelo contexto.
“Na sala, apenas quatro ou cinco convidados.” (omissão de havia)
b) zeugma: consiste na elipse de um termo que já apareceu antes.
Ele prefere cinema; eu, teatro. (omissão de prefiro)
c) polissíndeto: consiste na repetição de conectivos ligando termos da oração ou elementos do período.
“ E sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito (...)”
d) inversão: consiste na mudança da ordem natural dos termos na frase.
“De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.”
e) silepse: consiste na concordância não com o que vem expresso, mas com o que se sebentende, com o que está implícito. A silepse pode ser:
• De gênero
Vossa Excelência está preocupado.
• De número
Os lusíadas glorificou nossa literatura.
• De pessoa
“O que me parece inexplicável é que os brasileiros persistamos em comer essa coisinha verde e mole que se derrete na boca.”
f) anacoluto: consiste em deixar um termo solto na frase. Normalmente, isso ocorre porque se inicia uma determinada construção sintática e depois se opta por outra.
A vida, não sei realmente se ela vale alguma coisa.
g) pleonasmo: consiste numa redundância cuja finalidade é reforçar a mensagem.
“E rir meu riso e derramar meu pranto.”
h) anáfora: consiste na repetição de uma mesma palavra no início de versos ou frases.
“ Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer”
Figuras de pensamento
a) antítese: consiste na aproximação de termos contrários, de palavras que se opõem pelo sentido.
“Os jardins têm vida e morte.”
b) ironia: é a figura que apresenta um termo em sentido oposto ao usual, obtendo-se, com isso, efeito crítico ou humorístico.
“A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças.”
c) eufemismo: consiste em substituir uma expressão por outra menos brusca; em síntese, procura-se suavizar alguma afirmação desagradável.
Ele enriqueceu por meios ilícitos. (em vez de ele roubou)
d) hipérbole: trata-se de exagerar uma idéia com finalidade enfática.
Estou morrendo de sede. (em vez de estou com muita sede)
e) prosopopéia ou personificação: consiste em atribuir a seres inanimados predicativos que são próprios de seres animados.
O jardim olhava as crianças sem dizer nada.
f) gradação ou clímax: é a apresentação de idéias em progressão ascendente (clímax) ou descendente (anticlímax)
“Um coração chagado de desejos
Latejando, batendo, restrugindo.”
g) apóstrofe: consiste na interpelação enfática a alguém (ou alguma coisa personificada).
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!”
Figuras de palavras
a) metáfora: consiste em empregar um termo com significado diferente do habitual, com base numa relação de similaridade entre o sentido próprio e o sentido figurado. A metáfora implica, pois, uma comparação em que o conectivo comparativo fica subentendido.
“Meu pensamento é um rio subterrâneo.”
b) metonímia: como a metáfora, consiste numa transposição de significado, ou seja, uma palavra que usualmente significa uma coisa passa a ser usada com outro significado. Todavia, a transposição de significados não é mais feita com base em traços de semelhança, como na metáfora. A metonímia explora sempre alguma relação lógica entre os termos. Observe:
Não tinha teto em que se abrigasse. (teto em lugar de casa)
c) catacrese: ocorre quando, por falta de um termo específico para designar um conceito, torna-se outro por empréstimo. Entretanto, devido ao uso contínuo, não mais se percebe que ele está sendo empregado em sentido figurado.
O pé da mesa estava quebrado.
d) antonomásia ou perífrase: consiste em substituir um nome por uma expressão que o identifique com facilidade:
...os quatro rapazes de Liverpool (em vez de os Beatles)
e) sinestesia: trata-se de mesclar, numa expressão, sensações percebidas por diferentes órgãos do sentido.
A luz crua da madrugada invadia meu quarto.
segunda-feira, 6 de abril de 2009
OS MAIAS PARTE 1 (EÇA DE QUEIRÓS)
Capítulo I
A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assimilar-se-ia a um Colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha de certo dum revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo de Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números duma data.
Longos anos o Ramalhete permanecera desabitado, com teias de aranha pelas grades dos postigos térreos, e cobrindo-se de tons de ruína. Em 1858 Monsenhor Bucarini, Núncio de S. Santidade, visitara-o com ideia de instalar lá a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edifício e pela paz dormente do bairro: e o interior do casarão agradara-lhe também, com a sua disposição apalaçada, os tectos apainelados, as paredes cobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos Cupidinhos. Mas Monsenhor, com os seus hábitos de rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os arvoredos e as águas dum jardim de luxo: e o Ramalhete possuía apenas, ao fundo dum terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado ás ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatasinha seca, um tanque entulhado, e uma estátua de mármore (onde Monsenhor reconheceu logo Vénus Citereia) enegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres. Além disso, a renda que pediu o velho Vilaça, procurador dos Maias, pareceu tão exagerada a Monsenhor, que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Igreja nos tempos de Leão X. Vilaça respondeu - que também a nobreza não estava nos tempos do Sr. D. João V. E o Ramalhete, continuou desabitado.
Este inútil pardieiro (como lhe chamava Vilaça Junior, agora por morte de seu pai administrador dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870, para lá se arrecadarem as mobílias e as louças provenientes do palacete de família em Benfica, morada quasi histórica, que, depois de andar anos em praça, fora então comprada por um comendador brasileiro. Nessa ocasião vendera-se outra propriedade dos Maias, a Tojeira; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e sabiam que desde a Regeneração eles viviam retirados na sua quinta de Santa Olavia, nas margens do Douro, tinham perguntado a Vilaça se essa gente estava atrapalhada.
- Ainda têm um pedaço de pão, disse Vilaça sorrindo, e a manteiga para lhe barrar por cima.
Os Maias eram uma antiga família da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas colaterais, sem parentelas - e agora reduzida a dois varões, o senhor da casa, Afonso da Maia, um velho já, quasi um antepassado, mais idoso que o século, e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra. Quando Afonso se retirara definitivamente para Santa Olavia, o rendimento da casa excedia já cinquenta mil cruzados: mas desde então tinham-se acumulado as economias de vinte anos de aldeia; viera também a herança dum ultimo parente, Sebastião da Maia, que desde 1830 vivia em Nápoles, só, ocupando-se de numismática; - e o procurador podia certamente sorrir com segurança quando falava dos Maias e da sua fatia de pão.
A venda da Tojeira fora realmente aconselhada por Vilaça: mas nunca ele aprovara que Afonso se desfizesse de Benfica - só pela razão daqueles muros terem visto tantos desgostos domésticos. Isso, como dizia Vilaça, acontecia a todos os muros. O resultado era que os Maias, com o Ramalhete inabitável, não possuíam agora uma casa em Lisboa; e se Afonso naquela idade amava o sossego de Santa Olavia, seu neto, rapaz de gosto e de luxo que passava as ferias em Paris e Londres, não quereria, depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do Douro. E com efeito, meses antes de ele deixar Coimbra, Afonso assombrou Vilaça anunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete! O procurador compôs logo um relatório a enumerar os inconvenientes do casarão: o maior era necessitar tantas obras e tantas despesas; depois, a falta dum jardim devia ser muito sensível a quem saía dos arvoredos de Santa Olavia; e por fim aludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete, «ainda que (acrescentava ele numa frase meditada) até me envergonho de mencionar tais frioleiras neste século de Voltaire, Guisot e outros filósofos liberais...»
Afonso riu muito da frase, e respondeu que aquelas razões eram excelentes - mas ele desejava habitar sob tectos tradicionalmente seus; se eram necessárias obras, que se fizessem e largamente; e enquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par em par as janelas e deixar entrar o sol.
S. Ex.ª mandava: - e, como esse inverno ia seco, as obras começaram logo, sob a direcção dum Esteves, arquitecto, político, e compadre de Vilaça. Este artista entusiasmara o procurador com um projecto de escada aparatosa, flanqueada por duas figuras simbolizando as conquistas da Guiné e da índia. E estava ideando também uma cascata de louça na sala de jantar - quando, inesperadamente, Carlos apareceu em Lisboa com um arquitecto-decorador de Londres, e, depois de estudar com ele à pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para ele ali criar, exercendo o seu gosto, um interior confortável, de luxo inteligente e sóbrio.
Vilaça ressentiu amargamente esta desconsideração pelo artista nacional; Esteves foi berrar ao seu Centro político que isto era um país perdido. E Afonso lamentou também que se tivesse despedido o Esteves, exigiu mesmo que o encarregassem da construção das cocheiras. O artista ia aceitar - quando foi nomeado governador civil.
Ao fim dum ano, durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa colaborar nos trabalhos, «dar os seus retoques estéticos» - do antigo Ramalhete só restava a fachada tristonha, que Afonso não quisera alterada por constituir a fisionomia da casa. E Vilaça não duvidou declarar que Jones Bule (como ele chamava ao inglês) sem despender despropositadamente, aproveitando até as antigualhas de Benfica, fizera do Ramalhete «um museu.»
O que surpreendia logo era o pátio, outrora tão lôbrego, nú, lageado de pedregulho - agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de mármores brancos e vermelhos, plantas decorativas, vasos de Quimper, e dois longos bancos feudais que Carlos trouxera de Espanha, trabalhados em talha, solenes como coros de catedral. Em cima, na antecâmara, revestida como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-na divãs cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscos com reflexos metálicos de cobre, uma harmonia de tons severos, onde destacava, na brancura imaculada do mármore, uma figura de rapariga friorenta, arrepiando-se, rindo, ao meter o pésinho na água. daí partia um amplo corredor, ornado com as peças ricas de Benfica, arcas góticas, jarrões da índia, e antigos quadros devotos. As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No salão nobre, raramente usado, todo em brocados de veludo cor de musgo de outono, havia uma bela tela de Constable, o retrato da sogra de Afonso, a condessa de Runa, de tricorne de plumas e vestido escarlate de caçadora inglesa, sobre um fundo de paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia música, tinha um ar de século XVIII com seus móveis enramelhetados de ouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas tapeçarias de Gobelins, desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as paredes de pastores e de arvoredos.
Defronte era o bilhar, forrado dum couro moderno trazido por Jones Bule, onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, esvoaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais cómoda do Ramalhete: as otomanas tinham a fofa vastidão de leitos; e o aconchego quente, e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes de velhas faianças holandesas.
Ao fundo do corredor ficava o escritório de Afonso, revestido de damascos vermelhos como uma velha câmara de prelado. A maciça mesa de pau preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o solene luxo das encadernações, tudo tinha ali uma feição austera de paz estudiosa - realçada ainda por um quadro atribuído a Rubens, antiga relíquia da casa, um Cristo na Cruz, destacando a sua nudez de atleta sobre um céu de poente revolto e rubro. Ao lado do fogão Carlos arranjara um canto para o avô com um biombo japonês bordado a ouro, uma pele de urso branco, e uma venerável cadeira de braços, cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de seda.
No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de família, estavam os quartos de Afonso. Carlos dispusera os seus, num ângulo da casa, com uma entrada particular, e janelas sobre o jardim: eram três gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e, os recostos acolchoados, a seda que forrava as paredes, faziam dizer ao Vilaça que aquilo não eram aposentos de médico - mas de dançarina!
A casa, depois de arranjada, ficou vazia enquanto Carlos, já formado, fazia uma longa viagem pela Europa; - e foi só nas véspera da sua chegada, nesse lindo outono de 1875, que Afonso se resolveu enfim a deixar Santa Olavia e vir instalar-se no Ramalhete. Havia vinte e cinco anos que ele não via Lisboa; e, ao fim de alguns curtos dias, confessou ao Vilaça que estava suspirando outra vez pelas suas sombras de Santa Olavia. Mas, que remédio! Não queria viver muito separado do neto; e Carlos agora, com ideias sérias de carreira activa, devia necessariamente habitar Lisboa... De resto, não desgostava do Ramalhete, apesar de Carlos, com o seu fervor pelo luxo dos climas frios, ter prodigalizado de mais as tapeçarias, os pesados reposteiros, e os veludos. Agradava-lhe também muito a vizinhança, aquela doce quietação de subúrbio adormecido ao sol. E gostava até do seu quintalejo. Não era de certo o jardim de Santa Olavia: mas tinha o ar simpático, com os seus girassóis perfilados ao pé dos degraus do terraço, o cipreste e o cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes, e a Vénus Citereia parecendo agora, no seu tom claro de estátua de parque, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande século... E desde que a água abundava, a cascatasinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus três pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancolizando aquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de naiade doméstica, esfiado gota a gota na bacia de mármore.
O que desconsolara Afonso, ao principio, fora a vista do terraço - de onde outrora, de certo, se abrangia até ao mar. Mas as casas edificadas em redor, nos últimos anos, tinham tapado esse horizonte esplêndido. Agora, uma estreita tira de água e monte que se avistava entre dois prédios de cinco andares, separados por um corte de rua, formava toda a paisagem defronte do Ramalhete. E, todavia, Afonso terminou por lhe descobrir um encanto íntimo. Era como uma tela marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de cor e luz, os episódios fugitivos duma pacata vida de rio: ás vezes uma vela de barco da Trafaria fugindo airosamente à bolina; outras vezes uma galera toda em pano, entrando num favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancolia dum grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desaparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó de ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglês... E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e duas casas brancas ao rés da água, cheias de expressão - ora faiscantes e despedindo raios das vidraças acesas em brasa; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de poente, quasi semelhantes a um rubor humano; e duma tristeza arrepiada nos dias de chuva, tão sós, tão brancas, como nuas, sob o tempo agreste.
O terraço comunicava por três portas envidraçadas com o escritório - e foi nessa bela câmara de prelado que Afonso se acostumou logo a passar os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe preparara ternamente, ao lado do fogão. A sua longa residência em Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume. Em Santa Olavia as chaminés ficavam acesas até Abril; depois ornavam-se de braçadas de flores, como um altar doméstico; e era ainda aí, nesse aroma e nessa frescura, que ele gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tácito, ou o seu querido Rabelais.
Todavia, Afonso ainda ia longe, como ele dizia, de ser um velho borralheiro. Naquela idade, de verão ou de inverno, ao romper do sol, estava a pé, saindo logo para a quinta, depois da sua boa oração da manhã que era um grande mergulho na água fria. Sempre tivera o amor supersticioso da água; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem - que sabor de água, som de água, e vista de água. O que o prendera mais a Santa Olavia fora a sua grande riqueza de águas vivas, nascentes, repuxos, tranquilo espelhar de águas paradas, fresco murmúrio de águas regantes... E a esta viva tonificação da água atribuía ele o ter vindo assim, desde o começo do século, sem uma dor e sem uma doença, mantendo a rica tradição de saúde da sua família, duro, resistente aos desgostos e anos - que passavam por ele, tão em vão, como passavam em vão, pelos seus robles de Santa Olavia, anos e vendavais.
Afonso era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pele corada, quasi vermelha, o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a barba de neve aguda e longa - lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das idades heróicas, um D. Duarte de Menezes ou um Afonso de Albuquerque. E isto fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando, quanto as aparências iludem!
Não, não era Menezes, nem Albuquerque; apenas um antepassado bonacheirão que amava os seus livros, o aconchego da sua poltrona, o seu whist ao canto do fogão. Ele mesmo costumava dizer, que era simplesmente um egoísta: - mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu coração tinham sido tão profundas e largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, numa caridade enternecida. Cada vez amava mais o que é pobre e o que é fraco. Em Santa Olavia, as crianças corriam para ele, dos portais, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor: - e era dos que não pisam um formigueiro, e se compadece da sede duma planta.
Vilaça costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos patriarcas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminé, na sua coçada quinzena de veludilho, sereno, risonho, com um livro na mão, o seu velho gato aos pés. Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era agora (desde a morte de Tobias, o soberbo cão de S. Bernardo) o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em Santa Olavia, e recebera então o nome de Bonifácio: depois, ao chegar à idade do amor e da caça fora-lhe dado o apelido mais cavalheiresco de D. Bonifácio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades eclesiásticas, e era o Reverendo Bonifácio...
Esta existência nem sempre assim correra com a tranquilidade larga e clara dum belo rio de verão. O antepassado, cujos olhos se enchiam agora duma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume relia com gosto o seu Guisot, fora, na opinião de seu pai, algum tempo, o mais feroz Jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionário do pobre moço consistira em ler Rousseau, Volney, Helvetius, e a Enciclopédia; em atirar foguetes de lágrimas à Constituição; e ir, de chapéu à liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maçónicas Odes abomináveis ao Supremo Arquitecto do Universo. Isto, porém, bastara para indignar o pai. Caetano da Maia era um português antigo e fiel que se benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apatia de fidalgo beato e doente, tinha só um sentimento vivo - o horror, o ódio ao Jacobino, a quem atribuía todos os males, os da pátria e os seus, desde a perda das colónias até ás crises da sua gota. Para extirpar da nação o Jacobino, dera ele o seu amor ao Sr. infante D. Miguel, Messias forte e Restaurador providencial... E ter justamente por filho um Jacobino, parecia-lhe uma provação comparável só ás de Job!
Ao principio, na esperança que o menino se emendasse, contentou-se em lhe mostrar um carão severo e chamar-lhe com sarcasmo - cidadão! Mas quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara à turba que, numa noite de festa cívica e de luminárias, tinha apedrejado as vidraças apagadas do Sr. Legado de Áustria, enviado da Santa Aliança - considerou o rapaz um Marat e toda a sua cólera rompeu. A gota cruel, cravando-o na poltrona, não lhe deixou espancar o mação, com a sua bengala da índia, à lei de bom pai português: mas decidiu expulsá-lo de sua casa, sem mesada e sem bênção, renegado como um bastardo! Que aquele pedreiro livre não podia ser do seu sangue!
As lágrimas da mamã amoleceram-no; sobretudo as razões duma cunhada de sua mulher, que vivia com eles em Benfica, senhora irlandesa de alta instrução, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara inglês ao menino e o adorava como um bebé. Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho para a quinta de Santa Olavia; mas não cessou de chorar no seio dos padres, que vinham a Benfica, a desgraça da sua casa. E esses santos lá o consolavam, afirmando-lhe que Deus, o velho Deus de Ourique, não permitiria jamais que um Maia pactuasse com Belzebut e com a Revolução! E, à falta de Deus Padre, lá estava Nossa Senhora da Solidade, padroeira da casa e madrinha do menino, para fazer o bom milagre.
E o milagre fez-se. Meses depois, o Jacobino, o Marat, voltava de Santa Olavia um pouco contricto, enfastiado sobretudo daquela solidão, onde os chás do brigadeiro Sena eram ainda mais tristes que o terço das primas Cunhas. Vinha pedir ao pai a benção, e alguns mil cruzados, para ir a Inglaterra, esse país de vivos prados e de cabelos de ouro de que lhe falara tanto a tia Fanny. O pai beijou-o, todo em lágrimas, acedeu a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da Solidade! E o mesmo Frei Jerónimo da Conceição seu confessor, declarou este milagre - não inferior ao de Carnaxide.
Afonso partiu. Era na primavera - e a Inglaterra toda verde, os seus parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia penetrante dos seus nobres costumes, aquela raça tão séria e tão forte - encantaram-no. Bem depressa esqueceu o seu ódio aos sorumbáticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau, e a República que quisera fundar, clássica e voltariana, com um triumvirato de Scipiões e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da Abrilada estava ele nas corridas de Epsom, no alto duma sege de posta, com um grande nariz postiço, dando hurrahs medonhos - bem indiferente aos seus irmãos de Maçonaria, que a essas horas o Sr. infante espicaçava a chuço, pelas vielas do Bairro Alto, no seu rijo cavalo de Alter.
Seu pai morreu de súbito, ele teve de regressar a Lisboa. Foi então que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa, uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ela. Teve um filho, desejou outros; e começou logo, com belas ideias de patriarca moço, a fazer obras no palacete de Benfica, a plantar em redor arvoredos, preparando tectos e sombras à descendência amada que lhe encantaria a velhice.
Mas não esquecia a Inglaterra: - e tornava-lha mais apetecida essa Lisboa miguelista que ele via, desordenada como uma Tunis barbaresca; essa rude conjuração apostólica de frades e baleeiros, atroando tavernas e capelas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do lausperene para o curro, e ansiando tumultuosamente pelo príncipe que lhe encarnava tão bem os vícios e as paixões...
Este espectáculo indignava Afonso da Maia; e muitas vezes, na paz do serão, entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu a indignação da sua alma honesta. Já não exigia de certo, como em rapaz, uma Lisboa de Catões e de Mucios-Scevolas. Já admitia mesmo o esforço duma nobreza para manter o seu privilegio históricos; mas então queria uma nobreza inteligente e digna, como a Aristocracia tory (que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealizar), dando em tudo a direcção moral, formando os costumes e inspirando a literatura, vivendo com fausto e falando com gosto, exemplo de ideias altas e espelho de maneiras patrícias... O que não tolerava era o mundo de Queluz, bestial e sórdido.
Tais palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as cortes gerais, a polícia invadiu Benfica, «a procurar papéis e almas escondidas.»
Afonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao lado - viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas, as mãos sujas do malsim rebuscando os colchões do seu leito. O Sr. juiz de fora não descobriu nada: aceitou mesmo na copa um cálice de vinho, e confessou ao mordomo «que os tempos iam bem duros...» Desde essa manhã as janelas do palacete conservaram-se cerradas; não se abriu mais o portão nobre para sair o coche da senhora; e daí a semanas, com a mulher e com o filho, Afonso da Maia partia para Inglaterra e para o exílio.
Aí instalou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres, junto a Richmond, ao fundo dum parque, entre as suaves e calmas paisagens de Surrey.
Os seus bens, graças ao credito do conde de Runa, antigo mimoso de D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro ríspido do Sr. D. Miguel, não tinham sido confiscados; e Afonso da Maia podia viver largamente.
Ao principio os emigrados liberais, Palmela e a gente do Belfast, ainda o vieram desassossegar e consumir. A sua alma recta não tardou a protestar vendo a separação de castas, de hierarquias, mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma ideia - os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres à forra, e a plebe, o exercito, depois dos padecimentos da Galiza, sucumbindo agora à fome, à vermina, à febre nos barracões de Plymouth. Teve logo conflitos com os chefes liberais; foi acusado de vintista e demagogo; descreu por fim do liberalismo. Isolou-se então - sem fechar todavia a sua bolsa, de onde saíam ás cinquenta, ás cem moedas... Mas quando a primeira expedição partiu, e pouco a pouco se foram vasando os depósitos de emigrados, respirou enfim - e, como ele disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar de Inglaterra!
Meses depois sua mãe, que ficara em Benfica, morria duma apoplexia: e a tia Fanny veio para Richmond completar a felicidade de Afonso, com o seu claro juizo, os seus caracóis brancos, os seus modos de discreta Minerva. Ali estava ele pois no seu sonho, numa digna residência inglesa, entre árvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo em torno de si tudo são, forte, livre e sólido, - como o amava o seu coração.
Teve relações; estudou a nobre e rica literatura inglesa; interessou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavalos, pela pratica da caridade; - e pensava com prazer em ficar ali para sempre naquela paz e naquela ordem.
Somente Afonso sentia que sua mulher não era feliz. Pensativa e triste, tossia sempre pelas salas. Á noite sentava-se ao fogão, suspirava e ficava calada...
Pobre senhora! a nostalgia do país, da parentela, das igrejas, ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo palidamente, tinha vivido desde que chegara num ódio surdo aquela terra de herejes e ao seu idioma bárbara: sempre arrepiada, abafada em peles, olhando com pavor os céus fuscos ou a neve nas árvores, o seu coração não estivera nunca ali, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoção (a devoção dos Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se aquela hostilidade ambiente que ela sentia em redor contra os «papistas». E só se satisfazia à noite, indo refugiar-se no sótão com as criadas portuguesas, para rezar o terço agachada numa esteira - gozando ali, nesse murmúrio de ave-marias em país protestante, o encanto de uma conjuração católica!
Odiando tudo o que era inglês, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe provou que era um colégio católico! Não queria: aquele catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas - não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à heresia; - e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capelão do Conde de Runa.
O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha: e a face de Afonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar de alguma caçada ou das ruas de Londres, de entre o forte rumor da vida livre - ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo duma treva:
- Quantos são os inimigos da alma?
E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:
-Três. Mundo, Diabo e Carne...
Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho...
Ás vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho - para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois lá fora o menino, acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros pensativo, triste daquela fraqueza do filho...
Mas o menor esforço dele para arrancar o rapaz aqueles braços de mãe que o amoleciam, aquela cartilha mortal do padre Vasques - trazia logo à delicada senhora acessos de febre. E Afonso não se atrevia já a contrariar a pobre doente, tão virtuosa, e que o amava tanto! Ia então lamentar-se para o pé da tia Fanny: a sábia irlandesa metia os óculos entre as folhas do seu livro, tratado de Addisson ou poema de Pope, e encolhia melancolicamente os ombros. Que podia ela fazer!...
Por fim a tosse de Maria Eduarda foi aumentando - como a tristeza das suas palavras. Já falava da «sua ambição derradeira», que era ver o sol uma vez mais! Por que não voltariam a Benfica, ao seu lar, agora que o Sr. Infante estava também desterrado e que havia uma grande paz? Mas a isso Afonso não cedeu: não queria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas - e os soldados do Sr. D. Pedro não lhe davam mais garantias que os malsins do Sr. D. Miguel.
Por esse tempo veio um grave desgosto à casa: a tia Fanny morreu, duma pneumonia, nos frios de março; e isto enegreceu mais a melancolia de Maria Eduarda, que a amava muito também - por ser irlandesa e católica.
Para a distrair, Afonso levou-a para a Itália, para uma deliciosa vila ao pé de Roma. Aí não lhe faltava o sol: tinha-o pontual e generoso todas as manhãs, banhando largamente os terraços, dourando loureirais e mirtos. E depois, lá em baixo, entre mármores, estava a coisa preciosa e santa, o Papa!
Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente apetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrenta penitência por tardes de sol e de poeira...
Foi necessário acalmá-la, voltar a Benfica.
Aí começou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente, todos os dias mais pálida, levando semanas imóvel sobre um canapé, com as mãos transparentes cruzadas sobre as suas grossas peles de Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-se daquela alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornara-se o grande homem da casa. De resto Afonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras canónicas, de capote e solidão, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio de sacristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha.
Todos aqueles santos varões comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador apareciam sobrecarregadas com as mesadas piedosas que dava a senhora: um Frei Patrício surripiara-lhe duzentas missas de cruzado por alma do Sr. D. José I...
Esta carolice que o cercava ia lançando Afonso num ateísmo rancoroso: quereria as igrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado, uma matança de reverendos... Quando sentia na casa a voz de rezas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel Sequeira, que vivia numa quinta a Queluz.
O Pedrinho no entanto estava quasi um homem. Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da raça, da força dos Maias; a sua linda face oval dum trigueiro cálido, dois olhos maravilhosos e irresistiveis, prontos sempre a humedecer-se, faziam-no assemelhar a um belo árabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indiferente a brinquedos, a animais, a flores, a livros. Nenhum desejo forte parecera jamais vibrar naquela alma meia adormecida e passiva: só ás vezes dizia que gostaria muito de voltar para a Itália. Tomara birra ao Padre Vasques, mas não ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse abatimento continuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarelo, com as olheiras fundas e já velho. O seu único sentimento vivo, intenso, até aí, fora a paixão pela mãe.
Afonso quisera-o mandar para Coimbra. Mas, à ideia de se separar do seu Pedro, a pobre senhora caíra de joelhos diante de Afonso, balbuciando e tremendo: e ele, naturalmente, lá cedeu perante essas mãos suplicantes, essas lágrimas que caiam quatro a quatro pela pobre face de cera. O menino continuou em Benfica dando os seus lentos passeios a cavalo, de criado de farda atrás, começando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa... Depois foi despontando naquela organização uma grande tendência amorosa: aos dezanove anos teve o seu bastardosinho.
Afonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de tão desgraçados mimos, não faltavam ao rapaz qualidades: era muito esperto, são, e, como todos os Maias, valente: não havia muito que ele só, com um chicote, dispersara na estrada três saloios de varapau que lhe tinham chamado palmito.
Quando a mãe morreu, numa agonia terrível de devota, debatendo-se dias nos pavores do inferno, Pedro teve na sua dor os arrebatamentos duma loucura. Fizera a promessa histérica, se ela escapasse, de dormir durante um ano sobre as lajes do pátio: e levado o caixão, saídos os padres, caiu numa angustia soturna, obtusa, sem lágrimas, de que não queria emergir, estirado de bruços sobre a cama numa obstinação de penitente. Muitos meses ainda não o deixou uma tristeza vaga: e Afonso da Maia já se desesperava de ver aquele rapaz, seu filho e seu herdeiro, sair todos os dias a passos de monge, lúgubre no seu luto pesado, para ir visitar a sepultura da mamã...
Esta dor exagerada e mórbida cessou por fim; e sucedeu-lhe, quasi sem transição, um período de vida dissipada e turbulenta, estroinice banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava afogar em lupanares e botequins as saudades da mamã. Mas essa exuberância ansiosa que se desencadeara tão subitamente, tão tumultuosamente, na sua natureza desequilibrada, gastou-se depressa também.
Ao fim dum ano de distúrbios no Marrare, de façanhas nas esperas de touros, de cavalos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, começaram a reaparecer as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam esses dias taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas salas, ou sob alguma árvore da quinta todo estirado de bruços, como despenhado num fundo de amargura. Nesses períodos tornava-se também devoto: lia Vidas de Santos, visitava o Lausperene: eram desses bruscos abatimentos de alma que outrora levavam os fracos aos mosteiros.
Isto penalizava Afonso da Maia: preferia saber que ele recolhera de Lisboa, de madrugada, exausto e bêbedo, - do que vê-lo, de ripanço debaixo do braço, com um ar velho, marchando para a Igreja de Benfica.
E havia agora uma ideia que, a seu pesar, ás vezes o torturava: descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Benfica: este homem extraordinário, com que na casa se metia medo ás crianças, enlouquecera - e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira...
Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor à Romeu, vindo de repente numa troca de olhares fatal e deslumbradora, uma dessas paixões que assaltam uma existência, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a razão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abismos.
Numa tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, à porta de Mme. Levailant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéu branco, e uma senhora loira, embrulhada num chale de Cashmira.
O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo, uma face tisnada de antigo embarcadiço e o ar gauche, desceu todo encostado ao trintanário como se um reumatismo o tolhesse, entrou arrastando a perna o portal da modista; e ela voltando de vagar a cabeça olhou um momento o Marrare.
Sob as rosinhas que ornavam o seu chapéu preto os cabelos loiros, dum oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e clássica: os olhos maravilhosos iluminavam-na toda; a friagem fazia-lhe mais pálida a carnação de mármore: e com o seu perfil grave de estátua, o modelado nobre dos ombros e dos braços que o chale cingia - pareceu a Pedro nesses instantes alguma coisa de imortal e superior à terra.
Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado à outra ombreira, numa pose de tédio - vendo o violento interesse de Pedro, o olhar aceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veio tomar-lhe o braço, murmurou-lhe junto à face, na sua voz grossa e lenta:
- Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os feitos principais? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de Champagne?
Veio o Champagne. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anéis da cabeleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando um puxão aos punhos:
- Por uma dourada tarde de outono...
- André, gritou Pedro ao criado, martelando o mármore da mesa, retira o Champagne!
O Alencar bradou, imitando o actor Epifânio:
- O quê! Sem saciar a avidez de meu lábio?...
Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta das Vozes de Aurora, explicaria aquela gente da caleche azul numa linguagem cristã e pratica!...
- Aí vai, meu Pedro, aí vai!
Havia dois anos, justamente quando Pedro perdera a mamã, aquele velho, o papá Monforte, uma manhã rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa naquela mesma caleche com essa bela filha ao seu lado. Ninguém os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a aparecer em S. Carlos, fazendo uma impressão - uma impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ela atravessava o salão os ombros vergavam-se no deslumbramento de auréola que vinha daquela magnífica criatura, arrastando com um passo de Deusa a sua cauda de corte, sempre decotada como em noites de gala, e apesar de solteira resplandecente de jóias. O papá nunca lhe dava o braço: seguia atrás, entalado numa grande gravata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiço na claridade loira que saía da filha, encolhido e quasi apavorado, trazendo nas mãos o óculo, o libreto, um saco de bombons, o leque e o seu próprio guarda-chuva. Mas era no camarote, quando a luz caía sobre o seu colo ebúrneo e as suas tranças de oiro, que ela oferecia verdadeiramente a encarnação dum ideal da Renascença, um modelo de Ticiano... Ele, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ela e ás outras, ás trigueirotas da assinatura:
- Rapazes! é como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI!
O Magalhães, esse torpe pirata, pusera o dito num folhetim do Português. Mas o dito era dele, Alencar!
Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca naquela casa se abria uma janela. Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manuel. Enfim uma criada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno, tremia diante da filha, e dormia numa rede; a senhora, essa, vivia num ninho de sedas todo azul-ferrete, e passava o seu dia a ler novelas. Isto não podia satisfazer a sofreguidão de Lisboa. Fez-se uma devassa metódica, hábil, paciente... Ele, Alencar, pertencera à devassa.
E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Açores: muito moço, uma facada numa rixa, um cadáver a uma esquina tinham-no forçado a fugir a bordo dum brigue Americano. Tempos depois um certo Silva, procurador da casa de Taveira, que o conhecera nos Açores, estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrara lá o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo cais, de chinelas de esparto, à procura de embarque para a Nova-Orleans. Aqui havia uma treva na história do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor numa plantação da Virgínia... Enfim, quando reapareceu à face dos céus comandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brasil, para a Havana e para a Nova Orleans.
Escapara aos cruzeiros ingleses, arrancara uma fortuna da pele do africano, e agora rico, homem de bem, proprietário, ia ouvir a Coreli a S. Carlos. Todavia esta terrível crónica, como dizia o Alencar, obscura e mal provada, claudicava aqui e além...
- E a filha? perguntou Pedro, que o escutara, sério e pálido.
Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim tão loira e bela? Quem fora a mamã? Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com aquele gesto real no seu chale de Cashmira?...
- Isso, meu Pedro, são mistérios que jamais pôde Lisboa astuta devassar e só Deus sabe!
Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquela legenda de sangue e negros, o entusiasmo pela Monforte acalmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino, a beltà do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se em vilipendiar uma mulher tão loira, tão linda e com tantas jóias, chamaram-lhe logo a negreira! Quando ela aparecia agora no teatro, D. Maria da Gama afectava esconder a face detrás do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ela usava os seus belos rubis) o sangue das facadas que dera o papázinho! E tinham-na caluniado abominavelmente. Assim, depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-se logo, com furor, que estavam arruinados, que a polícia perseguia o velho, mil perversidades... O excelente Monforte, que sofre de reumatismos articulares, achava-se tranquilamente, ricamente, tomando as águas dos Pirineus... Fora lá que o Melo os conhecera...
- Ah! o Melo conhece-os? exclamou Pedro.
- Sim, meu Pedro, o Melo os conhece.
Pedro daí a um momento deixou o Marrare; e nessa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria e miúda, andou rondando uma hora, com a imaginação toda acesa, o palacete dos Vargas apagado e mudo. Depois, daí a duas semanas o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro acto do Barbeiro, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia instalado na frisa da Monforte, à frente, ao lado de Maria, com uma camélia escarlate na casaca - igual ás dum ramo pousado no rebordo de veludo.
Nunca Maria Monforte aparecera mais bela: tinha uma dessas toaletes excessivas e teatrais que ofendiam Lisboa, e faziam dizer ás senhoras que ela se vestia «como uma cómica». Estava de seda cor de trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o colo e nos braços; e estes tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabelos, iluminando-lhe a carnação ebúrnea, banhando as suas formas de estátua, davam-lhe o esplendor duma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Melo, que conversava de pé com o papá Monforte - escondido como sempre no canto negro da frisa.
O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedro voltara à sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Ela conservou algum tempo a sua atitude de Deusa insensível; mas, depois, no dueto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azuis e profundos se fixaram nele, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braços ao ar, a berrar a novidade.
Não tardou de resto a falar-se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Ele também namorou-a publicamente, à antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janela dela, imóvel e pálido de êxtase.
Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel - poemas desordenados que ia compor para o Marrare: e ninguém lá ignorava o destino daquelas paginas de linhas encruzadas que se acumulavam diante dele sobre o tabuleiro da genebra. Se algum amigo vinha à porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:
- O Sr. D. Pedro? Está a escrever à menina.
E ele mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, exclamava radiante, com o seu belo e franco sorriso:
- Espera aí um bocado, rapaz, estou a escrever à Maria!
Os velhos amigos de Afonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Benfica, sobretudo o Vilaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer a nova daqueles amores do Pedrinho. Afonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camélias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume dum envelope com sinete de lacre dourado; - e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho à estroinice bulhenta, ao jogo, ás melancolias sem razão em que reaparecia o negro ripanço...
Mas ignorava o nome, a existência sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos lhe revelaram, aquela facada nos Açores, o chicote de feitor na Virgínia, o brigue Nova Linda, toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Afonso da Maia.
Uma noite que o coronel Sequeira, à mesa do whist, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavalo, «ambos muito bem e muito distingués», Afonso, depois dum silêncio, disse com um ar enfastiado:
- Enfim, todos os rapazes têm as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir tais coisas. Mas essa mulher, com um pai desses, mesmo para amante acho má.
O Vilaça suspendeu o baralhar das cartas, e ajeitando os óculos de ouro exclamou com espanto:
- Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!...
Afonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, numa voz que tremia um pouco também:
- O Vilaça de certo não supõe que meu filho queira casar com essa criatura...
O outro emudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:
-Isso não, está claro que não...
E o jogo continuou algum tempo em silêncio.
Mas Afonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas que Pedro não jantava em Benfica. De manhã, se o via, era um momento, quando ele descia ao almoço, já com uma luva calçada, apressado e radiante, gritando para dentro se estava selado o cavalo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de chá, perguntava a correr «se o papá queria alguma coisas», dava um jeito ao bigode diante do grande espelho de Veneza sobre o fogão, e lá partia, enlevado. Outras vezes todo o dia não saía do quarto: a tarde descia, acendiam-se as luzes; até que o pai, inquieto, subia, ia encontrá-lo estirado sobre o leito, com a cabeça enterrada nos braços.
- Que tens tu? - perguntava-lhe.
- Enxaqueca, - respondia num tom surdo e rouco.
E Afonso descia indignado, vendo em toda aquela angustia covarde alguma carta que não viera, ou talvez uma rosa oferecida que não fora posta nos cabelos...
Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em volta da bandeja do chá, os seus amigos tinham observações que o inquietavam, partindo daqueles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os rumores - enquanto ele passava ali, inverno e verão, entre os seus livros e as suas rosas. Era o excelente Sequeira que perguntava porque não faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, à Alemanha, ao Oriente? Ou o velho Luís Runa, o primo de Afonso, que, a propósito de coisas indiferentes, rompia lamentando os tempos em que o Intendente da polícia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente aludiam à Monforte, evidentemente julgavam-na perigosa.
No verão, Pedro partiu para Sintra; Afonso soube que os Monfortes tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Vilaça apareceu em Benfica, muito preocupado: na véspera Pedro visitara-o no cartório, pedira-lhe informações sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar dinheiro. Ele lá lhe dissera que em setembro, chegando à sua maioridade, tinha a legitima da mamã...
- Mas não gostei disto, meu senhor, não gostei disto...
- E porque, Vilaça? O rapaz quererá dinheiro, quererá dar presentes à criatura... O amor é um luxo caro, Vilaça.
- Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouça!
E aquela confiança tão nobre de Afonso da Maia no orgulho patrício, nos brios de raça de seu filho, chegava a tranquilizar Vilaça.
daí a dias, Afonso da Maia viu enfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam ambos o seu café no mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavalos cobertos de redes. Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido cor de rosa cuja roda, toda em folhos, quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéu, apertadas num grande laço que lhe enchia o peito, eram também cor de rosa: e a sua face, grave e pura como um mármore grego, aparecia realmente adorável, iluminada pelos olhos dum azul sombrio, entre aqueles tons rosados. No assento defronte, quasi todo tomado por cartões de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapéu panamá, calça de ganga, o mantelete da filha no braço, o guarda sol entre os joelhos. Iam calados, não viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou com balanços lentos, sob os ramos que roçavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chávena de café junto aos lábios, de olho esgazeado, murmurando:
- Caramba! É bonita!
Afonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquela sombrinha escarlate, que agora se inclinava sobre Pedro, quasi o escondia, parecia envolvê-lo todo - como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste das ramas.
O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo. Uma manhã, Pedro entrou na livraria onde o pai estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a benção, passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se bruscamente para ele:
- Meu pai, - disse, esforçando-se por ser claro e decidido - venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.
Afonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e numa voz grave e lenta:
- Não me tinhas falado disso... Creio que é a filha dum assassino, dum negreiro, a quem chamam também a negreira...
- Meu pai!
Afonso ergueu-se diante dele, rígido e inexorável como a encarnação mesma da honra domestica.
- Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.
Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão, exclamou todo a tremer, quasi em soluços:
- Pois pode estar certo, meu pai, que hei de casar! Saiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o pai ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao hotel da Europa.
Dois dias depois Vilaça entrou em Benfica, com as lágrimas nos olhos, contando que o menino casara nessa madrugada - e segundo lhe dissera o Sergio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Itália.
Afonso da Maia sentara-se nesse instante à mesa do almoço, posta ao pé do fogão: ao centro, um ramo esfolhava-se num vaso do Japão, à chama forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o número da Grinalda, jornal de versos que ele costumava receber... Afonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo.
- Já almoçou, Vilaça?
O procurador, assombrado daquela serenidade, balbuciou:
- Já almocei, meu senhor...
Então Afonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:
- Pode tirar dali esse talher, Teixeira. Daqui por diante há só um talher à mesa... Sente-se, Vilaça, sente-se.
O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indiferença o talher do menino. Vilaça sentara-se. Tudo em redor era correto e calmo como nas outras manhãs em que almoçara em Benfica. Os passos do escudeiro não faziam ruído no tapete fofo; o lume estalava alegremente, pondo retoques de ouro nas pratas polidas; o sol discreto que brilhava fora no azul de inverno fazia cintilar cristais de geada nas ramas secas; e à janela o papagaio, muito patulea e educado por Pedro, rosnava injurias aos Cabrais.
Por fim Afonso ergueu-se; esteve olhando abstraidamente a quinta, os pavões no terraço; depois ao sair da sala tomou o braço de Vilaça, apoiou-se nele com força, como se lhe tivesse chegado a primeira tremura da velhice, e no seu abandono sentisse ali uma amizade segura. Seguiram o corredor, calados. Na livraria Afonso foi ocupar a sua poltrona ao pé da janela, começou a encher de vagar o seu cachimbo. Vilaça, de cabeça baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas pontas dos pés, como no quarto dum doente. Um bando de pardais veio gralhar um momento nos ramos duma alta árvore que roçava a varanda. Depois houve um silêncio, e Afonso da Maia disse:
- Então, Vilaça, o Saldanha lá foi demitido do Paço?...
O outro respondeu, vaga e maquinalmente:
- É verdade, meu senhor, é verdade...
E não se falou mais de Pedro da Maia.
Capítulo II
Pedro e Maria, no entanto, numa felicidade de novela, iam descendo a Itália, a pequenas jornadas, de cidade em cidade, nessa via sagrada que vai desde as flores e das messes da planície lombarda até ao mole país de romanza, Nápoles, branca sob o azul. Era lá que tencionavam passar o inverno, nesse ar sempre tépido junto a um mar sempre manso, onde as preguiças de noivado têm uma suavidade mais longa... Mas um dia, em Roma, Maria sentiu o apetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar assim, aos balouços das caleças, só para ir ver lazzaroni engolir fios de macarrão. Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elíseos, e gozarem ali um lindo inverno de amor! Paris estava seguro, agora, com o príncipe Luís Napoleão... Além disso, aquela velha Itália clássica enfastiava-a já: tantos mármores eternos, tantas madonas começavam (como ela dizia pendurada languidamente do pescoço de Pedro) a dar tonturas à sua pobre cabeça! Suspirava por uma boa loja de modas, sob as chamas do gás, ao rumor do boulevard... Depois tinha medo da Itália onde todo mundo conspirava.
Foram para França.
Mas por fim aquele Paris ainda agitado, onde parecia restar um vago cheiro de pólvora pelas ruas, onde cada face conservava um calor de batalha, desagradou a Maria. De noite acordava com a Marselhesa; achava um ar feroz à polícia; tudo permanecia triste; e as duquesas, pobres anjos, ainda não ousavam vir ao Bois, com medo dos operários, corja insaciável! Enfim demoraram-se lá até a primavera, no ninho que ela sonhara, todo de veludo azul, abrindo sobre os Campos Elíseos.
Depois principiou a falar-se de novo em revolução, em golpe de estado. A admiração absurda de Maria pelos novos uniformes da garde-mobile fazia Pedro nervoso. E quando ela apareceu grávida, ansiou por a tirar daquele Paris batalhador e fascinante, vir abrigá-la na pacata Lisboa adormecida ao sol.
Antes de partir porém escreveu ao pai.
Fora um conselho, quasi uma exigência de Maria. A recusa de Afonso da Maia ao principio desesperara-a. Não a afligia a desunião doméstica: mas aquele não afrontoso de fidalgo puritano marcara muito publicamente, muito brutalmente, a sua origem suspeita! Odiou o velho: e tinha apressado o casamento, aquela partida triunfante para Itália, para lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avós godos, brios de família - diante dos seus braços nus... Agora porém que ia voltar a Lisboa, dar soirées, criar corte, a reconciliação tornava-se indispensável: aquele pai retirado em Benfica, com o rígido orgulho de outras idades, faria lembrar constantemente, mesmo entre os seus espelhos e os seus estofos, o brigue Nova Linda carregado de negros... E queria mostrar-se a Lisboa pelo braço desse sogro tão nobre e tão ornamental, com as suas barbas de Viso-rei.
-Dize-lhe que já o adoro, murmurava ela curvada sobre a escrivaninha acariciando os cabelos de Pedro. Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei de pôr o nome dele... Escreve-lhe uma carta bonita, hein!
E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá. O pobre rapaz amava-o. Falou-lhe comovido da esperança de ter um filho varão; as desinteligências deviam findar em torno do berço daquele pequeno Maia que ali vinha, morgado e herdeiro do nome... Contava-lhe a sua felicidade com uma efusão de namorado indiscreto: a história da bondade de Maria, das suas graças, da sua instrução, enchia duas paginas: e jurava-lhe que apenas chegasse não tardaria uma hora em ir atirar-se aos seus pés...
Com efeito, apenas desembarcou, correu num trem a Benfica. Dois dias antes o pai partira para Santa Olavia: isto pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o acerbamente.
Fez-se então entre o pai e o filho uma grande separação. Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lho participou - dizendo dramaticamente ao Vilaça «que já não tinha pai!» Era uma linda bebé, muito gorda, loira e cor de rosa, com os belos olhos negros dos Maias. Apesar do desejo de Pedro, Maria não a quis criar; mas adorava-a com frenesi; passava dias de joelhos ao pé do berço, em êxtase, correndo as suas mãos cheias de pedrarias pelas carninhas tenras, pondo-lhe beijos de devota nos pésinhos, na rosquinha das coxas, balbuciando-lhe num enlevo nomes de grande amor, e perfurmando-a já, enchendo-a já de laçarotes.
E nestes delírios pela filha, brotava, mais amarga, a sua cólera contra Afonso da Maia. Considerava-se então insultada em si mesma e naquele querubim que lhe nascera. Injuriava o velho grosseiramente, chamava-lhe o D. Fuas, o Barbatanas...
Pedro um dia ouviu isto, e escandalizou-se: ela replicou desabridamente: e diante daquela face abrasada, onde entre lágrimas os olhos azuis pareciam negros de cólera, ele só pôde balbuciar timidamente:
- É meu pai, Maria...
Seu pai! E à face de toda a Lisboa tratava-a então como uma concubina! Podia ser um fidalgo, as maneiras eram de vilão. Um D. Fuas, um Barbatanas, nada mais!...
Arrebatou a filha, e abraçada nela, romperam as queixas por entre os prantos:
- Ninguém nos ama, meu anjo! Ninguém te quer! Tens só a tua mãe! Tratam-te como se fosses bastarda!
A bebé, sacudida nos braços da mãe, desatou a gritar. Pedro correu, envolveu-as ambas no mesmo abraço, já enternecido, já humilde; e tudo terminou num longo beijo.
E ele, por fim, no seu coração, justificava aquela cólera de mãe que vê desprezado o seu anjo. De resto, mesmo alguns amigos de Pedro, o Alencar, o D. João da Cunha, que começavam agora a frequentar Arroios, riam daquela obstinação de pai gótico, amuado na província, porque sua nora não tivera avós mortos em Aljubarrota! E onde havia outra em Lisboa, com aquelas toiletes, aquela graça, recebendo tão bem? Que diabo, o mundo marchara, saíra-se já das atitudes empertigadas do século XVI!
E o próprio Vilaça, um dia que Pedro lhe fora mostrar a pequerruchinha adormecida entre as rendas do seu berço, sensibilizou-se, veio-lhe uma da suas fáceis lágrimas, declarou, com a mão no coração, que aquilo era uma caturrice do Sr. Afonso da Maia!
- Pois pior para ele! não querer ver um anjo destes! disse Maria, dando diante do espelho um lindo jeito ás flores do cabelo. Também não faz cá falta...
E não fazia falta. Nesse outubro, quando a pequena completou o seu primeiro ano, houve um grande baile na casa de Arroios, que eles agora ocupavam toda, e que fora ricamente remobilada. E as senhoras que outrora tinham horror à negreira, a D. Maria da Gama que escondia a face por traz do leque, lá vieram todas, amáveis e decotadas, com o beijinho pronto, chamando-lhe «querida», admirando as grinaldas de camélias que emolduravam os espelhos de quatrocentos mil réis, e gozando muito os gelados.
Começara então uma existência festiva e luxuosa, que, segundo dizia o Alencar, o íntimo da casa, o cortesão de Madame, «tinham um saborsinho de orgia distinguée como os poemas de Byron.» Eram realmente as soirées mais alegres de Lisboa: ceava-se à uma hora com Champagne; talhava-se até tarde um monte forte; inventavam-se quadros vivos, em que Maria se mostrara soberanamente bela sob as roupagens clássicas de Helena ou no luxo sombrio do luto oriental de Judith. Nas noites mais intimas, ela costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha perfumada. Muitas vezes, na sala de bilhar, as palmas estalaram, vendo-a bater à carambola francesa D. João da Cunha, o grande taco da época.
E no meio desta festança, atravessada pelo sopro romântico da Regeneração, lá se via sempre, taciturno e encolhido, o papá Monforte, de alta gravata branca, com as mãos atrás das costas, rondando pelos cantos, refugiado pelos vãos das janelas, mostrando-se só para salvar alguma bobèche que ia estalar - e não desprendendo nunca da filha o olho embevecido e senil.
Nunca Maria fora tão formosa. A maternidade dera-lhe um esplendor mais copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz àquelas altas salas de Arroios, com a sua radiante figura de Juno loira, os diamantes das tranças, o ebúrneo e o lácteo do colo nu, e o rumor das grandes sedas. Com razão, querendo ter, à maneira das damas da Renascença, uma flor que a simbolizasse, escolhera a tulipa real opulenta e ardente.
Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas, rendas do valor de propriedades!... Podia faze-lo! o marido era rico, e ela sem escrúpulo arruiná-lo-ia, a ele e ao papá Monforte...
Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam. O Alencar esse proclamava-se com alarido seu «cavaleiro e seu poeta». Estava sempre em Arroios, tinha lá o seu talher: por aquelas salas soltava as suas frases ressoantes, por esses sofás arrastava as suas poses de melancolia. Ia dedicar a Maria (e nada havia mais extraordinário que o tom langoroso e plangente, o olho turvo, fatal, com que ele pronunciava este nome - MARIA!) ia dedicar-lhe o seu poema, tão anunciado, tão esperado - FLOR DE MARTYRIO! E citavam-se as estrofes que lhe fizera ao gosto cantante do tempo:
Vi-te essa noite no esplendor das salas
Com as loiras tranças volteando louca...
A paixão do Alencar era inocente: mas, dos outros íntimos da casa, mais dum de certo balbuciara já a sua declaração no boudoir azul em que ela recebia ás três horas, entre os seus vasos de tulipas; as suas amigas porém, mesmo as piores, afirmavam que os seus favores nunca teriam passado de alguma rosa dada num vão de janela, ou de algum longo e suave olhar por traz do leque. Pedro todavia começava a ter horas sombrias. Sem sentir ciúmes, vinha-lhe ás vezes, de repente, um tédio daquela existência de luxo e de festa, um desejo violento de sacudir da sala esses homens, os seus íntimos, que se atropelavam assim tão ardentemente em volta dos ombros decotados de Maria.
Refugiava-se então nalgum canto, trincando com furor o charuto: e aí, era em toda a sua alma um tropel de coisas dolorosas e sem nome...
Maria sabia perceber bem na face do marido «estas nuvens», como ela dizia. Corria para ele, tomava-lhe ambas as mãos, com força, com domínio:
- Que tens tu, amor? Estás amuado!
- Não, não estou amuado...
- Olha então para mim!...
Colava o seu belo seio contra o peito dele; as suas mãos corriam-lhe os braços numa carícia lenta e quente, dos pulsos aos ombros; depois, com um lindo olhar, estendia-lhe os lábios. Pedro colhia neles um longo beijo, e ficava consolado de tudo.
Durante esse tempo Afonso da Maia não saía das sombras de Sta. Olavia, tão esquecido para lá como se estivesse no seu jazigo. Já se não falava dele em Arroios, D. Fuas estava roendo a teima. Só Pedro ás vezes perguntava a Vilaça «como ia o papá.» E as noticias do administrador enfureciam sempre Maria: o papá estava óptimo; tinha agora um cozinheiro francês esplêndido; Sta. Olavia enchera-se de hospedes, o Sequeira, André da Ega, D. Diogo Coutinho...
- O Barbatanas trata-se! ia ela dizer ao pai com rancor.
E o velho negreiro esfregava as mãos, satisfeito de o saber assim feliz em Sta. Olavia; porque nunca cessara de tremer à ideia de ver em Arroios, diante de si, aquele fidalgo tão severo e de vida tão pura.
Quando porém Maria teve outro filho, um pequeno, o sossego que então se fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente ao coração de Pedro a imagem do pai abandonado naquela tristeza do Douro. Falou a Maria de reconciliação, a medo, aproveitando a fraqueza da convalescença. E a sua alegria foi grande, quando Maria, depois de ficar um momento pensativa, respondeu:
- Creio que me havia de fazer feliz te-lo aqui...
Pedro, entusiasmado com um assentimento tão inesperado, pensou em abalar para Sta. Olavia. Mas ela tinha um plano melhor: Afonso, segundo dizia o Vilaça, devia recolher em breve a Benfica; pois bem, ela iria lá com o pequeno, toda vestida de preto, e de repente, atirando-se-lhe aos pés, pedir-lhe-ia a benção para seu neto! Não podia falhar! Não podia, realmente; e Pedro viu ali uma alta inspiração de maternidade...
Para abrandar desde já o papá, Pedro quis dar ao pequeno o nome de Afonso. Mas nisso Maria não consentiu. Andava lendo uma novela de que era herói o ultimo Stuart, o romanesco príncipe Carlos Eduardo; e, namorada dele, das suas aventuras e desgraças, queria dar esse nome a seu filho... Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo um destino de amores e façanhas.
O baptizado teve de ser retardado; Maria adoecera com uma angina. Foi muito benigna porém; e daí a duas semanas Pedro podia já sair para uma caçada na sua quinta da Tojeira, adiante de Almada. Devia demorar-se dois dias. A partida arranjara-se unicamente para obsequiar um italiano, chegado por então a Lisboa, distinto rapaz que lhe fora apresentado pelo secretario da Legação Inglesa, e com quem Pedro simpatizara vivamente; dizia-se sobrinho dos Príncipes de Soria; e vinha fugido de Nápoles, onde conspirara contra os Bourbons, e fora condenado à morte. O Alencar e D. João Coutinho iam também à caçada - e a partida foi de madrugada.
Nessa tarde, Maria jantava só no seu quarto, quando sentiu carruagens parando à porta, um grande rumor encher a escada; quasi imediatamente Pedro aparecia-lhe tremulo e enfiado:
- Uma grande desgraça, Maria!
- Jesus!
- Feri o rapaz, feri o napolitano!...
- Como?
Um desastre estúpido!... Ao saltar um barranco, a espingarda dispara-se-lhe, e a carga, zás, vai cravar-se no napolitano! Não era possível fazer curativos na Tojeira, e voltaram logo a Lisboa. Ele naturalmente não consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao hotel: trouxera-o para Arroios, para o quarto verde por cima, mandara chamar o médico, duas enfermeiras para o velar, e ele mesmo lá ia passar a noite...
- E ele?
- Um herói!... Sorri, diz que não é nada, mas eu vejo-o pálido como um morto. Um rapaz adorável! Isto só a mim, Senhor! E então o Alencar que ia mesmo ao pé dele... Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz íntimo, de confiança! até a gente se ria. Mas não, zás, logo o outro, o de cerimónia...
Uma sege, nesse instante, entrava o pátio.
- É o médico!
E Pedro abalou.
Voltou daí a pouco mais tranquilo. O Dr. Guedes quasi rira daquela bagatela, uma chumbada no braço, e alguns grãos perdidos nas costas. Prometera-lhe que daí a duas semanas podia caçar outra vez na Tojeira; e o príncipe estava já fumando o seu charuto. Belo rapaz! Parecia simpatizar com o papá Monforte...
Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitação vaga que lhe dava aquela ideia dum príncipe entusiasta, conspirador, condenado à morte, ferido agora por cima do seu quarto.
Logo de manhã cedo - apenas Pedro saíra a fazer transportar, ele mesmo, do hotel, as bagagens do napolitano - Maria mandou a sua criada francesa de quarto, uma bela moça de Arles, acima, saber da parte dela como S. Alteza passara, e «ver que figura tinha». A arlesiana apareceu, com os olhos brilhantes, a dizer à senhora, nos seus grandes gestos de Provençal, que nunca vira um homem tão formoso! Era uma pintura de Nosso Senhor Jesus Cristo! Que pescoço, que brancura de mármore! Estava muito pálido ainda; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia; e ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros...
Maria, desde então, não pareceu interessar-se mais pelo ferido. Era Pedro que vinha, a cada instante, falar-lhe dele, entusiasmado por aquela existência patética de príncipe conspirador, partilhando já o seu ódio aos Bourbons, encantado com a similitude de gostos que encontrava nele, o mesmo amor da caça, dos cavalos, das armas. Agora logo de manhã, subia para o quarto do Príncipe, de robe-de-chambre e cachimbo na boca, e passava lá horas numa camaradagem, fazendo grogs quentes - permitidos pelo Dr. Guedes. Levava mesmo para lá os seus amigos, o Alencar, o D. João da Cunha. Maria sentia-lhes por cima as risadas. Ás vezes tocava-se viola. E o velho Monforte, pasmado para o herói, não cessava de lhe rondar o leito.
A Arlesiana, essa, também a cada momento aparecia lá a levar toalhas de rendas, um açucareiro que ninguém reclamara, ou algum vaso com flores para alegrar a alcova... Maria, por fim, perguntou a Pedro, muito seria, se além de todos os amigos da casa, duas enfermeiras, dois escudeiros, o papá e ele Pedro - era necessária também constantemente a sua própria criada no quarto de Sua Alteza!
Não era. Mas Pedro riu muito à ideia de que a Arlesiana se tivesse namorado do príncipe. Nesse caso Vénus era-lhe propicia! O napolitano também a achava picante: un très joli brin de femme, tinha ele dito.
A bela face de Maria empalideceu de cólera. Julgava tudo isso de mau gosto, grosseiro, impudente! Pedro fora realmente um doido em trazer assim para a intimidade de Arroios um estrangeiro, um fugido, um aventureiro! Demais, aquela troça em cima, entre grogs quentes, com guitarra, sem respeito por ela ainda toda nervosa, toda fraca da convalescença, indignava-a! Apenas Sua Alteza pudesse acomodar-se com almofadas numa sege, queria-o fora, na estalagem...
- O que aí vai! Jesus! o que aí vai!... disse Pedro.
- É assim.
E de certo foi muito severa também com a Arlesiana, por que nessa tarde Pedro encontrou a moça aos ais no corredor, limpando ao avental os olhos afogueados.
daí a dias, porém, o napolitano, já convalescente, quis recolher ao seu hotel. Não vira Maria: mas em agradecimento da sua hospitalidade mandou-lhe um admirável ramo, e, com uma galanteria de príncipe artista da Renascença, um soneto em italiano enrolado entre as flores e tão perfumado como elas: comparava-a a uma nobre dama da Síria dando a gota de água da sua bilha ao cavaleiro árabe, ferido na estrada ardente; comparava-a à Beatriz do Dante.
Isto afigurou-se a todos de uma rara distinção, e, como disse o Alencar, um rasgo à Byron.
Depois, na soirée do baptizado de Carlos Eduardo, dada daí a uma semana, o napolitano mostrou-se, e impressionou tudo. Era um homem esplêndido, feito como um Apolo, de uma palidez de mármore rico: a sua barba curta e frisada, os seus longos cabelos castanhos, cabelos de mulher, ondeados e com reflexos de ouro, apartados à nazarena - davam-lhe realmente, como dizia a Arlesiana, uma fisionomia de belo Cristo.
Dançou apenas uma contradança com Maria, e pareceu, na verdade, um pouco taciturno e orgulhoso: mas tudo nele fascinava, a sua figura, o seu mistério, até o seu nome de Tancredo. Muitos corações de mulher palpitavam quando ele, encostado a uma ombreira, de claque na mão, uma melancolia na face, exalando o encanto patético de um condenado à morte, derramava lentamente pela sala o langor sombrio do seu olhar de veludo. A marquesa de Alvenga, para o examinar de perto, pediu o braço a Pedro, e foi aplicar-lhe, como a um mármore de museu, a sua luneta de ouro.
- É de apetite! exclamou ela. É uma imagem!... E são amigos, são amigos, Pedro?
- Somos como dois irmãos de armas, minha senhora.
Nessa mesma soirée, o Vilaça informara Pedro que o pai era esperado no dia seguinte em Benfica. E Pedro, logo que se recolheram, falou a Maria em «irem fazer a grande cena ao papá.» Ela, porém, recusou, e com as razões mais imprevistas, as mais sensatas. Tinha cogitado muito! Reconhecia agora que um dos motivos daquela teima do papá - ultimamente chamava-lhe sempre o papá - era essa extraordinária existência de Arroios...
- Mas filha, disse Pedro, escuta, nós não vivemos também em plena orgia... Alguns amigos que vêem...
Pois sim, pois sim... Mas, realmente, estava decidida a ter um interior mais calmo e mais doméstico. Era mesmo melhor para os bebés. Pois bem, queria que o papá estivesse convencido dessa transformação, para que as pazes fossem mais fáceis e eternas.
- Deixa passar dois ou três meses... Quando ele souber como nós vivemos quietinhos, eu o trarei, sossega... É bom também que seja quando meu pai partir para as águas, para os Pirineus. Que o pobre papá, coitado, tem medo do teu... Filho, não achas assim melhor?
- És um anjo, foi a resposta de Pedro, beijando-lhe ambas as mãos.
Toda a antiga maneira de Maria pareceu com efeito ir mudando. Suspendera as soirées. Começou a passar as noites muito recolhidas, com alguns íntimos, no seu boudoir azul. Já não fumava; abandonara o bilhar; e vestida de preto, com uma flor nos cabelos, fazia crochet ao pé do candeeiro. Estudava-se música clássica quando vinha o velho Cazoti. O Alencar, que, imitando a sua dama, entrara também na gravidade, recitava traduções de Klopstock. Falava-se com sisudez de política; Maria era muito regeneradora.
E todas essas noites, Tancredo lá estava, indolente e belo, desenhando alguma flor para ela bordar, ou tangendo à guitarra canções populares de Nápoles. Todos ali o adoravam; mas ninguém mais que o velho Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata, contemplando o Príncipe com enternecimento. Depois, de repente, erguia-se, atravessava a sala, ia-se debruçar sobre ele, palpá-lo, senti-lo, respirá-lo, murmurando no seu francês de embarcadiço:
- Ça aler bien... Hein? Beaucoup bien... Ora estimo...
E estas correntes bruscas de afecto comunicavam-se decerto, porque nesse momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sorrisos para o papá ou vinha beijá-lo na testa.
De dia ocupava-se de coisas serias. Organizara uma útil associação de caridade, a Obra pia dos cobertores, com o fim de fazer no inverno ás famílias necessitadas distribuições de agasalhos; e presidia no salão de Arroios, com uma campainha, as reuniões em que se elaboravam os estatutos. Visitava os pobres. Ia também amiudadas vezes a uma devoção ás Igrejas, toda vestida de preto, a pé, com um véu muito espesso no rosto.
O esplendor da sua beleza aparecia agora velado por uma sombra tocante de ternura grave: a Deusa idealizava-se em Madona; e não era raro ouvi-la de repente suspirar sem razão.
Ao mesmo tempo a sua paixão pela filha crescia. Tinha então dois anos e estava realmente adorável; vinha todas as noites um momento à sala, vestida com um luxo de princesa; e as exclamações, os êxtases de Tancredo não findavam! Fizera-lhe o retrato a carvão, a esfuminho, a aquarela; ajoelhava-se para lhe beijar a mãozinha cor de rosa, como ao bambino sagrado. E Maria, agora, apesar dos protestos de Pedro, dormia sempre com ela entre os braços.
Ao começo desse setembro o velho Monforte partiu para os Pirineus. Maria chorou, dependurada do pescoço do velho, como se ele largasse de novo para as travessias de África.
Ao jantar, porém, chegou já consolada e radiante; e Pedro voltou a falar da reconciliação, parecendo-lhe bom o momento de ir a Benfica recuperar para sempre aquele papá tão teimoso...
- Ainda não, disse ela reflectindo, olhando o seu cálice de Bordéus. Teu pai é uma espécie de santo, ainda o não merecemos... Mais para o inverno.
Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Afonso da Maia estava no seu escritório lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeu a chorar perdidamente.
- Pedro! que sucedeu, filho?
Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo à sua solidão os dois netos, toda uma descendência para amar! E repetia, tremulo também, desprendendo-o de si com grande amor:
- Sossega, filho, que foi?
Pedro então caiu para o canapé, como cai um corpo morto; e levantando para o pai um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, numa voz surda:
- Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!
Afonso da Maia ficou diante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bela face, onde todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco, de uma grande cólera. Viu, num relance, o escândalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E era aquele filho que, desprezando a sua autoridade, ligando-se a essa criatura, estragara o sangue da raça, cobria agora a sua casa de vexame. E ali estava! ali jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de homem traído! Vinha atirar-se para um sofá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passear pela sala, rígido e áspero, cerrando os lábios para que não lhe escapassem as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam o peito em tumulto... - Mas era pai: ouvia, ali ao seu lado, aquele soluçar de funda dor; via tremer aquele pobre corpo desgraçado que ele outrora embalara nos braços; - parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se ele fosse ainda criança, restituindo-lhe ali e para sempre a sua ternura inteira.
- Tinha razão, meu pai, tinha razão, murmurava Pedro entre lágrimas.
Depois ficaram calados. Fora, as pancadas sucessivas da chuva batiam a casa, a quinta, num clamor prolongado; e as árvores, sob as janelas, ramalhavam num vasto vento de inverno.
Foi Afonso que quebrou o silêncio:
- Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só chorar...
- Não sei nada, respondeu Pedro num longo esforço. Sei que fugiu. Eu saí de Lisboa na segunda feira. Nessa mesma noite, ela partiu de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de jóias, uma criada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse à governante e à ama do pequeno que ia ter comigo. Elas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta.
Era um papel já sujo, e desde essa manhã de certo muitas vezes relido, amarrotado com fúria. Continha estas palavras:
«É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que não sou digna de ti, e levo a Maria que me não posso separar dela.»
- E o pequeno, onde está o pequeno? exclamou Afonso.
Pedro pareceu recordar-se:
- Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.
0 velho correu, logo; e daí a pouco aparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adorável bochecha fresca e cor de rosa. Todo ele ria, grulhando, agitando o seu guizo de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mão.
Afonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e acomodou o neto no colo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bela luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha domestica; agora só havia ali aquela facesinha tenra, que se lhe babava nos braços...
- Como se chama ele?
- Carlos Eduardo, murmurou a ama.
- Carlos Eduardo, hein?
Ficou a olha-lo muito tempo, como procurando nele os sinais da sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãozinhas vermelhas que não largavam o guizo, e muito grave, como se a criança o percebesse, disse-lhe:
- Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessário amar o avô!
E àquela forte voz, o pequeno, com efeito, abriu os seus lindos olhos para ele, sérios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãozinha, e martelou-lhe furiosamente a cabeça com o guizo.
Toda a face do velho sorria àquela viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, pôs-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo de avô; depois, com todo o cuidado, foi coloca-lo nos braços da ama.
- Vá, ama, vá... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe o quarto, vá ver o que é necessário.
Fechou a porta, e veio sentar-se junto do filho que se não movera do canto do sofá, nem despregara os olhos do chão.
- Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos não vemos há três anos, filho...
- Há mais de três anos, murmurou Pedro.
Ergueu-se, alongou a vista à quinta, tão triste sob a chuva; depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu próprio retrato, feito em Roma aos doze anos, todo de veludo azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda amargamente:
- Tinha razão, meu pai, tinha razão...
E pouco a pouco, passeando e suspirando, começou a falar daqueles últimos anos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliação, por fim aquela carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento tivera só ideias de sangue e quisera persegui-los. Mas conservava um clarão de razão. Seria ridículo, não é verdade? De certo a fuga fora de antemão preparada, e não havia de ir correndo as estalagens da Europa à busca de sua mulher... Ir lamentar-se à polícia, faze-los prender? Uma imbecilidade; nem impedia que ela fosse já por esses caminhos fora dormindo com outro... Restava-lhe somente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns anos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, sem mãe, com um mau nome. Paciência! Necessitava esquecer, partir para uma longa viagem, para a América talvez; e o pai veria, havia de voltar consolado e forte.
Dizia estas coisas sensatas, passeando devagar, com o charuto apagado nos dedos, numa voz que se acalmava. Mas de repente parou diante do pai, com um riso seco, um brilho feroz nos olhos.
- Sempre desejei ver a América, e é boa ocasião agora... É uma ocasião famosa, hein? Posso até naturalizar-me, chegar a presidente, ou rebentar... Ah! Ah!
- Sim, mais tarde, depois pensarás nisso, filho, acudiu o velho assustado.
Nesse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo do corredor.
- Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.
Teve um suspiro cansada e lento, murmurou:
- Nós jantávamos ás sete...
Quis então que o pai fosse para a mesa. Não havia motivo para que se não jantasse. Ele ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá tinha a cama, não é verdade? Não, não queria tomar nada...
- O Teixeira que me leve um cálice de genebra... Ainda cá está o Teixeira, coitado!
E vendo Afonso sentado, repetiu, já impaciente:
- Vá jantar meu pai, vá jantar, pelo amor de Deus...
Saiu. O pai ouviu-lhe os passos por cima, e o ruído de janelas desabridamente abertas. Foi então andando para a sala de jantar, onde os criados que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de pés, com a lentidão contristada duma casa onde há morte. Afonso sentou-se à mesa só; mas já lá estava outra vez o talher de Pedro; rosas de inverno esfolhavam-se num vaso do Japão; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro.
Afonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto do fogão; e ali ficou envolvido pouco a pouco naquele melancólico crepúsculo de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste contra as vidraças, pensando em todas as coisas terríveis que assim invadiam num tropel patético a sua paz de velho. Mas no meio da sua dor, funda como era, ele percebia um ponto, um recanto do seu coração onde alguma coisa de muito doce, de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se algures, no seu ser, estivesse rompendo, borbulhando uma nascente rica de alegrias futuras; e toda a sua face sorria à chama alegre, revendo a bochechinha rosada, sob as rendas brancas da touca...
Pela casa no entanto tinham-se acendido as luzes. Já inquieto subiu ao quarto do filho; estava tudo escuro, tão húmido e frio, como se a chuva caísse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz de Pedro veio do negro da janela: estava lá, com a vidraça aberta, sentado fora na varanda, voltado para a noite brava, para o sombrio rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a água, toda a invernia agreste.
- Pois estás aqui filho! exclamou Afonso. Os criados hão de querer arranjar o quarto, desce um momento... Estás todo molhado, Pedro!
Apalpava-lhe os joelhos, as mãos regeladas. Pedro ergueu-se com um estremeção, desprendeu-se, impaciente daquela ternura do velho.
- Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me tão bem!
O Teixeira trouxe luzes, e atrás dele apareceu o criado de Pedro, que chegara nesse momento de Arroios, com um largo estojo de viagem recoberto de oleado. As malas tinha-as deixado em baixo; e o cocheiro viera também, como nenhum dos senhores estava em casa...
- Bem, bem, interrompeu Afonso. O Sr. Vilaça lá irá amanhã, e ele dará as ordens.
O criado então, em bicos de pés, foi depor o estojo sobre o mármore da cómoda: ainda lá restavam antigos frascos de toilete de Pedro: e os castiçais sobre a mesa alumiavam o grande leito triste de solteiro com os colchões dobrados ao meio.
A Gertrudes toda atarefada entrara com os braços carregados de roupa de cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; o criado de Arroios pousando o chapéu a um canto, e sempre em ponta de pés, veio ajuda-los também. Pedro no entanto, como sonâmbulo, voltara para a varanda, com a cabeça à chuva, atraído por aquela treva da quinta que se cavava em baixo com um rumor de mar bravo.
Afonso, então, puxou-lhe o braço quasi com aspereza.
- Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento.
Ele seguiu maquinalmente o pai à livraria, mordendo o charuto apagado que desde tarde conservava na mão. Sentou-se longe da luz, ao canto do sofá, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo só os passos lentos do velho, ao comprido das altas estantes, quebraram o silêncio em que toda a sala ia adormecendo. Uma brasa morria no fogão. A noite parecia mais áspera. Eram de repente vergastadas de água contra as vidraças, trazidas numa rajada, que longamente, num clamor teimoso, faziam escoar um dilúvio dos telhados; depois havia uma calma tenebrosa, com uma susurração distante de vento fugindo entre ramagens: nesse silêncio as goteiras punham um pranto lento; e logo uma corda de vendaval corria mais furioso, envolvia a casa num bater de janelas, redomoinhava, partia com silvos desolados.
- Está uma noite de Inglaterra, disse Afonso, debruçando-se a espertar o lume.
Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente. De certo o ferira a ideia de Maria, longe, num quarto alheio, agasalhando-se-lhe no leito do adultério entre os braços do outro. Apertou um instante a cabeça nas mãos, depois veio junto do pai, com o passo mal firme, mas a voz muito calma.
- Estou realmente cansado, meu pai, vou-me deitar. Boa noite... Amanhã conversaremos mais.
Beijou-lhe a mão e saiu de vagar.
Afonso demorou-se ainda ali, com um livro na mão, sem ler, atento só a algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia em silêncio.
Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao quarto onde se fizera a cama da ama. A Gertrudes, o criado de Arroios, o Teixeira, estavam lá cochichando ao pé da cómoda, na penumbra que dava um fólio posto diante do candeeiro; todos se esquivaram em pontas de pés quando lhe sentiram os passos, e a ama continuou a arrumar em silêncio os gavetões. No vasto leito, o pequeno dormia como um Menino Jesus cansado, com o seu guizo apertado na mão. Afonso não ousou beijá-lo, para o não acordar com as barbas ásperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa contra a parede, deu um jeito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a sua dor acalmar-se naquela sombra de alcova onde o seu neto dormia.
- É necessário alguma coisa, ama? perguntou, abafando a voz.
- Não, meu senhor...
Então, sem ruído, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, à luz de duas velas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pai: e na face que ergueu, envelhecida e lívida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.
- Estou a escrever, disse ele.
Esfregou as mãos, como arrepiado da friagem do quarto, e acrescentou:
- Amanhã cedo é necessário que o Vilaça vá a Arroios... Estão lá os criados, tenho lá dois cavalos meus, enfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É número 32 a casa dele, não é? O Teixeira há de saber. Boas noites, papá, boas noites.
No seu quarto, ao lado da livraria, Afonso não pôde sossegar, numa opressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silêncio da casa e do vento que acalmara, ressoavam por cima lentos e contínuos os passos de Pedro.
A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo - quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava no tapete, Afonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.
Entre as duas velas que se extinguiam, com fogachos lívidos, deixara-lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o envelope, numa letra firme: Para o papá.
Daí a dias fechou-se a casa de Benfica. Afonso da Maia partia com o neto e com todos os criados para a quinta de Sta. Olavia.
Quando Vilaça, em fevereiro, foi lá acompanhar o corpo de Pedro, que ia ser depositado no jazigo de família, não pôde conter as lágrimas ao avistar aquela vivenda onde passara tão alegres natais. Um baetão preto recobria o brazão de armas, e esse pano de esquife parecia ter distingido todo o seu negrume sobre a fachada muda, sobre os castanheiros que ornavam o pátio; dentro os criados abafavam a voz, carregados de luto; não havia uma flor nas jarras; o próprio encanto de Sta. Olavia, o fresco cantar das águas vivas por tanques e repuchos, vinha agora com a cadencia saudosa de um choro. E Vilaça foi encontrar Afonso na livraria, com as janelas cerradas ao lindo sol de inverno, caído para uma poltrona, a face cavada sob os cabelos crescidos e brancos, as mãos magras e ociosas sobre os joelhos...
O procurador veio dizer para Lisboa que o velho não durava um ano.
Capítulo III
Mas esse ano passou, outros anos passaram.
Por uma manhã de abril, nas vésperas de Páscoa, Vilaça chegava de novo a Sta. Olavia.
Não o esperavam tão cedo; e como era o primeiro dia bonito dessa primavera chuvosa os senhores andavam para a quinta. O mordomo, o Teixeira, que ia já embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver o Sr. administrador com quem ás vezes se correspondia, e conduziu-o à sala de jantar onde a velha governante, a Gertrudes, tomada de surpresa, deixou cair uma pilha de guardanapos e para lhe saltar ao pescoço.
As três portas envidraçadas estavam abertas para o terraço, que se estendia ao sol, com a sua balaustrada de mármore coberta de trepadeiras: e Vilaça, adiantando-se para os degraus que desciam ao jardim, mal pôde reconhecer Afonso da Maia naquele velho de barba de neve, mas tão robusto e corado, que vinha subindo a rua de romanzeiras com o seu neto pela mão.
Carlos, ao avistar no terraço um desconhecido, de chapéu alto, abafado num cache-nez de pelúcia, correu a mira-lo, curioso - e achou-se arrebatado nos braços do bom Vilaça, que largara o guarda sol, o beijava pelo cabelo, pela face, balbuciando:
- Oh meu menino, meu querido menino! Que lindo que está! que crescido que está...
- Então, sem avisar, Vilaça? exclamava Afonso da Maia, chegando de braços abertos. Nós só o esperávamos para a semana, criatura!
Os dois velhos abraçaram-se; depois um momento os seus olhos encontraram-se, vivos e húmidos, e tornaram a apertar-se comovidos.
Carlos ao lado, muito sério, todo esbelto, com as mãos enterradas nos bolsos das suas largas bragas de flanela branca, o casquete da mesma flanela posta de lado sobre os belos anéis do cabelo negro - continuava a mirar o Vilaça, que com o beiço tremulo, tendo tirado a luva, limpava os olhos por baixo dos óculos.
- E ninguém a espera-lo, nem um criado lá em baixo no rio! dizia Afonso. Enfim, cá o temos, é o essencial... E como você está rijo, Vilaça!
- E V. Ex.ª meu senhor! balbuciou o administrador, engolindo um soluço. Nem uma ruga! Branco sim, mas uma cara de moço... Eu nem o conhecia!... Quando me lembro, a ultima vez que o vi... E cá isto! cá esta linda flor!...
Ia abraçar Carlos outra vez entusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma bela risada, saltou do terraço, foi pendurar-se dum trapésio armado entre as árvores, e ficou lá, balançando-se em cadencia, forte e airoso, gritando: «tu és o Vilaça!»
O Vilaça, de guarda sol debaixo do braço, contemplava-o embevecido.
- Está uma linda criança! Faz gosto! E parece-se com o pai. Os mesmo olhos, olhos dos Maias, o cabelo encaracolado... Mas há de ser muito mais homem!
- É são, é rijo, dizia o velho risonho, anediando as barbas. E como ficou o seu rapaz, o Manuel? Quando é esse casamento? Venha você cá para dentro, Vilaça, que há muito que conversar...
Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha na chaminé de azulejo esmorecia na fina e larga luz de abril; porcelanas e pratas resplandeciam nos aparadores de pau santo; os canários pareciam doidos de alegria.
A Gertrudes, que ficara a observar, acercou-se, com as mãos cruzadas sob o avental branco, familiar, terna.
- Então, meu senhor, aqui está um regalo, ver outra vez este ingrato em Sta. Olavia!
E, com um clarão de simpatia na face, alva e redonda como uma velha lua, ornada já de um buço branco:
-Ah! Sr. Vilaça, isto agora é outra coisa! Até os canários cantam! E também eu cantava, se ainda pudesse.
E foi saindo, subitamente comovida, já com vontade de chorar.
O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia duma à outra ponta dos seus altos colarinhos de mordomo.
- Eu creio que prepararam o quarto azul ao Sr. Vilaça, hein? disse Afonso. No quarto em que você costumava ficar dorme agora a viscondessa...
Então o Vilaça apressou-se a perguntar pela Sr.ª viscondessa. Era uma Runa, uma prima da mulher de Afonso, que, no tempo em que os poetas de Caminha a cantavam, casara com um fidalgote galego, o Sr. visconde de Urigo-de-la-Sierra, um borracho, um brutal que lhe batia: depois, viúva e pobre, Afonso recolhera-a por dever de parentela, e para haver uma senhora em Sta. Olavia.
Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relógio, Afonso interrompeu a relação desses achaques.
- Vilaça, vá-se arranjar, depressa, que daqui a pouco é o jantar.
O administrador surpreendido olhou também o relógio, depois a mesa já posta, os seis talheres, o cesto de flores, as garrafas de Porto.
- Então V. Ex.ª agora janta de manhã? Eu pensei que era o almoço...
- Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regime. De madrugada está já na quinta; almoça ás sete; e janta à uma hora. E eu, enfim, para vigiar as maneiras do rapaz...
- E o Sr. Afonso da Maia, exclamou Vilaça, a mudar de hábitos, nessa idade! O que é ser avô, meu senhor!
- Tolice! não é isso... É que me faz bem. Olhe que me faz bem!... Mas avie-se, Vilaça, avie-se que Carlos não gosta de esperar... Talvez tenhamos o abade.
- O Custódio? Rica coisa! Então, se V. Ex.ª me dá licença...
Apenas no corredor, o mordomo, ansioso por conversar com o Sr. administrador, perguntou-lhe, desembaraçando-o do guarda sol e do chale-manta:
- Com franqueza, como nos acha por cá, pela quinta Sr. Vilaça?
- Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir por gosto a Sta. Olavia.
E, pousando familiarmente a mão no ombro do escudeiro, piscando o olho ainda húmido:
- Tudo isto é o menino. Fez reviver o patrão! O Teixeira riu respeitosamente. O menino realmente era a alegria da casa...
- Olá! Quem toca por cá? exclamou Vilaça, parando nos degraus da escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rebeca.
- É o Sr. Brown, o inglês, o preceptor do menino... Muito habilidoso, é um regalo ouvi-lo; toca ás vezes à noite na sala, o Sr. juiz de direito acompanha-o na concertina... Aqui, Sr. Vilaça, o quarto de V. S.ª...
- Muito bonito, sim senhor!
O verniz dos móveis novos brilhava na luz das duas janelas, sobre o tapete alvadio semeado de florzinhas azuis: e as bambinelas, os reposteiros de cretone, repetiam as mesmas folhagens azuladas sobre fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou o bom Vilaça.
Foi logo apalpar os cretones, esfregou o mármore da cómoda, provou a solidez das cadeiras. Eram as mobílias compradas no Porto, hein? Pois, elegantes. E, realmente, não tinham sido caras. Nem ele fazia ideia! Ficou ainda em bicos de pés a examinar duas aguarelas inglesas representando vacas de luxo, deitadas na relva, à sombra de ruínas românticas. O Teixeira, observou-lhe, com o relógio na mão:
- Olhe que V. S.ª tem só dez minutos... O menino não gosta de esperar.
Então o Vilaça decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois tirou o seu pesado colete de malha de lã; e pela camisa entreaberta via-se ainda uma flanela escarlate por causa dos reumatismos, e os bentinhos de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias da maleta; ao fundo do corredor, a rebeca atacara o Carnaval de Veneza; e através das janelas fechadas sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos campos, todo o verde de abril.
Vilaça, sem óculos, um pouco arrepiado, passava a ponta da toalha molhada pelo pescoço, por traz da orelha, e ia dizendo:
- Então, o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hein? Já se sabe, é ele quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente...
Mas o Teixeira muito grave, muito sério, desiludiu o Sr. administrador. Mimos e mais mimos, dizia s. S.ª? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se ele fosse a contar ao Sr. Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro duma tina de água fria, ás vezes a gear lá fora... E outras barbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensa-lo... Mas não, parece que era sistema inglês! Deixava-o correr, cair, trepar ás árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas coisas... E ás vezes a criancinha, com os olhos abertos, a águar! Muita, muita dureza.
E o Teixeira acrescentou:
- Enfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós aprovássemos a educação que tem levado, isso nunca aprovámos, nem eu, nem a Gertrudes.
Olhou outra vez o relógio, preso por uma fita negra sobre o colete branco, deu alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade, em quanto dizia, junto ao toucador onde o Vilaça acamava as duas longas repas sobre a calva:
- Sabe V. S.ª, apenas veio o mestre inglês, o que lhe ensinou? A remar! A remar, Sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem contar o trapésio, e as habilidades de palhaço; eu nisso nem gosto de falar... Que eu sou o primeiro a dize-lo: o Brown é boa pessoa, calado, asseado, excelente músico. Mas é o que eu tenho repetido à Gertrudes: pode ser muito bom para inglês, não é para ensinar um fidalgo português... Não é. Vá V. S.ª falar a esse respeito com a Sr.ª D. Ana Silveira...
Bateram de manso à porta, o Teixeira emudeceu. Um escudeiro entrou, fez um sinal ao mordomo, tirou-lhe do braço respeitosamente a sobrecasaca, e ficou com ela junto do toucador, onde o Vilaça, vermelho e apressado, lutava ainda com as repas rebeldes.
O Teixeira, da porta, disse com o relógio na mão:
- É o jantar. Tem V. S.ª dois minutos, Sr. Vilaça.
E o administrador daí a um momento abalava também, abotoando ainda o casaco pelas escadas.
Os senhores já estavam todos na sala. Junto do fogão, onde as achas consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o Times. Carlos, a cavalo nos joelhos do avô, contava-lhe uma grande história de rapazes e de bulhas; e ao pé o bom abade Custódio, com o lenço de rapé esquecido nas mãos, escutava, de boca aberta, num riso paternal e terno.
- Olhe quem ali vem, abade, disse-lhe Afonso.
O abade voltou-se, e deu uma grande palmada na coxa:
- Esta é nova! Então é o nosso Vilaça? E não me tinham dito nada! Venham de lá esses ossos, homem!...
Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido com aqueles longos abraços que juntavam as duas cabeças dos velhos - uma com as repas achatadas sobre a calva, outra com uma grande coroa aberta numa mata de cabelo branco. E como eles, de mãos dadas, continuavam a admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos anos, Afonso disse:
- Vilaça! a Sr.ª viscondessa...
O administrador porém procurou-a debalde, com os olhos abertos pela sala. Carlos ria, batendo as mãos: - e Vilaça descobriu-a enfim a um canto, entre o aparador e a janela, sentada numa cadeirinha baixa, vestida de preto, tímida e queda, com os braços rechonchudos pousados sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e mole, branco como papel, as roscas do pescoço, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; não achou uma palavra para dizer ao Vilaça, e estendeu-lhe a mão papuda e pálida, com um dedo embrulhado num pedaço de seda negra. Depois ficou a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar, os olhos no regaço, como exausta daquele esforço.
Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa, o Teixeira esperava, perfilado por traz do alto espaldar da cadeira de Afonso.
Mas Carlos cavalgava ainda o avô, querendo acabar outra história. Era o Manuel, trazia uma pedra na mão... Ele primeiro pensara ir ás boas; mas os dois rapazes começaram a rir... De maneira que os correu a todos...
- E maiores que tu?
- Três rapagões, vovô, pode perguntar à tia Pedra... Ela viu, que estava na eira. Um deles trazia uma foice...
- Está bom, senhor, está bom, ficamos inteirados... Vá, desmonte, que está a sopa a esfriar. Upa! upa!
E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarca feliz, veio sentar-se ao alto da mesa, sorrindo e dizendo:
- Já se vai fazendo pesado, já não está para colo...
Mas reparou então no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentação do procurador.
- O Sr. Brown, o amigo Vilaça... Peço perdão, descuidei-me, foi culpa daquele cavalheiro lá ao fundo da mesa, o Sr. D. Carlos de mata-sete!
O preceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu toda a volta à mesa, rígido e teso, para vir sacudir o Vilaça num tremendo shake-hands; depois, sem uma palavra, reocupou o seu lugar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidáveis bigodes, e foi então que disse ao Vilaça, com o seu forte acento inglês:
- Muito belo dia... glorioso!
- Tempo de rosas, respondeu o Vilaça, cumprimentando, intimidado diante daquele atleta.
Naturalmente, nesse dia, falou-se da jornada de Lisboa, do bom serviço da mala-posta, do caminho de ferro que se ia abrir... O Vilaça já viera no comboio até ao Carregado.
- De causar horror, hein? perguntou o abade, suspendendo a colher que ia levar à boca.
O excelente homem nunca saíra de Resende; e todo o largo mundo, que ficava para além da penumbra da sua sacristia e das árvores do seu passal, lhe dava o terror duma Babel. Sobre tudo essa estrada de ferro, de que tanto se falava...
- Faz arrepiar um bocado, afirmou com experiência Vilaça. Digam o que disserem, faz arrepiar!
Mas o abade assustava-se sobre tudo com as inevitáveis desgraças dessas máquinas!
O Vilaça então lembrou os desastres da mala-posta. No de Alcobaça, quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irmãs de caridade! Enfim de todos os modos havia perigos. Podia-se quebrar uma perna a passear no quarto...
O abade gostava do progresso... Achava até necessário o progresso. Mas parecia-lhe que se queria fazer tudo à lufa-lufa... O país não estava para essas invenções; o que precisava eram boas estradinhas...
- E economia! disse o Vilaça, puxando para si os pimentões.
- Bucelas? murmurou-lhe sobre o ombro o escudeiro.
O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe à luz a cor rica, provou-o com a ponta do lábio, e piscando o olho para Afonso:
- É do nosso!
- Do velho, disse Afonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom néctar?
- Magnificente! exclamou o perceptor com uma energia fogosa.
Então Carlos, estendendo o braço por cima da mesa, reclamou também Bucelas. E a sua razão era haver festa por ter chegado o Vilaça. O avô não consentiu; o menino teria o seu cálice de Colares, como de costume, e um só. Carlos cruzou os braços sobre o guardanapo que lhe pendia do pescoço, espantado de tanta injustiça! Então nem para festejar o Vilaça poderia apanhar uma gotinha de Bucelas? Aí estava uma linda maneira de receber os hospedes na quinta... A Gertrudes dissera-lhe que como viera o Sr. administrador, havia de pôr à noite para o chá o fato novo de veludo. Agora observavam-lhe que não era festa, nem caso para Bucelas... Então não entendia.
O avô, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente um carão severo.
- Parece-me que o senhor está palrando de mais. As pessoas grandes é que palram à mesa.
Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito mansamente:
- Está bom, vovô, não te zangues. Esperarei para quando for grande...
Houve um sorriso em volta da mesa. A própria viscondessa, deleitada, agitou preguiçosamente o leque: o abade, com a sua boa face banhada em êxtase para o menino, apertava as mãos cabeludas contra o peito, tanto aquilo lhe parecia engraçado: e Afonso tossia por traz do guardanapo, como limpando as barbas - a esconder o riso, a admiração que lhe brilhava nos olhos.
Tanta vivacidade surpreendeu também Vilaça. Quis ouvir mais o menino, e pousando o seu talher:
- E diga-me, Carlinhos, já vai adiantado nos seus estudos?
O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as mãos pelo cós das flanelas, e respondeu com um tom superior:
- Já faço ladear a Brigida.
Então o avô, sem se conter, largou a rir, caído para o espaldar da cadeira:
- Essa é boa! Eh! Eh! Já faz ladear a Brigida! E é verdade, Vilaça, já a faz ladear... Pergunte ao Brown; não é verdade, Brown? E a éguasita é uma piorrita, mas fina...
- Oh vovô, gritou Carlos já excitado, dize ao Vilaça, anda. Não é verdade que eu era capaz de governar o dog-cart?
Afonso reassumiu um ar severo.
- Não o nego... Talvez o governasse, se lho consentissem. Mas faça-me favor de se não gabar das suas façanhas, porque um bom cavaleiro deve ser modesto... E sobre tudo não enterrar assim as mãos pela barriga abaixo...
O bom Vilaça, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma observação. Não se podia de certo ter melhor prenda que montar a cavalo com as regras... Mas ele queria dizer se o Carlinhos já entrava com o seu Fedro, o seu Tito Liviosinho...
- Vilaça, Vilaça, advertiu o abade, de garfo no ar e um sorriso de santa malícia, não se deve falar em latim aqui ao nosso nobre amigo... Não admite, acha que é antigo... Ele, antigo é...
- Ora sirva-se desse fricassé, ande abade, disse Afonso, que eu sei que é o seu fraco, e deixe lá o latim...
O abade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaços de ave, ia murmurando:
- Deve-se começar pelo latinzinho, deve-se começar por lá... É a base; é a basezinha!
- Não! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro forrça! Forrça! Músculo...
E repetiu, duas vezes, agitando os formidáveis punhos:
- Prrimeiro musculo, musculo!...
Afonso apoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo de erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma criança numa língua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e outros negócios duma nação extinta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras coisas do Universo em que vive...
- Mas enfim os clássicos, arriscou timidamente o abade.
- Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo duma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...
O abade coçava a cabeça, com o ar arrepiado.
- A instruçãosinha é necessária, disse ele. Você não acha, Vilaça? Que V. Ex.ª, Sr. Afonso da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas enfim a instruçãosinha...
- A instrução para uma criança não é recitar Titire, tu patulae recubans... É saber factos, noções, coisas úteis, coisas praticas...
Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, num sinal ao Vilaça, mostrou-lhe o neto que palrava inglês com o Brown. Eram de certo feitos de força, uma história de briga com rapazes que ele lhe estava a contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor aprovava, retorcendo os bigodes. E à mesa os senhores com os garfos suspensos, por traz os escudeiros de pé e guardanapo no braço, todos, num silêncio reverente, admiravam o menino a falar inglês.
- Grande prenda, grande prenda, murmurou Vilaça, inclinando-se para a Viscondessa.
A excelente senhora corou, através dum sorriso. Parecia assim mais gorda, toda acaçapada na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a cada gole de Bucelas, refrescava-se languidamente com o seu grande leque negro e lentejoulado.
Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Afonso fez uma saúde ao Vilaça. Todos os copos se ergueram num rumor de amizade. Carlos quis gritar Hurrah! O avô, com um gesto repreensivo, imobilizou-o; e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse com uma grande convicção:
- Oh avô, eu gosto do Vilaça. O Vilaça é nosso amigo.
- Muito, e há muitos anos, meu senhor! exclamou o velho procurador, tão comovido que mal podia erguer o cálice na mão.
O jantar findava. Fora, o sol deixara o terraço e a quinta verdejava na grande doçura do ar tranquilo, sob o azul ferrete. Na chaminé só restava uma cinza branca: os lilases das jarras exalavam um aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado de um fio de limão: os criados, de coletes brancos, moviam o serviço donde se escapava algum som argentino: e toda a alva toalha adamascada desaparecia sob a confusão da sobremesa onde os tons dourados do vinho do Porto brilhavam entre as compoteiras de cristal. A Viscondessa afogueada abanava-se. Padre Custódio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coçada luzia nas pregas das mangas.
Então Afonso, sorrindo ternamente, fez a ultima saúde.
- Viva V. S.ª, Sr. Carlos de Mata-sete!
- Sr. Vovô! dizia o pequeno escorropichando o copo. A cabecinha de cabelos negros, a velha face de barbas de neve, saudavam-se das extremidades da mesa - em quanto todos sorriam, no enternecimento daquela cerimónia. Depois o abade, de palito na boca, murmurou as graças. A Viscondessa, cerrando os olhos, juntou também as mãos. E Vilaça que tinha crenças religiosas não gostou de ver Carlos, sem se importar com as graças, saltar da cadeira, vir atirar-se ao pescoço do avô, falar-lhe ao ouvido.
- Não senhor! não senhor! dizia o velho.
Mas o rapaz, abraçando-o mais forte, dava-lhe grandes razões, num murmúrio de mimo doce como um beijo, que ia pondo na face do velho uma fraqueza indulgente.
- É por ser festa, disse ele enfim vencido. Mas veja lá, veja lá...
O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Vilaça pelos braços, fê-lo redemoinhar, e foi cantando num ritmo seu:
- Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Terezinha, inha, inha, inha!
- É a noiva, disse o avô, erguendo-se da mesa. Já tem amores, é a pequena das Silveiras... O café para o terraço, Teixeira.
O dia fora convidava, adorável, dum azul suave, muito puro e muito alto, sem uma nuvem. Defronte do terraço os gerânios vermelhos estavam já abertos; as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, duma delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro; vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado ao perfume adocicado das flores do campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina faiscava de leve aquele sol tímido de primavera tardia, que ao longe envolvia os verdes da quinta, adormecida a essa hora de sesta numa luz fresca e loura.
Os três homens sentaram-se à mesa do café. Defronte do terraço, o Brown, de boné escocês posto ao lado e grande cachimbo na boca, puxava ao alto a barra do trapésio para Carlos se balouçar. Então o bom Vilaça pediu para voltar as costas. Não gostava de ver ginásticas; bem sabia que não havia perigo; mas mesmo nos cavalinhos, as cabriolas, os arcos, atordoavam-no; saía sempre com o estômago embrulhado...
- E parece-me imprudente, sobre o jantar...
- Qual! é só balouçar-se... Olhe para aquilo!
Mas Vilaça não se moveu, com a face sobre a chávena.
O abade, esse, admirava, de lábios entreabertos, e o pires cheio de café esquecido na mão.
- Olhe para aquilo Vilaça, repetiu Afonso. Não lhe faz mal, homem!
O bom Vilaça voltou-se, com esforço. O pequeno muito alto no ar, com as pernas retesadas contra a barra do trapézio, as mãos ás cordas, descia sobre o terraço, cavando o espaço largamente, com os cabelos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno sol; todo ele sorria; a sua blusa, os calções enfunavam-se à aragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito negros e muito abertos.
- Não está mais na minha mão, não gosto, disse o Vilaça. Acho imprudente!
Então Afonso bateu as palmas, o abade gritou bravo, bravo. Vilaça voltou-se para aplaudir, mas Carlos tinha já desaparecido; o trapézio parava, em oscilações lentas; e o Brown, retomando o Times que pusera ao lado sobre o pedestal dum busto, foi descendo para a quinta envolvido numa nuvem de fumo do cachimbo.
- Bela coisa, a ginástica! exclamou Afonso da Maia, acendendo com satisfação outro charuto.
Vilaça já ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abade, depois de dar um sorvo ao café, de lamber os beiços, soltou a sua bela frase, arranjada em máxima:
- Esta educação faz atletas mas não faz cristãos. Já o tenho dito...
- Já o tem dito abade, já! exclamou Afonso alegremente. Diz-mo todas as semanas... Quer você saber, Vilaça? O nosso Custódio mata-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!...
Custódio ficou um momento a olhar Afonso, com uma face desconsolada e a caixa de rapé aberta na mão; a irreligião daquele velho fidalgo, senhor de quasi toda a freguesia, era uma das suas dores:
- A cartilha, sim meu senhor, ainda que V. Ex.ª o diga assim com esse modo escarnica... A cartilha. Mas já não quero falar na cartilha... Há outras coisas. E se o digo tantas vezes, Sr. Afonso da Maia, é pelo amor que tenho ao menino.
E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao café, quando Custódio jantava na quinta.
O bom homem achava horroroso que naquela idade um tão lindo moço, herdeiro duma casa tão grande, com futuras responsabilidades na sociedade, não soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao Vilaça a história da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do escrivão, tendo passado diante do portão da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga de crianças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o acto de contricção. E que respondeu o menino? Que nunca em tal ouvira falar! Estas coisas entristeciam. E o Sr. Afonso da Maia achava-lhe graça, ria-se! Ora ali estava o amigo Vilaça que podia dizer se era caso para jubilar. Não, o Sr. Afonso da Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas duma coisa não o podia convencer, a ele pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que houvesse felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do catecismo.
E Afonso da Maia respondia com bom humor:
- Então que lhe ensinava você, abade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que se não deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os inferiores, por que isso é contra os mandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno, hein? É isso?...
- Há mais alguma coisa...
- Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer, por ser um pecado que ofende a Deus, já ele sabe que se não deve praticar, por que é indigno dum cavalheiro e dum homem de bem...
- Mas, meu senhor...
- Ouça abade. Toda a diferença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo ás caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu...
E acrescentou, erguendo-se e sorrindo:
- Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abade, é quando vem, depois de semanas de chuva, um dia destes, ir respirar pelos campos e não estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! e se o Vilaça não está muito cansado, vamos dar aí um giro pelas fazendas...
O abade suspirou como um santo que vê a negra impiedade dos tempos e Belzebut arrebatando as melhores rezes do rebanho; depois olhou a chávena e sorveu com delícias o resto do seu café.
Quando Afonso da Maia, Vilaça e o abade recolheram do seu passeio pela freguesia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado já as Silveiras, senhoras ricas da quinta da Lagoaça.
D. Ana Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da família, e era em pontos de doutrina e de etiqueta uma grande autoridade em Resende. A viúva, D. Eugénia, limitava-se a ser uma excelente e pachorrenta senhora, de agradável nutrição, trigueirota e pestanuda; tinha dois filhos, a Terezinha, a noiva de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabelos negros como tinta, e o morgadinho, o Euzebiosinho, uma maravilha muito falada naqueles sítios.
Quasi desde o berço este notável menino revelara um edificante amor por alfarrábios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado num cobertor, folheando in-fólios, com o crâniosinho calvo de sábio curvado sobre as letras garrafais de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal propósito que permanecia horas imóvel numa cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca apetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o pasmo da mamã e da titi, passava dias a traçar algarismos, com a linguasinha de fora.
Assim na família tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia, a tia Anica instalava-o logo à mesa, ao pé do candeeiro, a admirar as pinturas dum enorme e rico volume, os Costumes de todos os povos do Universo. Já lá estava essa noite, vestido como sempre de escocês, com o plaid de flamejante xadrez vermelho e negro posto a tiracolo e preso ao ombro por uma dragona; para que conservasse o ar nobre dum Stuart, dum valoroso cavaleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o bonet onde se arqueava com heroismo uma rutilante pena de galo; e nada havia mais melancólico que a sua facesinha trombuda, a que o excesso
de lombrigas dava uma moleza e uma amarelidão de manteiga, os seus olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a ciência lhas tivesse já consumido, pasmando com sisudez para as camponesas da Sicília, e para os guerreiros ferozes do Montenegro apoiados a escopetas, em píncaros de serranias.
Diante do canapé das senhoras lá se achava também o fiel amigo, o Dr. delegado, grave e digno homem, que havia cinco anos andava ponderando e meditando o casamento com a Silveira viúva, sem se decidir - contentando-se em comprar todos os anos mais meia dúzia de lençóis, ou uma peça mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras eram discutidas em casa das Silveiras, à braseira: e as alusões recatadas, mas inevitáveis, ás duas fronhasinhas, ao tamanho dos lençóis, aos cobertores de papa para os aconchegas de janeiro - em lugar de inflamar o magistrado, inquietavam-no. Nos dias seguintes aparecia preocupado - como se a perspectiva da santa consumação do matrimónio lhe desse o arrepio de uma façanha a empreender, o ter de agarrar um touro, ou nadar nos cachões do Douro. Então, por qualquer razão especiosa, adiava-se o casamento até ao S. Miguel seguinte. E aliviado, tranquilo, o respeitável Dr. continuava a acompanhar as Silveiras a chás, festas de igreja ou pêsames, vestido de preto, afável, serviçal, sorrindo a D. Eugénia, não desejando mais prazeres que os dessa convivência paternal.
Apenas Afonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o Dr. juiz de direito e a senhora não podiam vir, por que o magistrado tivera a dor; e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer dezassete anos que morrera o mano Manuel...
- Bem, disse Afonso, bem. A dor, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos nós um voltaretesinho de quatro. Que diz o nosso Dr. delegado?
O excelente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que «estava ás ordens.»
- Então ao dever, ao dever! exclamou logo o abade, esfregando as mãos, no ardor já da partida.
Os parceiros dirigiram-se à saleta do jogo - que um reposteiro de damasco separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos círculos de luz que caíam dos abat-jour os baralhos abertos em leque. daí a um momento o Dr. delegado voltou, risonho, dizendo que «os deixara para um roquesinho de três»; e retomou o seu lugar ao lado de D. Eugénia, cruzando os pés debaixo da cadeira e as mãos em cima do ventre. As senhoras estavam falando da dor do Dr. juiz de direito. Costumava dar-lhe todos os três meses: e era condenável a sua teima em não querer consultar médicos. Quanto mais que ele andava acabado, ressequindo, amarelando - e a D. Augusta, a mulher, a nutrir à larga, a ganhar cores!... A Viscondessa, enterrada em toda a sua gordura ao canto do canapé, com o leque aberto sobre o peito, contou que em Espanha vira um caso igual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa; e ao principio fora o contrario; até sobre isso se tinham feito uns versos...
- Humores, disse com melancolia o Dr. delegado.
Depois falou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco, coitadinho, na flor de idade! E que perfeição de rapaz! E que rapaz de juizo! D. Ana Silveira não se esquecera, como todos os anos, de lhe acender uma lamparina por alma, e de lhe rezar três padre-nossos. A viscondessa pareceu toda aflita por se não ter lembrado... E ela que tinha o propósito feito!
- Pois estive para to mandar dizer! exclamou D. Ana. E as Brancos que tanto o agradecem, filha!
- Ainda está a tempo, observou o magistrado.
D. Eugénia deu uma malha indolente no crochet de que nunca se separava, e murmurou com um suspiro:
- Cada um tem os seus mortos.
E no silêncio que se fez, saiu do canto do canapé outro suspiro, o da viscondessa, que de certo se recordara do fidalgo de Urigo de la Sierra, e murmurava:
- Cada um tem os seus mortos...
E o digno Dr. delegado terminou por dizer igualmente, depois de passar reflectidamente a mão pela calva:
- Cada um tem os seus mortos!
Uma sonolência ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles, as chamas das velas erguiam-se altas e tristes. Euzebiosinho voltava com cautela e arte as estampas dos Costumes de todos os Povos. E na saleta de jogo, através do reposteiro aberto, sentia-se a voz já arrenegada do abade, rosnando com um rancor tranquilo, «passo, que é o que tenho feito toda a santa noite!»
Nesse momento Carlos arremetia pela sala dentro arrastando a sua noiva, a Teresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas vozes reanimou o canapé dormente.
Os noivos tinham chegado duma pitoresca e perigosa viagem, e Carlos parecia descontente de sua mulher; comportara-se duma maneira atroz; quando ele ia governando a mala-posta, ela quisera empoleirar-se ao pé dele na almofada... Ora senhoras não viajam na almofada.
- E ele atirou-me ao chão, titi!
- Não é verdade! De mais a mais é mentirosa! Foi como quando chegámos à estalagem... Ela quis-se deitar, e eu não quis... A gente, quando se apeia de viagem, a primeira coisa que faz é tratar do gado... E os cavalos vinham a escorrer...
A voz de D. Ana interrompeu, muito severa:
- Está bom, está bom, basta de tolices! Já cavalaram bastante. Senta-te aí ao pé da Sr.ª Viscondessa, Tereza... Olhe essa travessa do cabelo... Que despropósito!
Sempre detestara ver a sobrinha, uma menina delicada de dez anos, brincar assim com o Carlinhos. Aquele belo e impetuoso rapaz, sem doutrina e sem propósito, aterrava-a; e pela sua imaginação de solteirona passavam sem cessar ideias, suspeitas de ultrages que ele poderia fazer à menina. Em casa, ao agasalha-la antes de vir para Sta. Olavia, recomendava-lhe com força que não fosse com o Carlos para os recantos escuros! que o não deixasse mexer-lhe nos vestidos!... A menina, que tinha os olhos muito langorosos, dizia: «Sim, titi.» Mas, apenas na quinta, gostava de abraçar o seu maridinho. Se eram casados, por que não haviam de fazer nené, ou ter uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas o violento rapaz só queria guerras, quatro cadeiras lançadas a galope, viagens a terras de nomes bárbaros que o Brown lhe ensinava. Ela, despeitada, vendo o seu coração mal compreendido, chamava-lhe arrieiro; ele ameaçava boxa-la, à inglesa; - e separavam-se sempre arrenegados.
Mas quando ela se acomodou ao lado da Viscondessa, gravesinha e com as mãos no regaço - Carlos veio logo estirar-se ao pé dela, meio deitado para as costas do canapé, bamboleando as pernas.
- Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito seca D. Ana.
- Estou cansado, governei quatro cavalos, replicou ele, insolente e sem a olhar.
De repente porém, dum salto, precipitou-se sobre o Euzebiosinho. Queria-o levar à África, a combater os selvagens: e puxava-o já pelo seu belo plaid de cavaleiro de Escócia, quando a mamã acudiu aterrada.
- Não, com o Euzebiosinho não, filho! Não tem saúde para essas cavaladas... Carlinhos, olhe que eu chamo o avô!
Mas o Euzebiosinho, a um repelão mais forte, rolara no chão, soltando gritos medonhos. Foi um alvoroço, um levantamento. A mãe, tremula, agachada junto dele, punha-o de pé sobre as perninhas moles, limpando-lhe as grossas lágrimas, já com o lenço, já com beijos, quasi a chorar também. O delegado, consternado, apanhara o bonet escocês, e cofiava melancolicamente a bela pena de galo. E a Viscondessa apertava ás mãos ambas o enorme seio, como se as palpitações a sufocassem.
O Euzebiosinho foi então preciosamente colocado ao lado da titi; e a severa senhora, com um fulgor de cólera na face magra, apertando o leque fechado como uma arma, preparava-se a repelir o Carlinhos que, de mãos atrás das costas e aos pulos em roda do canapé, ria, arreganhando para o Euzebiosinho um lábio feroz. Mas nesse momento davam nove horas, e a desempenada figura do Brown apareceu à porta.
Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detrás da Viscondessa, gritando:
- Ainda é muito cedo, Brown, hoje é festa, não me vou deitar!
Então Afonso da Maia, que se não movera aos uivos lacinantes do Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade:
- Carlos, tenha a bondade de marchar já para a cama.
- Oh vovô, é festa, que está cá o Vilaça!
Afonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma palavra, agarrou o rapaz pelo braço, e arrastou-o pelo corredor - em quanto ele, de calcanhares fincados no soalho, resistia, protestando com desespero:
- É festa, vovô... É uma maldade!... O Vilaça pode-se escandalizar... Oh vovô, eu não tenho sono!
Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censuraram logo aquela rigidez: aí estava uma coisa incompreensível; o avô deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe então o bocadinho da soirée...
- Oh Sr. Afonso da Maia, por que não deixou estar a criança?
- É necessário método, é necessário método, balbuciou ele, entrando, todo pálido do seu rigor.
E à mesa do voltarete, apanhando as cartas com as mãos tremulas, repetia ainda:
- É necessário método. Crianças à noite dormem.
D. Ana Silveira voltando-se para o Vilaça - que cedera o seu lugar ao Dr. delegado e vinha palestrar com as senhoras - teve aquele sorriso mudo que lhe franzia os lábios, sempre que Afonso da Maia falava em «método.»
Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque, declarou, a transbordar de ironia, que, talvez por ter a inteligência curta, nunca compreendera a vantagem dos «método»... Era à inglesa, segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ela estava enganada, ou Sta. Olavia era no reino de Portugal...
E como Vilaça inclinava timidamente a cabeça, com a sua pitada nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Afonso dentro não ouvisse, desabafou. O Sr. Vilaça naturalmente não sabia, mas aquela educação do Carlinhos nunca fora aprovada pelos amigos da casa. Já a presença do Brown, um herético, um protestante, como perceptor na família dos Maias, causara desgosto em Resende. Sobretudo quando o Sr. Afonso tinha aquele santo do abade Custódio, tão estimado, homem de tanto saber... Não ensinaria à criança habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação de fidalgo, prepara-lo para fazer boa figura em Coimbra.
Nesse momento, o abade, suspeitando uma corrente de ar, erguera-se da mesa de jogo a fechar o reposteiro: então, como Afonso já não podia ouvir, D. Ana ergueu a voz:
- E olhe que o Custódio teve desgosto, Sr. Vilaça. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar o que sucedeu com a Macedo.
Vilaça já sabia.
- Ah já sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contricção...
A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao céu através do tecto.
- Horroroso! continuou D. Ana. A pobre mulher chegou lá a nossa casa embuchada... E eu fez-me impressão. Até sonhei com aquilo três noites a fio...
Calou-se um momento. Vilaça, embaraçado, acanhado, fazia girar a caixa de rapé nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor de sonolência passou na sala; D. Eugénia, com as pálpebras pesadas, fazia de vez em quando uma malha mole no crochet; e a noiva de Carlos, estirada para o canto do sofá, já dormia, com a boquinha aberta, os seus lindos cabelos negros caindo-lhe pelo pescoço.
D. Ana, depois de bocejar de leve, retomou a sua ideia:
- Sem contar que o pequeno está muito atrasado. A não ser um bocado de inglês, não sabe nada... Nem tem prenda nenhuma!
- Mas é muito esperto, minha rica senhora! acudiu Vilaça.
- É possível, respondeu secamente a inteligente Silveira.
E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado dela, quieto como se fosse de gesso:
- Oh filho, dize tu aqui ao Sr. Vilaça aqueles lindos versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Euzébio, filho, sê bonito...
Mas o menino, molengão e tristonho, não se descolava das saias da titi: teve ela de o pôr de pé, ampara-lo, para que o tenro prodígio não aluísse sobre as perninhas flácidas; e a mamã prometeu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...
Isto decidiu-o: abriu a boca, e como duma torneira lassa veio de lá escorrendo, num fio de voz, um recitativo lento e babujado:
É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu...
Disse-a toda - sem se mexer, com as mãozinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopeia, ia cerrando as pálpebras.
- Muito bem, muito bem! exclamou o Vilaça, impressionado, quando o Euzebiosinho findou coberto de suor. Que memória! Que memória! É um prodígio!...
Os criados entravam com o chá. Os parceiros tinham findado a partida; e o bom Custódio, de pé, com a sua chávena na mão, queixava-se amargamente da maneira porque aqueles senhores o tinham esfolado.
Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras retiraram-se ás nove e meia. O serviçal Dr. delegado dava o braço a D. Eugénia; um criado da quinta alumiava adiante com o lampião; e o moço das Silveiras levava ao colo o Euzebiosinho que parecia um fardo escuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabeça.
Depois da ceia Vilaça acompanhou ainda um momento Afonso da Maia à livraria, onde, antes de recolher, ele tomava sempre à inglesa o seu cognac e soda.
O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo, estava adormecido tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas, um resto de lume na chaminé, e o globo do candeeiro pondo a sua claridade serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os repuchos cantavam alto no silêncio da noite.
Enquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona de Afonso, numa mesa baixa, os cristais e as garrafas de soda, Vilaça, com as mãos nos bolsos, de pé e pensativo, olhava a brasa da acha que morria na cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar, como ao acaso:
- Aquele rapazito é esperto...
- Quem? O Euzebiosinho? disse Afonso, que se acomodava junto ao fogão, enchendo alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver cá, Vilaça! O Carlos não gosta dele, e tivemos aí um desgosto horroroso... Foi já há meses. Havia uma procissão e o Euzebiosinho ia de anjo... As Silveiras, excelentes mulheres, coitadas, mandaram-no cá para o mostrar à viscondessa, já vestido de anjo. Pois senhores, distraímo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se dele, leva-o para o sótão, e, meu caro Vilaça... Em primeiro lugar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o pior não foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos aparece o Euzebiosinho aos berros pela titi, todo desfrizado, sem uma asa, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um barbante, a coroa de rosas enterrada até ao pescoço, e os galões de ouro, os tules, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!... Enfim, um anjo depenado e sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.
Bebeu metade da sua soda, e passando a mão pelas barbas, acrescentou, com uma satisfação profunda:
- É levado do diabo, Vilaça!
O administrador, sentado agora à borda de uma cadeira, esboçou uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Afonso, com as mãos nos joelhos, como esquecido e vago. Ia abrir os lábios, hesitou ainda, tossiu de leve; e continuou a seguir pensativamente as faíscas que erravam sobre as achas.
Afonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara a falar do Silveirinha. Tinha três ou quatro meses mais que Carlos, mas estava enfezado, estiolado, por uma educação à portuguesa: daquela idade ainda dormia no choco com as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava couraçado de rolos de flanelas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do Catecismo de Perseverança. Ele por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá, «que o sol é que anda em volta da terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá as ordens ao sol, para onde há-de ir e onde há-de parar etc., etc.» E assim lhe estavam arranjando uma almasinha de bacharel...
Vilaça teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente decidido, ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras:
- V. Ex.ª sabe que apareceu a Monforte?
Afonso, sem mover a cabeça, reclinado para as costas da poltrona, perguntou tranquilamente, envolvido no fumo do cachimbo:
- Em Lisboa?
- Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que escreve, e que era muito de Arroios... Esteve até em casa dela.
E ficaram calados. Havia anos que entre eles se não pronunciara o nome de Maria Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia, a preocupação ardente de Afonso da Maia fora tirar-lhe a filha que ela levara. Mas a esse tempo ninguém sabia onde Maria se refugiara com o seu príncipe: nem pela influência das legações, nem pagando regiamente a polícia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se pôde descobrir a «toca da fera» como dizia então o Vilaça. Ambos decerto tinham mudado de nome; e, dadas essas naturezas boémias, quem sabe se não errariam agora pela América, pela índia, em regiões mais exóticas? Depois, pouco a pouco, Afonso da Maia descorçoado com aqueles esforços vãos, todo ocupado do neto que crescia belo e forte ao seu lado, no enternecimento continuo que ele lhe dava foi esquecendo a Monforte e a sua outra neta, tão distante, tão vaga, a quem ignorava as feições, de quem mal sabia o nome. E agora de repente a Monforte aparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! e aquela criança que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mãe...
Erguera-se, passeava na livraria, pesado e lento, com a cabeça baixa. Junto à mesa, ao pé do candeeiro, o Vilaça ia percorrendo um a um os papéis da sua carteira.
- E está em Paris com o italiano? perguntou Afonso do fundo sombrio do aposento.
O Vilaça ergueu a cabeça de sobre a carteira, e disse:
- Não senhor, está com quem lhe paga.
E como Afonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, Vilaça, dando-lhe um papel dobrado, acrescentou:
- Todas estas coisas são muito graves, Sr. Afonso da Maia, e eu não quis fiar-me só na minha memória. Por isso pedi ao Alencar, que é um excelente rapaz, que me escrevesse numa carta tudo o que me contou. Assim temos um documento. Eu não sei mais do que aí está escrito. Pode V. Ex.ª ler...
Afonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma história simples, que o Alencar, o poeta das Vozes da Aurora, o estilista de Elvira, ornara de flores e de galões dourados como uma capela em dia de festa.
Uma noite, ao sair da Maison d'Or, ele vira a Monforte saltar dum coupé com dois homens de gravata branca; tinham-se logo reconhecido: e um momento ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo do candeeiro do gás, no trotoir. Foi ela que, muito decidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar, pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a adresse, o nome por que devia perguntar: Mme. de l'Estorade. E no seu boudoir, na manhã seguinte a Monforte falou largamente de si: vivera três anos em Viena de Áustria com Tancredo, e com o papá que se lhes fora reunir - e que lá continuava de certo, como em Arroios, refugiando-se pelos cantos das salas, pagando as toiletes da filha, e dando palmadinhas ternas no ombro do amante como outrora no ombro do marido. Depois tinham estado em Mónaco; e aí, dizia o Alencar, «num drama sombrio de paixão que ela me fez entrever» o napolitano fora morto em duelo. O papá morrera também nesse ano, deixando apenas da sua fortuna uns magros contos de réis, e a mobília da casa em Viena: o velho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de Tancredo ao bacarat. Passara então um tempo em Londres: e daí viera habitar Paris, com Mr. de l'Estorade, um jogador, um espadachim, que acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse nome de l'Estorade, que lhe era a ele de ora em diante inútil porque passava a adoptar outro mais sonoro de Vicomte de Mandervile. Enfim, pobre, formosa, doida, excessiva, lançara-se na existência daquelas mulheres de quem, dizia o Alencar, «a pálida Margarida Gautier, a gentil Dama das Camélias é o tipo sublime, o símbolo poético, a quem muito será perdoado porque muito amaram.» E o poeta terminava: «ela está ainda no esplendor da beleza, mas as rugas virão, e então que avistará em redor de si? As rosas secas e ensanguentadas da sua coroa de esposa. Saí daquele boudoir perfumado, com a alma dilacerada, meu Vilaça! Pensava no meu pobre Pedro, que lá jaz sob o raio de luar, entre as raizes dos ciprestes. E, desiludido desta cruel vida, vim pedir ao absinto, no boulevard, uma hora de esquecimento.»
Afonso da Maia deu um repelão à carta, menos enojado das torpezas da história, que daqueles lirismos relambidos.
E recomeçou a passear, enquanto o Vilaça recolhia religiosamente o documento que tinha relido muitas vezes, na admiração do sentimento, do estilo, do ideal daquela pagina.
- E a pequena? perguntou Afonso.
- Isso não sei. O Alencar não lhe falaria na filha, nem ele mesmo sabe que ela a levou. Ninguém o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou desapercebido no grande escândalo. Mas enquanto a mim, a pequena morreu. Senão, siga V. Ex.ª o meu raciocínio... Se a menina fosse viva, a mãe podia reclamar a legitima que cabe à criança... Ela sabe a casa que V. Ex.ª tem; há de haver dias, e são frequentes na vida dessas mulheres, em que lhe falte uma libra... Com o pretexto da educação da menina, ou de alimentos, já nos tinha importunado... Escrúpulos não tem ela. Se o não faz é que a filha morreu. Não lhe parece a V. Ex.ª?
- Talvez, disse Afonso.
E acrescentou, parando diante de Vilaça - que olhava outra vez a brasa morta tirando estalinhos dos dedos:
- Talvez... Suponhamos que morreram ambas, e não se fale mais nisso.
Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que Vilaça passou em Sta. Olavia não se proferiu mais o nome de Maria Monforte.
Mas, na véspera da partida do administrador para Lisboa, Afonso subiu ao quarto dele, a entregar-lhe as amêndoas da Páscoa que Carlos mandava a Vilaça Junior, um alfinete de peito com uma magnífica safira - e disse-lhe em quanto o outro, sensibilizado, balbuciava os agradecimentos:
- Agora outra coisa, Vilaça. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu primo Noronha, ao André que vive em Paris como você sabe, pedir-lhe que procure essa criatura, e que lhe ofereça dez ou quinze contos de réis, se ela me quiser entregar a filha... No caso, está claro, que esteja viva... E quero que você saiba desse Alencar a morada da mulher em Paris.
O Vilaça não respondeu, ocupado a meter entre as camisas, bem no fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou diante de Afonso, a coçar reflectidamente o queixo.
- Então que lhe parece, Vilaça?
- Parece-me arriscado.
E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus treze anos. Estava uma mulher, com o seu temperamento formado, o carácter feito, talvez os seus hábitos... Nem falaria o português. As saudades da mãe haviam de ser terríveis... Enfim, o Sr. Afonso da Maia trazia uma estranha para casa...
- Você tem razão, Vilaça. Mas a mulher é uma prostituta, e a pequena é do meu sangue.
Nesse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vovô, precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma romã. - O Brown tinha achado uma corujazinha pequena! Queria que o vovô viesse ver, andara a busca-lo por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito pequena, muito feia, toda pelada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia o ninho...
- Vem depressa, ó vovô! Depressa, que é necessário ir pô-la no ninho, por causa da coruja velha que se pode afligir... O Brown está-lhe a dar azeite. Oh Vilaça vem ver! Ó vovô, pelo amor de Deus! Tem uma cara tão engraçada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha pode dar pela falta!...
E impaciente com a lentidão risonha do vovô, tanta indiferença pela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.
- Que bom coração! exclamou o Vilaça comovido. A pensar nas saudades da coruja... A mãe dele é que não tem saudades! Sempre o disse, é uma fera!
Afonso encolheu tristemente os ombros. Iam já no corredor quando ele, parando um momento, baixando a voz:
- Tem-me esquecido de lhe contar, Vilaça, o Carlos sabe que o pai que se matou...
Vilaça arredondou os olhos de espanto. Era verdade. Uma manhã entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe: - ó vovô, o papá matou-se com uma pistola! - Naturalmente algum criado que lho contara...
- E vossa excelência?
- Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me pediu, nessas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou. Quis ser enterrado em Sta. Olavia, aí está. Não queria que o filho jamais soubesse da fuga da mãe; e por mim, de certo, nunca o saberá. Quis que dois retratos que havia dela em Arroios fossem destruidos; como você sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas não me pediu que ocultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que num momento de loucura, o papá tinha dado um tiro em si...
- E ele?
- E ele, replicou Afonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-me toda uma manhã para lhe dar também uma pistola... E aí está o resultado dessa revelação: é que tive de mandar vir do Porto uma pistola de vento...
Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avô, os dois apressaram-se a ir admirar a corujazinha.
Vilaça ao outro dia partiu para Lisboa.
Passadas duas semanas, Afonso recebia uma carta do administrador, trazendo-lhe, com a adresse da Monforte, uma revelação imprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes da sua visita a Mme. de l'Estorade, contara-lhe que no boudoir dela havia um adorável retrato de criança, de olhos negros, cabelo de azeviche, e uma palidez de nácar. Esta pintura ferira-o, não só por ser dum grande pintor inglês, mas por ter, pendente sob o caixilho como um voto funerário, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. Não havia outro quadro no boudoir: e ele perguntara à Monforte se era um retrato ou uma fantasia. Ela respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. «Estão assim dissipadas todas as dúvidas, acrescentava o Vilaça. O pobre anjinho está numa pátria melhor. E para ela, bem melhor!»
Afonso, todavia, escreveu a André de Noronha. A resposta tardou. Quando o primo André procurara Mme.de l'Estorade, havia semanas que ela partira para Alemanha, depois de vender mobília e cavalos. E no Club Imperial, a que ele pertencia, um amigo que conhecia bem Mme. de l'Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catani, acrobata do Circo de Inverno nos campos Elíseos, homem de formas magníficas, um Apolo de feira, que todas as cocotes se disputavam e que a Monforte empolgara. Naturalmente corria agora a Alemanha com a companhia de cavalinhos.
Afonso da Maia, enojado, remeteu esta carta ao Vilaça sem um comentário. E o honrado homem respondeu: «Tem V. Ex.ª razão, é atroz: e mais vale supor que todos morreram, e não gastar mais cera com tão ruins defuntos...» E depois num post-scriptum acrescentava: «Parece certo abrir-se em breve o caminho de ferro até ao Porto: em tal caso, com permissão de V. Ex.ª, aí irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias de hospitalidade.»
Esta carta foi recebida em Sta. Olavia um domingo, ao jantar. Afonso lera alto o P.S. Todos se alegraram-na esperança de ver o bom Vilaça em breve
na quinta; e falou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima.
Mas, terça feira à noite, chegava um telegrama de Manuel Vilaça anunciando que o pai morrera, nessa manhã, duma apoplexia: dois dias depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoço que, de repente, Vilaça se sentira muito sufocado e com tonturas: ainda tivera forças de ir ao quarto respirar um pouco de éter: mas ao voltar à sala cambaleava, queixava-se de ver tudo amarelo, e caiu de bruços, como um fardo, sobre o canapé. O seu pensamento, que se extinguia para sempre, ainda nesse momento se ocupou da casa que há trinta anos administrava: balbuciou, a respeito duma venda de cortiça, recomendações que o filho já não pôde perceber: depois deu um grande ai; e só tornou a abrir os olhos, para murmurar no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: Saudades ao patrão!
Afonso da Maia ficou profundamente afectado, e em Sta. Olavia, mesmo entre os criados, a morte de Vilaça foi como um luto doméstico. Uma dessas tardes, o velho, muito melancólico, estava na livraria com um jornal esquecido nas mãos, os olhos cerrados - quando Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas num papel, veio passar-lhe um braço pelo pescoço, e como compreendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o Vilaça não voltaria a vê-los à quinta.
- Não filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a ver.
O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho, olhava o tapete, e, como recordando-se, murmurou tristemente:
- O Vilaça, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vovô, para onde o levaram?
- Para o cemitério, filho, para debaixo da terra.
Então Carlos desprendeu-se devagar do abraço do avô, e muito sério, com os olhos nele:
- Ó vovô! porque não lhe mandas fazer uma capelinha bonita, toda de pedra, com uma figura, como tem o papá?
O velho achegou-o ao peito, beijou-o, comovido:
- Tens razão, filho. Tens mais coração que eu!
Assim o bom Vilaça teve no cemitério dos Prazeres o seu jazigo - que fora a alta ambição da sua existência modesta.
Outros anos tranquilos passaram sobre Santa Olavia.
Depois uma manhã de julho, em Coimbra, Manuel Vilaça (agora administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Afonso se hospedara com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho, suando, berrando:
- Neminè! Neminè!
Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha acompanhado os senhores de Santa Olavia correu à porta, abraçou-se quasi chorando no menino, agora mais alto que ele, e muito formoso na sua batina nova.
Em cima no quarto, Manuel Vilaça, soprando ainda, limpando as bagas de suor, exclamava:
- Ficou tudo espantado, Sr. Afonso da Maia! Os lentes até estavam comovidos. Ih Jesus! que talento! Vem a ser um grande homem, é o que todo o mundo disse... E que faculdade vai ele seguir, meu senhor?
Afonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso:
- Não sei, Vilaça... Talvez nos formemos ambos em Direito.
Carlos assomou à porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro escudeiro - que trazia champagne numa salva.
- Então venha cá, seu maroto, disse Afonso muito branco, com os braços abertos. Bom exame, hein?... Eu...
Mas não pôde prosseguir: as lágrimas, duas a duas, corriam-lhe pela barba branca.
Capítulo IV
Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o Dr. Trigueiros houvera sempre naquele menino realmente uma «vocação para Esculápio».
A «vocação» revelara-se bruscamente um dia que ele descobriu no sótão, entre rimas de velhos alfarrábios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas; tinha passado dias a recorta-las, pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil «com o recheio à mostra». Uma noite mesmo rompera pela sala em triunfo, a mostrar ás Silveiras, ao Euzébio, a pavorosa litografia de um feto de seis meses no útero materno. D. Ana recuou, com um grito, colando o leque à face: e o Dr. delegado, escarlate também, arrebatou prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o que escandalizou mais as senhoras foi a indulgência de Afonso.
- Então que tem, então que tem? dizia ele sorrindo.
- Que tem, Sr. Afonso da Maia!? exclamou D. Ana. São indecências!
- Não há nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente é a ignorância... Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de saber como é esta pobre máquina por dentro, não há nada mais louvável...
D. Ana abanava-se, sufocada. Consentir tais horrores nas mãos da criança!... Carlos começou a aparecer-lhe como um libertino «que já sabia coisas»; e não consentiu mais que a Terezinha brincasse só com ele pelos corredores de Santa Olavia.
As pessoas sérias porém, o Dr. juiz de direito, o próprio abade, lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concordavam que aquilo mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina.
- Se pega, dizia então com um gesto profético o Dr. Trigueiros, temos dali coisa grande!
E parecia pegar.
Em Coimbra, estudante do Liceu, Carlos deixava os seus compêndios de lógica e retórica para se ocupar de anatomia: numas ferias, ao abrir das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras dum casaco o riso duma caveira: e se algum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar a beira do catre, fazendo diagnósticos que o bom Dr. Trigueiros escutava respeitoso e pensativo. Diante do avô já chamava mesmo ao menino «o seu talentoso colega».
Esta inesperada carreira de Carlos (pensara-se sempre que ele tomaria capelo em Direito) era pouco aprovada entre os fiéis amigos de Santa
Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo tão formoso, tão bom cavaleiro, viesse a estragar a vida receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das sangrias. O Dr. juiz de direito confessou mesmo um dia a sua descrença de que o Sr. Carlos da Maia quisesse «ser médico a sério».
- Ora essa! exclamou Afonso. E porque não há de ser médico a sério? Se escolhe uma profissão é para a exercer com sinceridade e com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio, muito menos para amador; educo-o para ser útil ao seu país...
- Todavia, arriscou o Dr. juiz de direito com um sorriso fino, não lhe parece a V. Exc.ª que há outras coisas, importantes também, e mais próprias talvez, em que seu neto se poderia tornar útil?...
- Não vejo, replicou Afonso da Maia. Num país em que a ocupação geral é estar doente, o maior serviço patriótico é incontestavelmente saber curar.
- V. Exc.ª tem resposta para tudo, murmurou respeitosamente o magistrado.
E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida «a sério», pratica e útil, as escadas de doentes galgadas à pressa no fogo de uma vasta clínica, as existências que se salvam com um golpe de bisturi, as noites veladas à beira de um leito, entre o terror de uma família, dando grandes batalhas à morte. Como em pequeno o tinham encantado as formas pitorescas das vísceras - atraiam-no agora estes lados militantes e heróicos da ciência.
Matriculou-se realmente com entusiasmo. Para esses longos anos de quieto estudo o avô preparara-lhe uma linda casa em Celas, isolada, com graças de cotage inglês, ornada de persianas verdes, toda fresca entre as árvores. Um amigo de Carlos (um certo João da Ega) pôs-lhe o nome de «Paços de Celas», por causa de luxos então raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquim, panóplias de armas, e um escudeiro de libré.
Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos democratas; quando se soube porém que o dono destes confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava também o país uma choldra ignóbil - os mais rígidos revolucionários começaram a vir aos Paços de Celas tão familiarmente como ao quarto do Trovão, o poeta boémio, o duro socialista, que tinha apenas por mobília uma enxerga e uma Bíblia.
Ao fim de alguns meses, Carlos, simpático a todos, conciliara Dandis e Filósofos: e trazia muitas vezes no seu break, lado a lado, o Serra Torres, um monstro que já era adido honorário em Berlim e todas as noites punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava a Morte de Satanás, encolhido no seu gabão de Aveiro, com o seu grande barrete de lontra.
Os Paços de Celas, sob a sua aparência preguiçosa e campestre, tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma ginástica científica. Uma velha cozinha fora convertida em sala de armas - porque naquele grupo a esgrima passava como uma necessidade social. Á noite, na sala de jantar, moços sérios faziam um whist sério: e no salão, sob o lustre de cristal, com o Figaro, o Times e as Revistas de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando Chopin ou Mozart, os literatos estirados pelas poltronas - havia ruidosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flamejava no fumo do tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões metafísicas, as próprias certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais requintado com a presença do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo croquetes.
Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seus expositores de medicina. A Literatura e a Arte, sob todas as formas, absorveram-no deliciosamente. Publicou sonetos no Instituto - e um artigo sobre o Partenon: tentou, num atelier improvisado, a pintura a óleo: e compôs contos arqueológicos, sob a influência da Salambô. Além disso todas as tardes passeava os seus dois cavalos. No segundo ano levaria um R se não fosse tão conhecido e rico. Tremeu, pensando no desgosto do avô: moderou a dissipação intelectual, acantoou-se mais na ciência que escolhera: imediatamente lhe deram um acessit. Mas tinha nas veias o veneno do diletantismo: e estava destinado, como dizia João da Ega, a ser um desses médicos literários que inventam doenças de que a humanidade papalva se presta logo a morrer!
O avô, ás vezes, vinha passar uma, duas semanas a Celas. Nos primeiros tempos a sua presença, agradável aos cavalheiros da partilha de whist, desorganizou o cavaco literário. Os rapazes mal ousavam estender o braço para o copo da cerveja; e os vossa excelência isto, vossa excelência aquilo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porém, vendo-o aparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se na poltrona com ares simpático de patriarca boémio, discutir arte e literatura, contar anedotas do seu tempo de Inglaterra e de Itália, começaram a considera-lo como um camarada de barbas brancas. Diante dele já se falava de mulheres e de estroinices. Aquele velho fidalgo, tão rico, que lera Michelet e o admirava - chegou mesmo a entusiasmar os democratas. E Afonso gozava ali também horas felizes, vendo o seu Carlos centro daqueles moços de estudo, de ideal e de veia.
Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ás vezes em Paris ou Londres; mas por Natais e Páscoas vinha sempre a Santa Olavia, que o avô mais só se entretinha a embelezar com amor. As salas tinham agora soberbos panos de Arraz, paisagens de Rousseau e Daubigny, alguns móveis de luxo e de arte. Das janelas a quinta oferecia aspectos nobres de parque inglês: através dos macios tabuleiros de relva, davam curvas airosas as ruas areadas: havia mármores entre as verduras; e gordos carneiros de luxo dormiam sob os castanheiros. Mas a existência neste meio rico não era agora tão alegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida, caía em sonos congestivos logo depois do jantar; o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurizes, ambos no entrudo: e já se não via também à mesa a bondosa face do abade, que lá jazia sob uma cruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o ano. O Dr. juiz de direito com a sua concertina passara para a Relação do Porto; D. Ana Silveira, muito doente, nunca saía; a Terezinha fizera-se uma rapariguinha feia, amarela como uma cidra; o Euzebiosinho, molengão e tristonho, já sem vestígios sequer do seu primeiro amor aos alfarrábios e ás letras, ia casar na Régua. Só o Dr. delegado, esquecido naquela comarca, estava o mesmo, mais calvo talvez, sempre afável, amando sempre a pachorrenta Eugénia. E quasi todas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua égua branca ao portão para vir cavaquear com o colega.
As ferias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seu íntimo, o grande João da Ega, a quem Afonso da Maia se afeiçoara muito, por ele e pela sua originalidade, e por ser sobrinho de André da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitas vezes outrora, hospede também em Santa Olavia.
Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente - ora reprovado, ora perdendo o ano. Sua mãe, rica, viúva e beata, retirada numa quinta ao pé de Celorico de Basto com uma filha, beata, viúva e rica também, tinha apenas uma noção vaga do que o Joãozinho fizera, todo esse tempo, em Coimbra. O capelão afirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o papá e como o titi: e esta promessa bastava à boa senhora, que se ocupava sobretudo da sua doença de entranhas e dos confortos desse padre Serafim. Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da quinta, que ele escandalizava com a sua irreligião e as suas facécias heréticas.
João da Ega, com efeito, era considerado não só em Celorico, mas também na Academia que ele espantava pela audácia e pelos ditos, como o maior ateu, o maior demagogo, que jamais aparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por sistema exagerou o seu ódio à Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes-médias, o amor livre das ficções do matrimónio, a repartição das terras, o culto de Satanás. O esforço da inteligência neste sentido terminou por lhe influênciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pêlos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito - tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satânico. Desde a sua entrada na Universidade renovara as tradições da antiga Boémia: trazia os rasgões da batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão; à noite, na Ponte, com o braço erguido, atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas de quinze anos, filhas de empregados, com quem ás vezes ia passar a soirée, levando-lhes cartuchinhos de doce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o apetecido nas famílias.
Carlos escarnecia estes idílios futricas; mas também ele terminou por se enredar num episódio romântico com a mulher dum empregado do governo civil, uma lisboetasinha, que o seduziu pela graça dum corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ela o que a fantasiara fora o luxo, o groom, a égua inglesa de Carlos. Trocaram-se cartas; e ele viveu semanas banhado na poesia áspera e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente a rapariga tinha o nome bárbara de Hermengarda; e os amigos de Carlos, descoberto o segredo, chamavam-lhe já Eurico o presbítero, dirigiam para Celas missivas pelo correio com este nome odioso.
Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do governo civil passou junto dele com o filhinho pela mão. Pela primeira vez via tão de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adorável, muito gordo, parecendo mais roliço por aquele dia de janeiro sob os agasalhos de lã azul, tremelicando nas pobres perninhas roxas de frio, e rindo na clara luz - rindo todo ele, pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pai amparava-o; e o encanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos. Era no momento em que ele lia Michelet - e enchia-lhe a alma a veneração literária da santidade domestica. Sentiu-se canalha em andar ali de cima do seu dog-cart, a preparar friamente a vergonha, e as lágrimas daquele pobre pai tão inofensivo no seu paletó coçado! Nunca mais respondeu ás cartas em que Hermengarda lhe chamava seu ideal. Decerto a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do governo civil, daí por diante, dardejava sobre ele olhares sangrentos.
Mas a grande «topada sentimental de Carlos», como disse o Ega, foi quando ele, ao fim dumas ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga espanhola, e a instalou numa casa ao pé de Celas. Chamava-se Encarnacion. Carlos alugou-lhe ao mês uma vitória com um cavalo branco e Encarnacion fanatisou Coimbra como a aparição duma Dama das Camélias, uma flor de luxo das civilizações superiores. Pela Calçada, pela estrada da Beira, os rapazes paravam, pálidos de emoção, quando ela passava, reclinada na vitória, mostrando o sapato de cetim, um pouco da meia de seda, lânguida e desdenhosa, com um cãosinho branco no regaço.
Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnacion foi chamada Lírio de Israel, Pomba da Arca, e Nuvem da Manhã. Um estudante de teologia, rude e sebento transmontano, quis casar com ela. Apesar das instâncias de Carlos, Encarnacion recusou; e o teólogo começou a rondar Celas, com um navalhão, para «beber o sangue» ao Maia. Carlos teve de lhe dar bengaladas.
Mas a criatura, desvanecida, tornou-se intolerável, falando sem cessar doutras paixões que inspirara em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe dera o conde de tal, o marquês sicrano, da grande posição da sua família ainda aparentada com os Medina-Coeli: os seus sapatos de cetim verde eram tão antipáticos como a sua voz estrídula: e quando tentava elevar-se ás conversações que ouvia, rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero - sendo muito conservadora como todas as prostitutas. João da Ega odiava-a. E Craveiro declarou que não voltava aos Paços de Celas enquanto por lá aparecesse aquele montão de carne, pago ao arrátel, como a de vaca.
Enfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de quarto de Carlos surpreendeu-a com um Juca que fazia de dama no Teatro Académico. Aí estava, enfim, um pretexto! E, convenientemente paga, a parenta dos Medina-Coeli, o Lírio de Israel, a admiradora dos Bourbons, foi recambiada a Lisboa e à rua de S. Roque, seu elemento natural.
Em agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em Celas. Afonso viera de Santa Olavia, Vilaça de Lisboa; toda a tarde no quintal, de entre as acácias e as bela-sombras, subiram ao ar molhos de foguetes; e João da Ega, que levara o seu ultimo R no seu ultimo ano, não descansou, em mangas de camisa, pendurando lanternas venezianas pelos ramos, no trapésio e em roda do poço, para a iluminação da noite. Ao jantar, a que assistiam lentes, Vilaça, enfiado e tremulo, fez um speech; ia citar o nosso imortal Castilho quando sob as janelas rompeu, a grande ruído de tambor e pratos, o Hino Académico. Era uma serenata. - Ega, vermelho, de batina desabotoada, a luneta para traz das costas, correu à sacada, a perorar:
- Aí temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, começando a sua gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma - ou acabar de a matar, segundo as circunstâncias! A que parte remota destes reinos não chegou já a fama do seu génio, do seu dog-cart, do sebáceo acessit que lhe enodoa o passado, e deste vinho do Porto, contemporâneo dos heróis de 20, que eu, homem de revolução e homem de carraspana, eu, João da Ega, Johanes ab Ega...
O grupo escuro em baixo desatou aos vivas. A filarmónica, outros estudantes, invadiram os Paços. Até tarde, sob as árvores do quintal, na sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correram com salvas de doce, não cessou de estalar o champagne. E Vilaça, limpando a testa, o pescoço, abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si mesmo também:
- Grande coisa, ter um curso!
E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um ano passou. chegara esse outono de 1875: e o avô instalado enfim no Ramalhete esperava por ele ansiosamente. A ultima carta de Carlos viera de Inglaterra, onde andava, dizia ele, a estudar a admirável organização dos hospitais de crianças. Assim era: mas passeava também por Brighton, apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idílio errante pelos lagos da Escócia, com uma senhora holandesa, separada de seu marido, venerável magistrado da Haia, uma Mme. Rughel, soberba criatura de cabelos de ouro fulvo, grande e branca como uma ninfa de Rubens.
Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas sucessivas de livros, outras de instrumentos e aparelhos, toda uma biblioteca e todo um laboratório - que trazia o Vilaça, manhãs inteiras, aturdido pelos armazéns da alfândega.
- O meu rapaz vem com grandes ideias de trabalho, dizia Afonso aos amigos.
Havia catorze meses que ele o não via, o «seu rapaz», a não ser numa fotografia mandada de Milão, em que todos o acharam magro e triste. E o coração batia-lhe forte, na linda manhã de outono, quando do terraço do Ramalhete, de binóculo na mão, viu assomar vagarosamente, por traz do alto prédio fronteiro, um grande paquete do Royal Mail que lhe trazia o seu neto.
Á noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o Vilaça - não se fartavam de admirar «o bem que a viagem fizera a Carlos». Que diferença da fotografia! Que forte, que saudável!
Era decerto um formoso e magnífico moço, alto, bem feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis dos cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistiveis olhos do pai, de um negro liquido, ternos como os dele e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada no queixo - o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma fisionomia de belo cavaleiro da Renascença. E o avô, cujo olhar risonho e húmido transbordava de emoção, todo se orgulhava de o ver, de o ouvir, numa larga veia, falando da viagem, dos belos dias de Roma, do seu mau humor na Prússia, da originalidade de Moscovo, das paisagens da Holanda...
- E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silêncio em que Carlos estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu fazer?
- Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. Descansar primeiro e depois passar a ser uma gloria nacional!
Ao outro dia, com efeito, Afonso veio encontra-lo na sala de bilhar - onde tinham sido colocados os caixotes - a despregar, a desempacotar, em mangas de camisa e assobiando com entusiasmo. Pelo chão, pelos sofás, alastrava-se toda uma literatura em rimas de volumes graves; e aqui e além, por entre a palha, através das lonas descosidas, a luz faiscava num cristal, ou reluziam os vernizes, os metais polidos de aparelhos. Afonso pasmava em silêncio para aquele pomposo aparato do saber.
- E onde vais tu acomodar este museu?
Carlos pensara em arranjar um vasto laboratório ali perto no bairro, com fornos para trabalhos químicos, uma sala disposta para estudos anatómicos e fisiológicos, a sua biblioteca, os seus aparelhos, uma concentração metódica de todos os instrumentos de estudo...
Os olhos do avô iluminavam-se ouvindo este plano grandioso.
- E que não te prendam questões de dinheiro, Carlos! Nós fizemos nestes últimos anos de Santa Olavia algumas economias...
- Boas e grandes palavras, avô! Repita-as ao Vilaça.
As semanas foram passando nestes planos de instalação. Carlos trazia realmente resoluções sinceras de trabalho: a ciência como mera ornamentação interior do espírito, mais inútil para os outros que as próprias tapeçarias do seu quarto, parecia-lhe apenas um luxo de solitário: desejava ser útil. Mas as suas ambições flutuavam, intensas e vagas; ora pensava numa larga clínica; ora na composição maciça de um livro iniciador; algumas vezes em experiências fisiológicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou supunha sentir, o tumulto de uma força, sem lhe discernir a linha de aplicação. «Alguma coisa de brilhante,» como ele dizia: e isto para ele, homem de luxo e homem de estudo, significava um conjunto de representação social e de actividade científica; o remexer profundo de ideias entre as influências delicadas da riqueza; os elevados vagares da filosofia entremeados com requintes de sport e de gosto; um Claude Bernard que fosse também um Morny... No fundo era um diletante.
Vilaça fora consultado sobre a localidade própria para o laboratório; e o procurador, muito lisongeado, jurou uma diligência incansável. Primeira coisa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clínica?...
Carlos não decidira fazer exclusivamente clínica: mas desejava de certo dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como pratica. Então Vilaça sugeriu que o consultório estivesse separado do laboratório.
- E a minha razão é esta: a vista de aparelhos, máquinas, coisas, faz esmorecer os doentes...
- Tem você razão, Vilaça! exclamou Afonso. Já meu pai dizia: poupe-se ao boi a vista do malho.
- Separados, separados, meu senhor, afirmou o procurador num tom profundo.
Carlos concordou. E Vilaça bem depressa descobriu, para o laboratório, um antigo armazém, vasto e retirado, ao fundo de um pátio, junto ao largo das Necessidades.
- E o consultório, meu senhor, não é aqui, nem acolá; é no Rossio, ali em pleno Rossio!
Esta ideia do Vilaça não era desinteressada. Grande entusiasta da Fusão, membro do Centro progressista, Vilaça Junior aspirava a ser vereador da câmara, e mesmo em dias de satisfação superior (como quando o seu aniversario natalício vinha anunciado no Ilustrado, ou quando no Centro citava com aplauso a Bélgica) parecia-lhe que tantas aptidões mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultório gratuito, no Rossio, o consultório do Dr. Maia, «do seu Maia» reluziu-lhe logo vagamente como um elemento de influência. E tanto se agitou, que daí a dois dias tinha lá alugado um primeiro andar de esquina.
Carlos mobilou-o com luxo. Numa antecâmara, guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar, à francesa, um criado de libré. A sala de espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Rouen, quadros de muita cor, e ricas poltronas cercando a jardineira coberta de colecções do Charivari, de vistas estereoscópicas, de álbuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente o ar triste de consultório até um piano mostrava o seu teclado branco.
O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em veludo verde-negro, com estantes de pau preto. Alguns amigos que começavam a cercar Carlos, Taveira, seu contemporâneo e agora vizinho do Ramalhete, o Cruges, o marquês de Souzelas, com quem percorrera a Itália - vieram ver estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominável; Taveira absorveu-se nas fotografias de actrizes; e a única aprovação franca veio do marquês, que depois de contemplar o divã do gabinete, verdadeiro móvel de serralho, vasto, voluptuoso, fofo, experimentou-lhe a doçura das molas e disse, piscando o olho a Carlos:
- A calhar.
Não pareciam acreditar nestes preparativos. E todavia eram sinceros. Carlos até fizera anunciar o consultório nos jornais; quando viu porem o seu nome em letras grossas, entre o de uma engomadeira à Boa Hora e um reclamo de casa de hospedes, - encarregou Vilaça de retirar o anuncio.
Ocupava-se então mais do laboratório, que decidira instalar no armazém, ás Necessidades. Todas as manhãs, antes de almoço, ia visitar as obras. Entrava-se por um grande pátio, onde uma bela sombra cobria um poço, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam ao muro. Carlos já decidira transformar aquele espaço em fresco jardinete inglês; e a porta do casarão encantava-o, ogival e nobre, resto de fachada de ermida, fazendo um acesso venerável para o seu sanctuário de ciência. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim; sempre um vago martelar preguiçoso numa poeira alvadia; sempre as mesmas coifas de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um carpinteiro esgrouviado e triste parecia estar ali, desde séculos, aplainando uma tábua eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores que andavam alargando a clarabóia, não cessavam de assobiar, no sol de inverno, alguma lamúria de fado.
Carlos queixava-se ao Sr. Vicente, o mestre de obras, que lhe asseverava invariavelmente «como daí a dois dias havia de s. Ex.ª ver a diferença.» Era um homem de meia idade, risonho, de falar doce, muito barbeado, muito lavado, que morava ao pé do Ramalhete, e tinha no bairro fama de republicano. Carlos, por simpatia, como visinho, apertava-lhe sempre a mão: e o Sr. Vicente, considerando-o por isso um «avançado», um democrata, confiava-lhe as suas esperanças. O que ele desejava primeiro que tudo era um 93, como em França...
- O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada e roliça face do demagogo.
- Não, senhor, um navio, um simples navio...
- Um navio?
- Sim, senhor, um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse pela barra fora o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.
Carlos sorria, ás vezes argumentava com ele.
- Mas está o Sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada, como tão exactamente diz, desaparecesse pela barra fora, ficavam resolvidas todas as coisas e tudo atolado em felicidade?
Não, o Sr. Vicente não era tão «burro» que assim pensasse. Mas, suprimida a cambada, não via s. Ex.ª? Ficava o país desatravancado; e podiam então começar a governar os homens de saber e de progresso...
- Sabe V. Ex.ª qual é o nosso mal? Não é má vontade dessa gente; é muita soma de ignorância. Não sabem. Não sabem nada. Eles não são maus, mas são umas cavalgaduras!
- Bem, então essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando o relógio e despedindo-se dele com um valente shake hands, veja se me andam. Não lho peço como proprietário, é como correligionário.
- Daqui a dois dias há de V. Ex.ª ver a diferença, respondia o mestre de obras, desbarretando-se.
No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoço. Carlos encontrava quasi sempre o avô já na sala de jantar, acabando de percorrer algum jornal junto ao fogão, onde a tépida suavidade daquele fim de outono não permitia acender lume, mas verdejando todo de plantas de estufa.
Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no seu luxo maciço e sóbrio, as baixelas antigas; pelas tapeçarias ovais dos muros apainelados corriam cenas de balada, caçadores medievais soltando o falcão, uma dama entre pajens alimentando os cisnes de um lago, um cavaleiro de viseira calada seguindo ao longo dum rio; e contrastando com o tecto escuro de castanho entalhado a mesa resplandecia com as flores entre os cristais.
O reverendo Bonifácio, que desde que se tornara dignitário da igreja comia com os senhores, lá estava já, majestosamente sentado sobre a alvura nevada da toalha, à sombra de algum grande ramo. Era ali, no aroma das rosas, que o venerável gato gostava de lamber, com o seu vagar estúpido, as sopas deleite servidas num covilhete de Strasburgo, depois agachava-se, traçava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo ele uma bola entufada de pelo branco malhado de ouro, gozava de leve uma sesta macia.
Afonso, - como confessava, sorrindo e humilhado - ía-se tornando com a velhice um gourmet exigente; e acolhia, com uma concentração de crítico, as obras de arte do chef francês que tinham agora, um cavalheiro de mau génio, todo bonapartista, muito parecido com o imperador, e que se chamava Mr. Teodore. Os almoços no Ramalhete eram sempre delicados e longos; depois, ao café, ficavam ainda conversando; e passava da uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma exclamação, precipitando-se sobre o relógio, se lembrava do seu consultório. Bebia um cálice de Chartreuse, acendia à pressa um charuto:
- Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.
E o avô, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquela ocupação, enquanto ele ficava ali a vadiar toda a manhã...
- Quando esse eterno laboratório estiver acabado, talvez vá para lá passar um bocado, ocupar-me de química.
- E ser talvez um grande químico. O avô tem já a feitio.
O velho sorria.
- Esta carcaça já não dá nada, filho. Está pedindo eternidade!
- Quer alguma coisa da Baixa, de Babilónia? perguntava Carlos, abotoando à pressa as suas luvas de governar.
- Bom dia de trabalho.
- Pouco provável...
E no dog-cart, com aquela linda égua, a Tunante ou no faeton com que maravilhava Lisboa, Carlos lá partia em grande estilo para a Baixa, para «o trabalho.»
O seu gabinete, no consultório, dormia numa paz tépida entre os espessos veludos escuros, na penumbra que faziam as estores de seda verde corridas. Na sala, porém, as três janelas abertas bebiam à farta a luz; tudo ali parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braços, amáveis e convidativas; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as Canções de Gounod; mas não aparecia jamais um doente. E Carlos, - exactamente como o criado que, na ociosidade da antecâmara, dormitava sobre o Diário de Noticias, acaçapado na banqueta - acendia um cigarro Laferme, tomava uma Revista, e estendia-se no divã. A prosa porém dos artigos estava como embebida do tédio moroso do gabinete: bem depressa bocejava, deixava cair o volume.
Do Rossio, o ruído das carroças, os gritos errantes de pregões, o rolar dos Americanos, subiam, numa vibração mais clara, por aquele ar fino de novembro: uma luz macia, escorregando docemente do azul ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as copas mesquinhas das árvores de município, a gente vadiando pelos bancos: e essa susurração lenta de cidade preguiçosa, esse ar validado de clima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouco naquele abafado gabinete e resvalando pelos veludos pesados, pelo verniz dos móveis, envolver Carlos numa indolência e numa dormência... Com a cabeça na almofada, fumando, ali ficava, nessa quietação de sesta, num cismar que se ía desprendendo, vago e ténue, como o ténue e leve fumo que se eleva duma braseira meia apagada; até que com um esforço sacudia este torpor, passeava na sala, abria aqui e além pelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos de valsa, espreguiçava-se - e, com os olhos nas flores do tapete, terminava por decidir que aquelas duas horas de consultório eram estúpidas!
- Está aí o carro? ía perguntar ao criado.
Acendia bem depressa outro charuto, calçava as luvas, descia, bebia um largo sorvo de luz e ar, tomava as guias e largava, murmurando consigo:
- Dia perdido!
Foi uma dessas manhãs que preguiçando assim no sofá com a Revista dos Dois Mundos na mão, ele ouviu um rumor na antecâmara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:
- Sua Alteza Real está visível?
- Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do sofá.
E caíram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.
- Quando chegaste tu?
- Esta manhã. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos ombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o enfim no olho. Caramba! Tu vens esplêndido desses Londres, dessas civilizações superiores. Estás com um ar Renascença, um ar Valois... Não há nada como a barba toda!
Carlos ria, abraçando-o outra vez.
- E de onde vens tu, de Celorico?
- Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O fígado, o baço, uma infinidade de vísceras comprometidas. Enfim, doze anos de vinhos e águas ardentes...
Depois falaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligência, ás várzeas de Celorico, o adeus de eternidade.
- Imagina tu, Carlos, amigo, a história deliciosa que me sucede com minha mãe... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, não caiu! Fiquei na quinta, fazendo epigramas ao padre Serafim e a toda a corte do céu. Chega julho, e aparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diftéricas... A mamã salta imediatamente à conclusão que é a minha presença, a presença do ateu, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que ofendeu Nosso Senhor e atraiu o flagelo. Minha irmã concorda. Consultam o padre Serafim. O homem, que não gosta de me ver na quinta, diz que é possível que haja indignação do Senhor - e minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruíne, mas que não esteja ali chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...
- E a epidemia...
- Desapareceu logo, disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva cor de canário.
Carlos mirava aquelas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o cabelo que ele trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de cetim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dândi, vistoso, paramentado, artificial e com pó de arroz - e Carlos deixou enfim escapar a exclamação impaciente que lhe bailava nos lábios:
- Ega, que extraordinário casaco!
Por aquele sol macio e morno de um fim de outono português, o Ega, o antigo boémio de batina esfarrapada, trazia uma peliça, uma sumptuosa peliça de príncipe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de físico uma rica e fofa espessura de peles de marta.
- É uma boa peliça, hein? disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exibindo a opulência do forro. Mandei-a vir pelo Strauss... Benefícios da epidemia.
- Como podes tu suportar isso?
- É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.
Tornou a recostar-se no sofá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monóculo no olho, examinou o gabinete.
- E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto esplêndido!
Carlos falou dos seus planos, de altas ideias de trabalho, das obras do laboratório...
- Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega interrompendo-o, erguendo-se para ir apalpar o veludo dos reposteiros, mirar os torneados da secretária de pau preto.
- Não sei. O Vilaça é que deve saber...
E Ega, com as mãos enterradas nos vastos bolsos da peliça, inventariando o gabinete, fazia considerações:
- O veludo dá seriedade... E o verde escuro é a cor suprema, é a cor estética... Tem a sua expressão própria, enternece e faz pensar... Gosto deste divã. Móvel de amor...
Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho, estudando os ornatos.
- Tu és o grandioso Salomão, Carlos! O papel é bonito... E o cretonesinho agrada-me.
Apalpou-o também. Uma begónia, manchada da sua ferrugem de prata, num vaso de Rouen, interessou-o. Queria saber o preço de tudo; e diante do piano, olhando o livro de música aberto, as Canções de Gounod, teve uma surpresa enternecida:
- Homem, é curioso... Cá me aparece! A Barcarola! É deliciosa, hein?...
Dites, la jeune belle,
Ou voulez-vous aller?
La voile...
Estou um bocado rouco... Era a nossa canção na Foz!
Carlos teve outra exclamação, e cruzando os braços diante dele:
- Tu estás extraordinário, Ega! Tu és outro Ega!... A propósito da Foz... Quem é essa Madame Cohen, que estava também na Foz, de quem tu, em cartas sucessivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlim, na Haia, em Londres, me falavas como os arroubos do Cântico dos Cânticos?
Um leve rubor subiu ás faces do Ega. E limpando negligentemente o monóculo ao lenço de seda branca:
- Uma judia. Por isso usei o lirismo bíblico. É a mulher do Cohen, hás-de conhecer, um que é director do Banco Nacional... Demos-nos bastante. É simpática... Mas o marido é uma besta... Foi uma flitartion de praia. Voila tout.
Isto era dito aos bocados, passeando, puxando o lume ao charuto, e ainda corado.
- Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocês no Ramalhete? O avô Afonso? Quem vai por lá?...
No Ramalhete, o avô fazia o seu whist com os velhos parceiros. Ia o D. Diogo, o decrépito leão, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes... Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar de sangue, à espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken...
- Não conheço. Refugiado?... Polaco?...
- Não, ministro da Finlândia... Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou esta simples transacção com tantas finuras diplomáticas, tantos documentos, tantas coisas com o selo real da Finlândia, que o pobre Vilaça aturdido, para se desembaraçar, remeteu-o ao avô. O avô, desnorteado também, ofereceu-lhe as cocheiras de graça. Steinbroken considera isto um serviço feito ao rei da Finlândia, à Finlândia, vai visitar o avô, em grande estado, com o secretario da legação, o cônsul, o vice-cônsul...
- Isso é sublime!
- O avô convida-o a jantar... E como o homem é muito fino, um gentleman, entusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma autoridade no whist, o avô adopta-o. Não sai do Ramalhete.
- E de rapazes?
De rapazes, aparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no Tribunal de Contas: um Cruges, que o Ega não conhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de génio; o marquês de Souzelas...
- Não há mulheres?
- Não há quem as receba. É um covil de solteirões. A viscondessa, coitada...
- Bem sei. Um apopleté...
- Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos também o Silveirinha, chegou-nos ultimamente o Silveirinha...
- O de Resende, o cretino?
- O cretino. Enviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado físico, todo carregado de luto... Um fúnebre.
O Ega, repoltreado, com aquele ar de tranquila e sólida felicidade que Carlos já notara, disse puxando lentamente os punhos:
- É necessário reorganizar essa vida. Precisamos arranjar um cenáculo, uma boémiasinha dourada, umas soirées de inverno, com arte, com literatura... Tu conheces o Craft?
- Sim, creio que tenho ouvido falar...
Ega teve um grande gesto. Era indispensável conhecer o Craft! O Craft era simplesmente a melhor coisa que havia em Portugal...
- É um inglês, uma espécie de doido?...
Ega encolheu os ombros. Um doido!... Sim, era essa a opinião da rua dos Fanqueiros; o indígena, vendo uma originalidade tão forte como a de Craft, não podia explica-la senão pela doidice. O Craft era um rapaz extraordinário!... Agora tinha ele chegado da Suécia, de passar três meses com os estudantes de Upsala. Estava também na Foz... Uma individualidade de primeira ordem!
- É um negociante do Porto, não é?
- Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face, enojado de tanta ignorância. O Craft é filho dum clergiman da igreja inglesa do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcutá ou de Austrália, um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grande fortuna. Mas não negocia, nem sabe o que isso é. Dá largas ao seu temperamento byroneano, é o que faz. Tem viajado por todo o universo, colecciona obras de arte, bateu-se como voluntário na Abissínia e em Marrocos, enfim vive, vive na grande, na forte, na heróica acepção da palavra. É necessário conhecer o Craft. Vais-te babar por ele... Tens razão, caramba, está calor.
Desembaraçou-se da opulenta peliça, e apareceu em peitilho de camisa.
- O que! tu não trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem colete?
- Não; então não a podia aguentar... Isto é para o efeito moral, para impressionar o indígena... Mas, não há nega-lo, é pesada!
E imediatamente voltou à sua ideia: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organizava-se um Cenáculo, um Decameron de arte e diletantismo, rapazes e mulheres - três ou quatro mulheres para cortarem, com a graça dos decotes, a severidade das filosofias...
Carlos ria-se desta ideia do Ega. Três mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenaculo! Lamentável ilusão de um homem de Celorico! O marquês de Souzela tinha tentado, e para uma vez só, uma coisa bem mais simples - um jantar no campo com actrizes. Pois fora o escândalo mais engraçado e mais característico: uma não tinha criada e queria levar consigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia que, aceitando, o brasileiro lhe tirasse a mesada; uma consentiu, mas o amante, quando soube, deu-lhe uma coça. Esta não tinha vestido para ir; aquela pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalizou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos, os pulhas, complicaram medonhamente a questão; uns exigiam ser convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se intrigas, - enfim esta coisa banal, um jantar com actrizes, resultou em o Tarquínio do Ginásio levar uma facada...
- E aqui tens tu Lisboa.
- Enfim, exclamou o Ega, se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?
Desembaraçado da majestade que lhe dava a peliça o antigo Ega reaparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mefistófeles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes frases, numa luta constante com o monóculo, que lhe caía do olho, que ele procurava pelo peito, pelos ombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se também, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambeta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e à uma, malharam sobre o país...
Mas o relógio ao lado bateu quatro horas; imediatamente Ega saltou sobre a peliça, sepultou-se nela, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, saiu com um arzinho de luxo e de aventura.
- John, disse Carlos que o achava esplêndido e o ia seguindo ao patamar, onde estás tu?
- No Universal, esse santuário!
Carlos abominava o Universal, queria que ele viesse para o Ramalhete.
- Não me convém...
- Em todo o caso vais hoje lá jantar, ver o avô.
- Não posso. Estou comprometido com a besta do Cohen... Mas vou lá amanhã almoçar.
Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monóculo, gritou para cima:
- Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!
- O quê! está pronto? exclamou Carlos, espantado.
- Está esboçado, à brocha larga...
O Livro do Ega! Fora em Coimbra, nos dois últimos anos, que ele começara a falar do seu livro, contando o plano, soltando títulos de capítulos, citando pelos cafés frases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela forma e pela ideia, uma evolução literária. Em Lisboa (onde ele vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fora anunciado como um acontecimento. Bacharéis, contemporâneos ou seus condiscípulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas províncias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegara ao Brasil... E sentindo esta ansiosa expectativa em torno do seu livro - o Ega decidira-se enfim a escrevê-lo.
Devia ser uma epopeia em prosa, como ele dizia, dando, sob episódios simbólicos, a história das grandes fases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memórias dum Átomo, e tinha a forma duma autobiografia. Este átomo (o átomo do Ega, como se lhe chamava a sério em Coimbra) aparecia no primeiro capítulo, rolando ainda no vago das Nebulosas primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: enfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda mole do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substância, o átomo do Ega entrava na rude estrutura do Orango, pai da humanidade - e mais tarde vivia nos lábios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heróis, palpitava no coração dos poetas. Gota de água nos lagos de Galileia, ouvira o falar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apóstolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anéis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-no orvalhado, pétala resplandecente de um dormente e lânguido lírio. Fora omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da pena do Ega, e cansado desta jornada através do Ser, repousava - escrevendo as suas Memórias... Tal era este formidável trabalho - de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:
- É uma Bíblia!
Capítulo V
No escritório de Afonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chama morria nos carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonês, por causa da bronquite de D. Diogo e do seu horror ao ar.
Esse velho dândi, - a quem as damas de outras eras chamavam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que dormira num leito real - acabava justamente de ter um dos seus acessos de tosse, cavernosa, áspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruína, que ele abafava no lenço, com as veias inchadas, roxo até à raiz dos cabelos.
Mas passara. Com a mão ainda tremula, o decrépito leão limpou as lágrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compôs a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua água casada, e perguntou a Afonso, seu parceiro, numa voz rouca e surda:
- Paus, hein?
E de novo, sobre o pano verde, as cartas foram caindo num daqueles silêncios que se seguiam ás tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o Vilaça seu parceiro, rezingão, e com todo o sangue na face.
Um tom fino retiniu, o relógio Luís XV foi ferindo alegremente, vivamente, a meia noite; - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silêncio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candeeiros Carcel; e a luz assim coada, caindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracção cor de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silêncio o ouro dum Sèvres, uma palidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majólica.
- O quê! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com ele o rumor distante de bolas de bilhar.
Afonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar com interesse:
- Como vai ela? Está sossegada?
- Está muito melhor!
Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsaciana, casada com o Marcelino padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus belos cabelos, loiros, e penteados sempre em tranças soltas. Tinha estado à morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda ás vezes à noite atravessava a rua para a ir ver, tranquilizar o Marcelino, que, defronte do leito e de gabão pelos ombros, sufocava soluços de amante, escrevinhando no livro de contas.
Afonso interessara-se ansiosamente por aquela pneumonia; e agora estava realmente agradecido à Marcelina por ter sido salva por Carlos. Falava dela comovido; gabava-lhe a linda figura, o asseio alsaciano, a prosperidade que trouxera à padaria... Para a convalescença, que se aproximava, já lhe mandara até seis garrafas de Chateau-Margaux.
- Então fora de perigo, inteiramente fora de perigo? - perguntou Vilaça, com os dedos na caixa do rapé, sublinhando muito a sua solicitude.
- Sim, quasi rija - disse Carlos, que se aproximara da chaminé, esfregando as mãos, arrepiado.
É que a noite, fora, estava regelada! Desde o anoitecer geava, dum céu fino e duro, transbordando de estrelas que rebrilhavam como pontas afiadas de aço; e nenhum daqueles cavalheiros, desde que se entendia, conhecera jamais o termómetro tão baixo. Sim, Vilaça lembrava-se dum janeiro pior no inverno de 64...
- É necessário carregar no punch, hein, general! - exclamou Carlos, batendo galhofeiramente nos ombros maciços do Sequeira.
- Não me oponho, rosnou o outro, que fixava com concentração e rancor um valete de copas sobre a mesa.
Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvões: uma chuva de oiro caiu por baixo, uma chama mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo, avermelhando em redor as peles de urso onde o Reverendo Bonifácio, espapado, torrava ao calor, ronronava de gozo.
- O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os pés à chama. Tem, enfim, justificada a peliça. A propósito, algum dos senhores tem visto o Ega estes últimos dias?
Ninguém respondeu, no interesse súbito que causava a cartada. A longa mão de D. Diogo recolhia de vagar a vasa - e languidamente, no mesmo silêncio, soltou uma carta de paus.
- Ó Diogo! ó Diogo! gritou Afonso, estorcendo-se, como se o trespassasse um ferro.
Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam faíscas, colocou o seu valete; Afonso, profundamente infeliz, separou-se do rei de paus; Vilaça bateu de estalo com o ás. E imediatamente foi em redor uma discussão tremenda sobre a puchada de D. Diogo - em quanto Carlos, a quem as cartas sempre enfastiavam, se debruçava a coçar o ventre fofo do venerável Reverendo.
- Que perguntavas tu, filho? disse enfim Afonso erguendo-se, ainda irritado, a buscar tabaco para o cachimbo, sua consolação nas derrotas. O Ega? Não, ninguém o viu, não tornou a aparecer! Está também um bom ingrato, esse John...
Ao nome do Ega, Vilaça, parando de baralhar as cartas, erguera a face curiosa:
- Então sempre é certo que ele vai montar casa?
Foi Afonso que respondeu, sorrindo e acendendo o cachimbo:
- Montar casa, comprar coupé, deitar libré, dar soirées literárias, publicar um poema, o diabo!
- Ele esteve lá no escritório, dizia Vilaça recomeçando a baralhar. Esteve lá a indagar o que tinha custado o consultório, a mobília de veludo, etc. O veludo verde deu-lhe no goto... Eu, como é um amigo da casa, lá lhe prestei informações, até lhe mostrei as contas. - E respondendo a uma pergunta do Sequeira: - Sim, a mãe tem dinheiro, e creio que lhe dá o bastante. Que em quanto a mim, ele vem-se meter na política. Tem talento, fala bem, o pai já era muito regenerador... Ali há ambição.
- Ali há mulher, disse D. Diogo, colocando com peso esta decisão e acentuando-a com uma carícia lânguida à ponta frisada dos bigodes brancos. Lê-se-lhe na cara, basta ver-lhe a cara... Ali há mulher.
Carlos sorria, gabando a penetração de D. Diogo, o seu fino olho à Balzac; e Sequeira, logo, franco como velho soldado, quis saber quem era a Dulcinea. Mas o velho dândi declarou, da profundidade da sua experiência, que essas coisas nunca se sabiam, e era preferível não se saberem. Depois passando os dedos magros e lentos pela face, deixou cair de alto e com condescendência este juizo:
- Eu gosto do Ega, tem apresentação; sobretudo tem dégagè...
Tinham recebido as cartas, fez-se um silêncio na mesa. O general, vendo o seu jogo, soltou um grunhido surdo, arrebatou o cigarro do cinzeiro, e puxou-lhe uma fumaça furiosa.
- Os senhores são muito viciosos, vou ver a gente do bilhar, disse Carlos. Deixei o Steinbroken engalfinhado com o marquês, a perder já quatro mil réis. Querem o punch aqui?
Nenhum dos parceiros respondeu.
E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo silêncio de solenidade. O marquês, estirado sobre a tabela, com a perna meia no ar, o começo de calva alvejando à luz crua que caía dos abat-jours de porcelana, preparava a carambola decisiva. Cruges, que apostara por ele, deixara o divã, o cachimbo turco, e, coçando com um gesto nervoso a grenha crespa que lhe ondeava até à gola do jaquetão, vigiava a bola inquieto, com os olhinhos piscos, o nariz espetado. Do fundo da sala, destacando em preto, o Silveirinha, o Euzebiosinho de Sta. Olavia, estendia também o pescoço, afogado numa gravata de viúvo de merino negro e sem colarinho, sempre macambúzio, mais molengo que outrora, com as mãos enterradas nos bolsos - tão fúnebre que tudo nele parecia complemento do luto pesado, até o preto do cabelo chato, até o preto das lunetas de fumo. Junto ao bilhar, o parceiro do marquês, o conde Steinbroken, esperava: e apesar do susto, da emoção de homem do norte aferrado ao dinheiro, conservava-se correcto, encostado ao taco, sorrindo, sem desmanchar a sua linha britânica, - vestido como um inglês, inglês tradicional destampa, com uma sobrecasaca justa de manga um pouco curta, e largas calças de xadrez sobre sapatões de tacão raso.
- Hurrah! gritou de repente Cruges. Os dez tostõesinhos para cá, Silveirinha!
O marquês carambolara, ganhando a partida, e triunfava também:
- Você trouxe-me a sorte, Carlos!
Steinbroken depusera logo o taco, e alinhava já sobre a tabela, lentamente, uma a uma, as quatro placas perdidas.
Mas o marquês, de giz na mão, reclamava-o para outras refregas, esfaimado de ouro filandês.
- Nada mach!... Vôcê hoje `stá têrivêl! dizia o diplomata, no seu português fluente, mas de acento bárbaro.
O marquês insistia, plantado diante dele, de taco ao ombro como uma vara de campino, dominando-o com a sua maciça, desempenada estatura. E ameaçava-o de destinos medonhos numa voz possante habituada a ressoar nas lezírias; queria-o arruinar ao bilhar, força-lo a empenhar aqueles belos anéis, leva-lo ele, ministro da Finlândia e representante duma raça de reis fortes, a vender senhas à porta da Rua dos Condes!
Todos riam; e Steinbroken também, mas com um riso franzido e difícil, fixando no marquês o olhar azul-claro, claro e frio, que tinha no fundo da sua miopia a dureza dum metal. Apesar da sua simpatia pela ilustre casa de Souzela, achava estas familiaridades, estas tremendas chalaças, incompatíveis com a sua dignidade e com a dignidade da Finlândia. O marquês, porém, coração de ouro, abraçava-o já pela cinta, com expansão:
- Então se não quereis mais bilhar, um bocadinho de canto, Steinbroken amigo!
A isto o ministro acedeu, afável, preparando-se logo, dando carícias ligeiras ás suissas, e aos anéis do cabelo dum loiro de espiga desbotada.
Todos os Steinbrokens, de pais a filhos (como ele dissera a Afonso) eram bons barítonos: e isso trouxera à família não poucos proventos sociais. Pela voz cativara seu pai o velho rei Rudolfo III, que o fizera chefe das coudelarias, e o tinha noites inteiras nos seus quartos, ao piano, cantando salmos luteranos, corais escolares, sagas da Dalecarlia - em quanto o taciturno monarca cachimbava e bebia, até que saturado de emoção religiosa, saturado de cerveja preta, tombava do sofá, soluçando e babando-se. Ele mesmo, Steinbroken, levara parte da sua carreira ao piano, já como adido, já como segundo secretario. Feito chefe de missão, absteve-se: foi só quando viu o Figaro celebrar repetidamente as valsas do príncipe Artof, embaixador da Rússia em Paris, e a voz de basso do conde de Baspt, embaixador da Áustria em Londres, que ele, seguindo tão altos exemplos, arriscou, aqui e alem, em soirées mais intimas, algumas melodias filandesas. Enfim cantou no Paço. E desde então exerceu com zelo, com formalidades, com praxes, o seu cargo de «barítono plenipotenciário,» como dizia o Ega. Entre homens, e com os reposteiros corridos, Steinbroken não duvidava todavia cantarolar o que ele chamava «cançonetas brejeiras» - o Amant de Amanda, ou uma certa balada inglesa:
On te Serpentine,
Oh my Caroline...
Oh!
Este oh! como ele o expelia, gemido, bem puxado, num movimento de batuque, expressivo e todavia digno... Isto entre rapazes e com os reposteiros fechados.
Nessa noite, porém, o marquês, que o conduzia pelo braço à sala do piano, exigia uma daquelas canções da Finlândia, de tanto sentimento e que lhe faziam tão bem à alma...
- Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto, frisk, gluzk... La ra lá, lá, lá!
- A Primavera, disse o diplomata sorrindo.
Mas antes de entrar na sala, o marquês soltou o braço de Steinbroken, fez um sinal ao Silveirinha para o fundo do corredor - e aí, sob um sombrio painel de Santa Madalena no deserto penitenciando-se e mostrando nudezas ricas de ninfa lúbrica, interpelou-o quasi com aspereza:
- Vamos nós a saber. Então, decide-se ou não?
Era uma negociação que havia semanas se arrastava entre eles, a respeito duma parelha de éguas. Silveirinha nutria o desejo de montar carruagem; e o marquês procurava vender-lhe umas éguas brancas, a que ele dizia «ter tomado enguiço, apesar de serem dois nobres animais». Pedia por elas um conto e quinhentos mil réis. Silveirinha fora avisado pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era uma espiga: o marquês tinha a sua moral própria para negócios de gado, e exultaria em intrujar um pichote. Apesar de advertido, Euzébio cedendo à influência da grossa voz do marquês, da robustez do seu físico, da antiguidade do seu título, não ousava recusar. Mas hesitava; e nessa noite deu a resposta usual de forreta, coçando o queixo, cosido ao muro:
- Eu verei, marquês... Um conto e quinhentos é dinheiro...
O marquês ergueu dois braços ameaçadores como duas trancas:
- Homem, sim ou não! Que diabo... Dois animais que são duas estampas... Irra! Sim ou não!
Euzébio ajeitou as lunetas, rosnou:
- Eu verei... Ele é dinheiro. Sempre é dinheiro...
- Queria você, talvez, paga-las com feijões? Você leva-me a cometer um excesso!
O piano ressoou, em dois acordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o marquês, baboso por música, imediatamente largou a questão das éguas, recolheu em pontas de pés. Euzebiosinho ainda ficou a remoer, a coçar o queixo; enfim, ás primeiras notas de Steinbroken, veio pousar como uma sombra silenciosa entre a ombreira e o reposteiro.
Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabeleira como pousada ás costas, Cruges feria o acompanhamento, de olhos cravados no livro de Melodias Filandesas. Ao lado, empertigado, quasi oficial, com o lenço de seda na mão, a mão fincada contra o peito, Steinbroken soltava um canto festivo, num movimento de tarantela triunfante, em que passavam, como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras de que o marquês gostava, frisk, slécht, clikst, glukst. Era a Primavera - fresca e silvestre, primavera do norte em país de montanhas, quando toda uma aldeia dança em coros sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas, um sol pálido aveluda os musgos, e a brisa traz o aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de Steinbroken ruborizavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo ele se ía alçando sobre a ponta dos pés, como levado no compasso vivo; despegava então a mão do peito, alargava um gesto, as belas jóias dos seus anéis faiscavam.
O marquês, com as mãos esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto. Na face de Carlos passava um sorriso enternecido pensando em Madame Rughel, que viajara na Finlândia, e cantava ás vezes aquela Primavera nas suas horas de sentimentalismo flamengo...
Steinbroken soltou um stacato agudo, isolado como uma voz num alto, - e imediatamente, afastando-se do piano, passou o lenço sobre as fontes, sobre o pescoço, rectificou com um puxão a linha da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao Cruges num silencioso shake-hands.
- Bravo! bravo! berrava o marquês, batendo as mãos como malhos.
E outros aplausos ressoaram à porta, dos parceiros do whist, que tinham findado a partida. Quasi imediatamente os escudeiros entravam com um serviço frio de croquetes e sandwiches, oferecendo St. Emilion ou Porto; e sobre uma mesa, entre os renques de cálices, a puncheira fumegou num aroma doce e quente de cognac e limão.
- Então, meu pobre Steinbroken, exclamou Afonso, vindo-lhe bater amavelmente no ombro, ainda dá desses belos cantos a estes bandidos, que o maltratam assim ao bilhar?
- Fui essfôladito, si, essfôladito. Agradecido, nô, prefiro um copita Porto...
- Hoje fomos nós as vítimas, disse-lhe o general respirando com delícia o seu punch.
- Você tãbem, meu genêral?
- Sim, senhor, também me cascaram...
E que dizia o amigo Steinbroken ás noticias da manhã? perguntava Afonso. A queda de Mac-Mahon, a eleição de Grevy... O que o alegrava nisto, era o desaparecimento definitivo do antipático senhor de Broglie e da sua clique. A impertinência daquele académico estreito, querendo impor a opinião de dois ou três salões doutrinários à França inteira, a toda uma Democracia! Ah, o Times cantava-lhas!
- E o Punch? Não viu o Punch? Oh, delicioso!...
O ministro pousara o cálice, e esfregando cautelosamente as mãos disse numa meia voz grave a sua frase, a frase definitiva com que julgava todos os acontecimentos que aparecem em telegramas:
- É gràve... É eqsessivemente gràve...
Depois falou-se de Gambeta; e como Afonso lhe atribuía uma ditadura próxima, o diplomata tomou misteriosamente o braço de Sequeira, murmurou a palavra suprema com que definia todas as personalidades superiores, homens de estado, poetas, viajantes ou tenores.
- É um homè mûto forte. É um homè eqsessivemente forte!
- O que ele é, é um ronha! exclamou o general, escorropichando o seu cálice.
E todos três deixaram a sala, discutindo ainda a república - em quanto Cruges continuava ao piano, vagueando por Mendelsshon e por Chopin, depois de ter devorado um prato de croquetes.
O marquês e D. Diogo, sentados no mesmo sofá, um com a sua chazada de invalido, outro com um copo de St. Emilion, a que aspirava o bouquet, falavam também de Gambeta. O marquês gostava de Gambeta: fora o único que durante a guerra mostrara ventas de homem; lá que tivesse «comido» ou que «quisesse comer» como diziam, - não sabia nem lhe importava. Mas era teso! E o Sr. Grevy também lhe parecia um cidadão sério, óptimo para chefe do Estado...
Homem de sala? perguntou languidamente o velho leão.
O marquês só o vira na Assembleia, presidindo e muito digno...
D. Diogo murmurou, com um melancólico desdém na voz, no gesto, no olhar:
- O que eu queria a toda essa canalha era a saúde, marquês!
O marquês consolou-o, galhofeiro e amável. Toda essa gente, parecendo forte por se ocupar de coisas fortes, no fundo tinha asma, tinha pedra, tinha gota... E o Dioguinho era um Hércules...
- Um Hércules! O que é, é que você apaparica-se muito... A doença é um mau habito em que a gente se põe. É necessário reagir... Você devia fazer ginástica, e muita água fria por essa espinha. Você, na realidade, é de ferro!
- Enferrujadote, enferrujadote... - replicou o outro, sorrindo e desvanecido.
- Qual enferrujadote! Se eu fosse cavalo ou mulher, antes o queria a você que a esses badamecos que por aí andam meio podres... Já não há homens da sua tempera, Dioguinho!
- Já não há nada, disse o outro grave e convencido, e como o derradeiro homem nas ruínas dum mundo.
Mas era tarde, ia-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua casada. O marquês ainda se demorou, preguiçando no sofá, enchendo lentamente o cachimbo, dando um olhar àquela sala que o encantava com o seu luxo Luís XV, os seus floridos e os seus dourados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais feitas para a amplidão das anquinhas, as tapeçarias de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras, longes de parques, laços e lãs de cordeiros, sombras de idílios mortos, transparecendo numa trama de seda... Àquela hora, no adormecimento que ía pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia e o ar de um outro século: e o marquês reclamou do Cruges um minuete, uma gavota, alguma coisa que evocasse Versalhes, Maria Antonieta, o ritmo das belas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo em suspiros, preparou-se, alargou os braços - e atacou, com um pedal solene, o Hino da Carta. O marquês fugiu.
Vilaça e Euzebiosinho conversavam no corredor, sentados numa das arcas baixas de carvalho lavrado.
- A fazer política? perguntou-lhes o marquês ao passar.
Ambos sorriram; Vilaça respondeu jocosamente:
- É necessário salvar a pátria!
Euzébio pertencia também ao centro progressista, aspirava a influência eleitoral no circulo de Resende, e ali ás noites no Ramalhete faziam conciliábulos. Nesse momento porém falavam dos Maias: Vilaça não duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, vizinho de Sta. Olavia, quasi criado com Carlos, certas coisas que lhe desagradavam na casa, onde a autoridade da sua palavra parecia diminuir; assim, por exemplo, não podia aprovar o ter Carlos tomado uma frisa de assinatura.
- Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor? Para lá não pôr os pés, para passar aqui as noites... Hoje diz que há entusiasmo, e ele aí esteve. Tem ido lá, eu sei? duas ou três vezes... E para isto dá cá uns poucos de centos de mil réis. Podia fazer o mesmo com meia dúzia de libras! Não, não é governo. No fim a frisa é para o Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu não me utilizo dela; nem o amigo. É verdade, que o amigo está de luto.
Euzébio pensou, com despeito, que se podia meter para o fundo da frisa - se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter um sorriso mole:
- Indo assim, até se podem encalacrar...
Uma tal palavra, tão humilhante, aplicada aos Maias, à casa que ele administrava, escandalizou Vilaça. Encalacrar! Ora essa!
- O amigo não me compreendeu... Há despesas inúteis, sim, mas, louvado Deus, a casa pode bem com elas! É verdade que o rendimento gasta-se todo, até o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas secas; e até aqui o costume da casa foi pôr de lado, fazer bolo, fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se...
Euzébio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, os nove cavalos, o cocheiro inglês, os grooms... O procurador acudiu:
- Isso, amigo, é de razão. Uma gente destas deve ter a sua representação, as suas coisas bem montadas. Há deveres na sociedade... É como o Sr. Afonso... Gasta muito, sim, come dinheiro. Não é com ele, que lhe conheço aquele casaco há vinte anos... Mas são esmolas, são pensões, são empréstimos que nunca mais vê...
- Desperdícios...
- Não lho censuro... É o costume da casa; nunca da porta dos Maias, já meu pai dizia, saiu ninguém descontente... Mas uma frisa, de que ninguém usa! só para o Cruges, só para o Taveira!...
Teve de se calar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado até aos olhos na gola duma ulster, de onde saíam as pontas dum cachenez de seda clara. O escudeiro desembaraçou-o dos agasalhos; e ele, de casaca e colete branco, limpando o bonito bigode húmido da geada, veio apertar a mão ao caro Vilaça, ao amigo Euzébio, arrepiado, mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu chic...
- Nada, nada, dizia Vilaça todo amável, cá o nosso solzinho português sempre é melhor...
E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do marquês, de Carlos, numa das suas sabias e prolixas cavaqueiras sobre cavalos e sport.
- Então? que tal? A mulher? foi a interrogação que acolheu o Taveira.
Mas antes de dar noticia da estreia da Moreli, a dama nova, Taveira reclamou alguma coisa quente. E enterrado numa poltrona junto do fogão, com os sapatos de verniz estendidos para as brasas, respirando o aroma do punch, saboreando uma cigarrete, declarou enfim que não tinha sido um fiasco.
- Que ela, a meu ver, é uma insignificância, não tem nada, nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava tão atrapalhada, que nos fez pena. Houve indulgência, deram-se-lhe umas palmas... Quando fui ao palco, ela estava contente...
- Vamos a saber, Taveira, que tal é ela? inquiria o marquês.
- Cheia, dizia o Taveira colocando as palavras como pinceladas; alta; muito branca; bons olhos; bons dentes...
- E o pésinho? - E o marquês, já com os olhos acesos, passava de vagar a mão pela calva.
Taveira não reparara no pé. Não era amador de pés...
- Quem estava? perguntou Carlos, indolente e bocejando.
- A gente do costume... É verdade, sabes quem tomou a frisa ao lado da tua? Os Gouvarinhos. Lá apareceram hoje...
Carlos não conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe: o conde de Gouvarinho, o par do reino, um homem alto, de lunetas, poseur... E a condessa, uma senhora inglesada, de cabelo cor de cenoura, muito bem feita... Enfim, Carlos não conhecia.
Vilaça encontrava o conde no centro progressista, onde ele era uma coluna do partido. Rapaz de talento, segundo o Vilaça. O que o espantava é que ele pudesse ter assim frisa de assinatura, atrapalhado como estava: ainda não havia três meses lhe tinham protestado uma letra de oitocentos mil réis, no tribunal do comercio...
- Um asno, um caloteiro! disse o marquês com nojo.
- Passa-se lá bem, ás terças feiras... - disse Taveira, mirando a sua meia de seda.
Depois falou-se do duelo do Azevedo da Opinião com o Sá Nunes, autor de El-Rei Bolacha, a grande mágica da Rua dos Condes, e ultimamente ministro da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos jornais de pulhas e de ladrões: e havia dez intermináveis dias que estavam desafiados e que Lisboa, em pasmaceira, esperava o sangue. Cruges ouvira que Sá Nunes não se queria bater, por estar de luto por uma tia; dizia-se também que o Azevedo partira precipitadamente para o Algarve. Mas a verdade, segundo Vilaça, era que o ministro do reino, primo do Azevedo, para evitar o recontro, conservava a casa dos dois cavalheiros bloqueada pela polícia...
- Uma canalha! exclamou o marquês com um dos seus resumos brutais que varriam tudo.
- O ministro não deixa de ter razão, observou Vilaça. Isto ás vezes, em duelos, pode bem suceder uma desgraça...
Houve um curto silêncio. Carlos, que caía de sono, perguntou ao Taveira, através doutro bocejo, se vira o Ega no teatro.
- Pudera! La estava de serviço, no seu posto, na frisa dos Cohens, todo puxado...
- Então essa coisa do Ega com a mulher do Cohen, disse o marquês, parece clara...
- Transparente, diáfana! um cristal!...
Carlos, que se erguera a acender uma cigarrete para despertar, lembrou logo a grande máxima de D. Diogo: essas coisas nunca se sabiam, e era preferível não se saberem! Mas o marquês, a isto, lançou-se em considerações pesadas. Estimava que o Ega se atirasse; e via aí um facto de represália social, por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral não gostava de judeus; mas nada lhe ofendia tanto o gosto e a razão como a espécie banqueiro. Compreendia o salteador de clavina, num pinheiral; admitia o comunista, arriscando a pele sobre uma barricada. Mas os argentários, os Fulanos e Cas. faziam-no encavacar... E achava que destruir-lhes a paz domestica era acto meritório!
- Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relógio. E eu aqui, empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ás dez horas da manhã.
- Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaqueia-se?
- Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... Até contas!
Afonso da Maia já estava recolhido. Sequeira e Steinbroken tinham partido; e D. Diogo, no fundo da sua velha traquitana, lá fora também a tomar ainda gemada, a pôr ainda o emplastro, sob o olho solicito da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. E os outros não tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novo sepultado na ulster, trotou até casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim. O marquês conseguiu levar Cruges no coupé, para lhe ir fazer música a casa, no órgão, até ás três ou quatro horas, música religiosa e triste, que o fazia chorar, pensando nos seus amores e comendo frango frio com fatias de salame. E o viúvo, o Euzebiosinho, esse, batendo o queixo, tão morosa e soturnamente como se caminhasse para a sua própria sepultura, lá se dirigiu ao lupanar onde tinha uma paixão.
O laboratório de Carlos estava pronto - e muito convidativo, com o seu soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta mesa de mármore, um amplo divã de crina para o repouso depois das grandes descobertas, e em redor, por sobre peanhas e prateleiras, um rico brilho de metais e cristais; mas as semanas passavam, e todo esse belo material de experimentação, sob a luz branca da clarabóia, jazia virgem e ocioso. Só pela manhã um servente ia ganhar o seu tostão diário, dando lá uma volta preguiçosa com um espanador na mão.
Carlos realmente não tinha tempo de se ocupar do laboratório; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilegio exclusivo de saber o segredo das coisas - como ele dizia rindo ao avô. Logo pela manhã cedo ía fazer as suas duas horas de armas com o velho Randon; depois via alguns doentes no bairro onde se espalhara, com um brilho de legenda, a cura da Marcelina - e as garrafas de Bordéus que lhe mandara Afonso. Começava a ser conhecido como médico. Tinha visitas no consultório - ordinariamente bacharéis, seus contemporâneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá entravam, murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfarçada história de ternuras funestas. Salvara dum garrotilho a filha dum brasileiro, ao Aterro - e ganhara aí a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um homem da sua família. O Dr. Barbedo convidara-o a assistir a uma operação ovariotómica. E enfim (mas esta consagração não a esperava realmente Carlos tão cedo) alguns dos seus bons colegas, que até aí, vendo-o só a governar os seus cavalos ingleses, falavam do «talento do Maia» - agora percebendo-lhe estas migalhas de clientela, começavam a dizer «que o Maia era um asno.» Carlos já falava a sério da sua carreira. Escrevera, com laboriosos requintes de estilista, dois artigos para a Gazeta Medica; e pensava em fazer um livro de ideias gerais, que se devia chamar Medicina Antiga e Moderna. De resto ocupava-se sempre dos seus cavalos, do seu luxo, do seu bric-a-brac. E através de tudo isto, em virtude dessa fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de patologia, lhe fazia voltar a cabeça, se ouvia falar duma estátua ou dum poeta, atraia-o singularmente a antiga ideia do Ega, a criação duma Revista, que dirigisse o gosto, pesasse na política, regulasse a sociedade, fosse a força pensante de Lisboa...
Era porém inútil lembrar ao Ega este belo plano. Abria um olho vago, respondia:
- Ah, a Revista... Sim, está claro, pensar nisso! Havemos de falar, eu aparecerei...
Mas não aparecia no Ramalhete, nem no consultório; apenas se avistavam, ás vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que não passava no camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa de Carlos, por trás de Taveira ou do Cruges; de onde pudesse olhar de vez em quando Rachel Cohen - e ali ficava, silencioso, com a cabeça apoiada ao tabique, repousando e como saturado de felicidade...
O dia (dizia ele) tinha-o todo tomado: andava procurando casa, andava estudando mobílias... Mas era fácil encontra-lo pelo Chiado e pelo Loreto, a rondar e a farejar - ou então no fundo de tapeias de praça, batendo a meio galope, num espalhafato de aventura.
O seu dândismo requintava; arvorara, com o desplante soberbo dum Brumel, casaca de botões amarelos sobre colete de cetim branco; e Carlos entrando uma manhã cedo no Universal, deu com ele pálido de cólera, a despropositar com um criado, por causa de uns sapatos mal envernizados. Os seus companheiros constantes, agora, eram um Dâmaso Salcede, amigo do Cohen, e um primo da Rachel Cohen, mocinho imberbe, de olho esperto e duro, já com ares de emprestar a trinta por cento.
Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se ás vezes Rachel, e as opiniões discordavam. Taveira achava-a «deliciosa!» - e dizia-o rilhando o dente: ao marquês não deixava de parecer apetitosa, para uma vez, aquela carnesinha faisandée de mulher de trinta anos: Cruges chamava-lhe uma «lambisgóia relambória». Nos jornais, na secção do High-life, ela era «uma das nossas primeiras elegantes»: e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta de ouro presa por um fio de ouro, e a sua caleche azul com cavalos pretos. Era alta, muito pálida, sobre tudo ás luzes, delicada de saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lírio meio murcho: a sua maior beleza estava nos cabelos, magnificamente negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ela deixava habilmente cair numa massa meia solta sobre as costas, como num desalinho de nudez. Dizia-se que tinha literatura, e fazia frases. O seu sorriso lasso, pálido, constante, dava-lhe um ar de insignificância. O pobre Ega adorava-a.
Conhecera-a na Foz, na Assembleia; nessa noite, cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou camélia melada; dias depois já adulava o marido; e agora esse demagogo, que queria o massacre em massa das classes medias, soluçava muita vez por causa dela, horas inteiras, caído para cima da cama.
Em Lisboa, entre o Grémio o a Casa Havaneza, já se começava a falar «do arranjinho do Ega». Ele todavia procurava pôr a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas precauções tanta sinceridade como prazer romântico do mistério: e era nos sítios mais desajeitados, fora de portas, para os lados do Matadouro, que ia furtivamente encontrar a criada que lhe trazia as cartas dela... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce afectado com que espreitava as horas) transbordava a imensa vaidade daquele adultério elegante. De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante de Carlos e dos outros, nunca até aí mencionara o nome dela, nem deixara jamais escapar um lampejo de exaltação.
Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete, noite de lua calma e branca, em que caminhavam ambos calados, Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixão, soltou desabafadamente um suspiro, alargou os braços, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz:
Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l'amour c'est la vie!
Isto fugira-lhe dos lábios como um começo de confissão; Carlos ao lado não disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.
Mas Ega sentiu-se decerto ridículo, porque se calmou, refugiou-se imediatamente no puro interesse literária:
- No fim de contas, menino, digam lá o que disserem, não há senão o velho Hugo...
Carlos, consigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra Hugo, chamando-lhe «saco-roto de espiritualismo», «boca-aberta de sombra», «avôsinho lírico», injurias piores.
Mas nessa noite o grande fraseador continuou:
- Ah o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão heróico de verdades eternas... É necessário um bocado de ideal, que diabo!... De resto o ideal pode ser real...
E foi, com esta palinodia, acordando os silêncios do Aterro.
Dias depois Carlos, no consultório, acabava de despedir um doente, um Viegas, que todas as semanas vinha ali fazer a fastidiosa crónica da sua dispepsia - quando do reposteiro da sala de espera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul, luva gris-perle e um rolo de papel na mão.
- Tens que fazer, doutor?
- Não, ía a sair, janota!
- Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do Átomo... Senta-te aí. Ouve lá.
Imediatamente abancou, afastou papéis e livros, desenrolou o manuscrito, espalmou-o, deu um puxão ao colarinho - e Carlos, que se pousara à borda do divã, com a face espantada e as mãos nos joelhos, achou-se quasi sem transição transportado dos rugidos do ventre do Viegas para um rumor de populaça, num bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg.
- Mas espera lá! exclamou ele. Deixa-me respirar. Isso não é o começo do livro! Isso não é o caos...
Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou também.
- Não, não é o primeiro episódio... Não é o caos. É já no século XV... Mas num livro destes pode-se começar pelo fim... Conveio-me fazer este episódio: chama-se a Hebrea.
A Cohen! pensou Carlos.
Ega tornou a alargar o colarinho - e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finais dos períodos. Depois da sombria pintura dum bairro medieval de Heidelberg, o famoso Átomo, o Átomo do Ega, aparecia alojado no coração do esplêndido príncipe Franck, poeta, cavaleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coração de herói palpitava pela judia Ester, pérola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabino Salomão, um grande doutor da Lei, perseguido pelo ódio teológico do Geral dos Dominicanos.
Isto contava-o o Átomo num monólogo, tão recamado de imagens como um manto da Virgem está recamado de estrelas - e que era uma declaração dele, Ega, à mulher do Cohen. Depois abria-se um intermédio panteísta: rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na linguagem da luz, ou na eloquência dos perfumes, a beleza, a graça, a pureza, a alma celeste de Ester - e de Rachel... Enfim, chegava o negro drama da perseguição: a fuga da família hebraica, através de bosques de bruxas e brutas aldeias feudais; a aparição, numa encruzilhada, do príncipe Franck que vem proteger Ester, de lança alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanática, correndo a queimar o rabino e os seus livros herejes; a batalha, e o príncipe atravessado pelo chuço dum reitre, indo morrer no peito de Ester, que morre com ele num beijo. Tudo isto se precipitava como um sonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as maneiras modernas de estilo, o esforço atormentado inchando a expressão, as camadas de cor atiradas à larga para fazer ressaltar o tom de vida...
Ao findar o Átomo exclamava, com a vasta solenidade dum cheio de órgão: - «assim arrefeceu, parou, aquele coração de herói que eu habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos astros, levando comigo a essência pura desse amor imortal.»
- Então?... disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.
Carlos só pôde responder:
- Está ardente.
Depois elogiou a sério alguns lances, o coro das florestas, a leitura do Eclesiastes, de noite, entre as ruínas da torre de Oton, certas imagens dum grande voo lírico.
Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscrito, reabotoou a sobrecasaca, e já de chapéu na mão:
- Então, parece-te apresentável?...
- Vais publicar?
- Não, mas enfim... - e ficou nesta reticência, fazendo-se corado.
Carlos compreendeu tudo dias depois, encontrando na Gazeta do Chiado uma descrição «da leitura feita em casa do Exmo. Sr. Jacob Cohen, pelo nosso amigo João da Ega, de um dos mais brilhantes episódios do seu livro - As memórias dum átomo.» E o jornalista acrescentava, dando a sua impressão pessoal: «é uma pintura dos sofrimentos porque passaram, nos tempos da intolerância religiosa, aqueles que seguem a Lei de Israel. Que poder de imaginação! Que fluência de estilo! O efeito foi extraordinário, e quando o nosso amigo fechou o manuscrito ao sucumbir da protagonista - vimos lágrimas em todos os olhos da numerosa e estimável colónia hebraica!»
Oh, furor do Ega! Rompeu nessa tarde pelo consultório, pálido, desorientado...
- Estas bestas! Estas bestas destes jornalistas! Leste? Lágrimas em todos os olhos da numerosa e estimável colónia hebraica! Faz cair a coisa em ridículo... E depois a fluência de estilo. Que burros! Que idiotas!
Carlos, que cortava as folhas dum livro, consolou-o. Aquela era a maneira nacional de falar de obras de arte... Não valia a pena bramar...
- Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara àquele foliculário!
- E porque lha não quebras?
- É um amigo dos Cohens.
E foi grunhindo impropérios contra a imprensa, a passos de tigre pelo gabinete. Por fim irritado com a indiferença de Carlos:
- Que diabo estás tu aí a ler? Nature parasitaire des acidents de l'impaludisme... Que blague, a medicina! Dize-me uma coisa. Que diabo serão umas picadas que me vêem aos braços, sempre que vou a adormecer?...
- Pulgas, bichos, vermina... - murmurou Carlos com os olhos no livro.
- Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapéu.
- Vais-te, John?
- Vou, tenho que fazer! - E junto do reposteiro, ameaçando o céu com o guarda-chuva, chorando quasi de raiva: - Estes burros destes jornalistas! São a escoria da sociedade!
daí a dez minutos reapareceu, bruscamente: e já com outra voz, num tom de caso sério:
- Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos Gouvarinhos?
- Não tenho um interesse especial, respondeu Carlos, erguendo os olhos do livro, depois de um silêncio. Mas não tenho também uma repugnância especial.
- Bem, disse Ega. Eles desejam conhecer-te, sobretudo a condessa faz empenho... Gente inteligente, passa-se lá bem... Então, decidido.! Terça feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos gouvarinhar.
Carlos ficou pensando naquela proposta do Ega, na maneira como ele sublinhara o empenho da condessa. Lembrava-se agora que ela era muito intima da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos, naquela fácil vizinhança de frisa, surpreendera certos olhares dela... Mesmo, segundo o Taveira, ela realmente fazia-lhe um olhão. E Carlos achava-a picante, com os seus cabelos crespos e ruivos, o narizinho petulante, e os olhos escuros, dum grande brilho, dizendo mil coisas. Era deliciosamente bem feita - e tinha uma pele muito clara, fina e doce à vista, a que se sentia mesmo de longe o cetim.
Depois daquele dia tristonho de aguaceiros, ele resolvera passar um bom serão de trabalho, ao canto do fogão, no conforto do seu robe-de-chambre. Mas, ao café, os olhos da Gouvarinho começaram a faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe um olhão, colocando-se tentadoramente entre ele a sua noite de estudo, pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade... Tudo culpa do Ega, esse Mefistófeles de Celorico!
Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porém à boca da frisa, preparado, de colete branco e pérola negra na camisa, - em lugar dos cabelos crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um preto de doze anos, trombudo e luzidio, de grande colarinho à mamã sobre uma jaqueta de botões amarelos; ao lado outro preto, mais pequeno, com o mesmo uniforme de colégio, enterrava pela venta aberta o dedo calçado de pelica branca. Ambos eles lhe relancearam os olhos bogalhudos, cor de prata embaciada. A pessoa que os acompanhava, escondida para o fundo, parecia ter um catarro ascoroso.
Dava-se a Lucia em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens não tinham vindo - nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia penetrar ali, derramando o seu pesadume, a morna sensação da sua humidade. Nas cadeiras, vazias, havia uma mulher solitária, vestida de cetim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gás dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas, pareciam ir adormecendo também.
- Isto está lúgubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que ocupava o escuro da frisa.
Cruges, amodorroado num acesso de spleen, com o cotovelo sobre as costas da cadeira, os dedos por entre a cabeleira, todo ele embrulhado em crepes sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo dum sepulcro:
- Pesadote.
Por indolência, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquele preto de que os seus olhos se não podiam despegar, ali entronisado na poltrona de reps verde da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no rebordo onde costumava alvejar um lindo braço, - foi-lhe arrastando, a seu pesar, a imaginação para a pessoa dela; relembrou toiletes com que ela ali estivera; e nunca lhe pareceram tão picantes, como agora que os não via, os seus cabelos ruivos, cor de brasa ás luzes, dum encrespado forte, como crestados da chama interna. A carapinha do preto, essa, em lugar de risca tinha um sulco cavado à tesoura na massa de lã espessa. Quem seriam, por que estavam ali, aqueles africanos de perfil trombudo?
- Tu já reparaste nesta extraordinária carapinha, Cruges?
O outro, que se não mexera da sua atitude de estátua tumular, grunhiu da sombra um monossílabo surdo.
Carlos respeitou-lhe os nervos.
De repente, ao desafinar mais áspero dum coro, Cruges deu um salto.
- Isto só a pontapé... Que empresa esta! rugiu ele, envergando furiosamente o paletó.
Carlos foi leva-lo no coupé à rua das Flores, onde ele morava com a mãe e uma irmã; e até ao Ramalhete não cessou de lamentar consigo o seu serão de estudo perdido.
O criado de Carlos, o Baptista, (familiarmente, o Tista) esperava-o, lendo o jornal, na confortável antecâmara dos «quartos do menino», forrada de veludo cor de cereja, ornada de retratos de cavalos e panóplias de velhas armas, com divãs do mesmo veludo, e muito alumiada a essa hora por dois candeeiros de globo pousados sobre colunas de carvalho, onde se enrolavam lavores de ramos de vide.
Carlos tinha desde os onze anos este criado de quarto, que viera com o Brown para Sta. Olavia, depois de ter servido em Lisboa, na Legação inglesa, e ter acompanhado o ministro, sir Hercules Morrisson, varias vezes a Londres. Foi em Coimbra, nos Paços de Celas, que Baptista começou a ser um personagem: Afonso correspondia-se com ele de Sta. Olavia. Depois viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos paquetes, partilharam dos mesmos sandwiches no bufete das gares; Tista tornou-se um confidente. Era hoje um homem de cinquenta anos, desempenado, robusto, com um colar de barba grisalha por baixo do queixo, e o ar excessivamente gentleman. Na rua, muito direito na sua sobrecasaca, com o par de luvas amarelas espetado na mão, a sua bengala de cana da índia, os sapatos bem envernizados, tinha a considerável aparência de um alto funcionário. Mas conservava-se tão fino e tão desembaraçado, como quando em Londres aprendera a valsar e a boxar na rude balbúrdia dos salões-dançantes, ou como quando mais tarde, durante as ferias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamêgo e o ajudava a saltar o muro do quintal do Sr. escrivão de fazenda - aquele que tinha uma mulher tão garota.
Carlos foi buscar um livro ao gabinete de estudo, entrou no quarto, estendeu-se, cansado, numa poltrona. Á luz opalina dos globos, o leito entre-aberto mostrava, sob a seda dos cortinados, um luxo efeminado de bretanhas, bordados e rendas.
- Que há hoje no Jornal da Noite? perguntou ele bocejando, em quanto Baptista o descalçava.
- Eu li-o todo, meu senhor, e não me pareceu que houvesse coisa alguma. Em França continua sossego... Mas a gente nunca pode saber, porque estes jornais portugueses imprimem sempre os nomes estrangeiros errados.
- São umas bestas. O Sr. Ega hoje estava furioso com eles...
Depois, em quanto Baptista preparava com esmero um grog quente, Carlos já deitado, aconchegado, abriu preguiçosamente o livro, voltou duas folhas, fechou-o, tomou uma cigarrete, e ficou fumando com as pálpebras cerradas, numa imensa beatitude. Através das cortinas pesadas sentia-se o sudoeste que batia o arvoredo, e os aguaceiros alagando os vidros.
- Tu conheces os srs. condes de Gouvarinho, Tista?
- Conheço o Pimenta, meu senhor, que é criado de quarto do Sr. conde... Criado de quarto e serve a mesa.
- E que diz então esse Tormenta? perguntou Carlos, numa voz indolente, depois dum silêncio.
- Pimenta, meu senhor! O Manuel é Pimenta. O Sr. Gouvarinho chama-lhe Romão, por que estava acostumado ao outro criado que era Romão. E já isto não é bonito, porque cada um tem o seu nome. O Manuel é Pimenta. O Pimenta não está contente...
E Baptista, depois de colocar junto da cabeceira a salva com o grog, o açucareiro, as cigarretes, transmitiu as revelações do Pimenta. O conde de Gouvarinho, além de muito maçador e muito pequinhento, não tinha nada de cavalheiro: dera um fato de cheviot claro ao Romão (ao Pimenta), mas tão coçado e tão cheio de riscas de tinta, de limpar a pena à perna e ao ombro, que o Pimenta deitou o presente fora. O conde e a senhora não se davam bem: já no tempo do Pimenta, uma ocasião, à mesa, tinham-se pegado de tal modo que ela agarrou do copo e do prato, e esmigalhou-os no chão. E outra qualquer teria feito o mesmo; por que o Sr. conde, quando começava a repisar, a remoer, não se podia aturar. As questões eram sempre por causa de dinheiro. O Tompson velho estava farto de abrir os cordões à bolsa...
- Quem é esse Tompson velho, que nos aparece agora, a esta hora da noite? perguntou Carlos, a seu pesar interessado.
- O Tompson velho é o pai da Sr.ª condessa. A Sr.ª condessa era uma miss Tompson, dos Tompson do Porto... O Sr. Tompson não tem querido ultimamente emprestar nem mais um real ao genro: de sorte que, uma vez, já no tempo do Pimenta também, o Sr. conde, furioso, disse à senhora que ela e o pai se deviam lembrar que eram gente de comercio e que fora ele que fizera dela uma condessa; e com perdão de V. Ex.ª, a senhora condessa ali mesmo à mesa mandou o condado à tábua... Estas coisas não estão no género do Pimenta.
Carlos bebeu um gole de grog. Bailava-lhe nos lábios uma pergunta, mas hesitava. Depois reflectiu na puerilidade de tão rígidos escrúpulos, a respeito duma gente, que ao jantar, diante do escudeiro, quebrava a porcelana, mandava à tábua o título dos antepassados. E perguntou:
- Que diz o Sr. Pimenta da senhora condessa, Baptista? Ela diverte-se?
- Creio que não, meu senhor. Mas a criada de confiança dela, uma escocesa, essa é desobstinada. E não fica bem à senhora condessa ser assim tão intima com ela...
Houve um silêncio no quarto, a chuva cantou mais forte nos vidros.
- Passando a outro assunto, Baptista. Vamos a saber, há quanto tempo, não escrevo eu a madame Rughel?
Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um livro de apontamentos, aproximou-se da luz, encavalou a luneta no nariz, e verificou, com método, estas datas: - «Dia 1 de janeiro, telegrama expedido com felicitações do começo do ano a madame Rughel, Hotel d'Albe, Champs Éliseés, Paris. Dia 3, telegrama recebido de madame Rughel, reciprocando comprimentos, exprimindo amizade, anunciando partida para Hamburgo. Dia 15, carta lançada ao correio, para madame Rughel, Wiliam-Strasse, Hamburgo, Alemagne. Depois - mais nada. De modo que havia já cinco semanas que o menino não escrevia a madame Rughel...
- É necessário escrever amanhã, disse Carlos.
Baptista tomou uma nota.
Depois, entre uma fumaça lânguida, a voz de Carlos ergueu-se de novo na paz dormente do quarto:
- Madame Rughel era muito bonita, não é verdade, Baptista? É a mulher mais bonita que tu tens visto na tua vida!
O velho criado meteu o livro no bolso da casaca, e respondeu, sem hesitar, muito certo de si:
- Madame Rughel era uma senhora de muita vista. Mas a mulher mais linda em que tenho posto os olhos, se o menino dá licença, era aquela senhora do coronel de hussards que vinha ao quarto do hotel em Viena.
Carlos atirou a cigarrete para a salva - e escorregando pela roupa abaixo, todo invadido por uma onda de recordações alegres, exclamou da profundidade do seu conforto, no antigo tom de ênfase boémia dos Paços de Celas.
- O Sr. Baptista não tem gosto nenhum! Madame Rughel era uma ninfa de Rubens, senhor! Madame Rughel tinha o esplendor duma deusa da Renascença, senhor! Madame Rughel devia ter dormido no leito imperial de Carlos Quinto... - Retire-se, senhor!
Baptista entalou mais o couvre-pieds, relanceou pelo quarto um olhar solicito, e, contente da ordem em que as coisas adormeciam, saiu, levando o candeeiro. Carlos não dormia: e não pensava na coronela de hussards, nem em madame Rughel. A figura que no escuro dos cortinados lhe aparecia, num vago dourado que provinha do reflexo de seus cabelos soltos, era a Gouvarinho - a Gouvarinho que não tinha o esplendor duma deusa da Renascença como madame Rughel, nem era a mulher mais linda em que Baptista pusera os seus olhos como a coronela de hussards: mas, com o seu nariz petulante e a sua boca grande, brilhava mais e melhor que todas na imaginação de Carlos - porque ele esperara-a essa noite e ela não tinha aparecido.
Na terça-feira prometida Ega não veio buscar Carlos para se irem gouvarinhar. E foi Carlos que daí a dias, entrando como por acaso no Universal, perguntou rindo ao Ega:
- Então quando nos gouvarinhamos?
Nessa noite, em S. Carlos, num entre-acto dos Huguenotes, Ega apresentou-o ao Sr. conde de Gouvarinho, no corredor das frisas. O conde, muito amável, lembrou logo que já tivera, mais de uma vez, o prazer de passar pela porta de Sta. Olavia, quando ía ver os seus velhos amigos, os Tedins, a Entre-Rios - uma formosa vivenda também. Falaram então do Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para o conde, nada havia, no nosso Portugal, como os campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoável, pois nesses férteis vales nascera e se criara: e falou um momento de Formozelha, onde tinha casa, onde vivia idosa e doente sua mãe, a Sr.ª condessa viúva...
Ega, que afectara beber as palavras do conde, começou então uma controvérsia, sustentando como se se tratasse dos dogmas duma fé, a beleza superior do Minho, «esse paraíso idílico.» O conde sorria: via ali, como ele observou a Carlos, batendo amavelmente no ombro do Ega, a rivalidade das duas províncias. Emulação fecunda, de resto, no seu pensar...
- Aí está, por exemplo, dizia ele, o ciúme entre Lisboa e Porto. É uma verdadeira dualidade como a que existe entre a Hungria e a Áustria... Ouço por ali lamenta-la. Pois bem, eu, se fosse poder, instiga-la-ia, acirra-la-ia, se V. Exas. me permitem a expressão. Nesta luta das duas grandes cidades do reino, podem outros ver despeitos mesquinhos, eu vejo elementos de progresso. Vejo civilização!
Proferia estas coisas como do alto dum pedestal, muito acima dos homens, deixando-as providamente cair dos tesouros do seu intelecto à maneira de dons inestimáveis. A voz era lenta e rotunda; os cristais da sua luneta de ouro faiscavam vistosamente; e no bigode encerado, na pêra curta, havia ao mesmo tempo alguma coisa de doutoral e de casquilho.
Carlos dizia: «Tem V. Ex.ª razão, Sr. conde.» O Ega dizia: «Você vê essas coisas de alto, Gouvarinho». Ele cruzara as mãos por baixo das abas da casaca - e estavam todos três muito sérios.
Depois o conde abriu a porta da frisa, Ega desapareceu. E daí a um momento, Carlos, apresentado como «visinho de camarote», recebia da Sr.ª condessa um grande shake-hand, em que tilintaram uma infinidade de aros de prata e de blangles índios sobre a sua luva preta de doze botões.
A Sr.ª condessa, um pouco corada, ligeiramente nervosa, lembrou logo a Carlos que o vira no verão passado em Paris, no salão baixo do Café Inglês: até por sinal estava nessa noite um velho abominável com duas garrafas vazias diante de si, e contando alto, para uma mesa defronte, histórias horrorosas do Sr. Gambeta: um sujeito ao lado protestou; o outro não fez caso, era o velho duque de Gramont. O conde passou os dedos lentos pela testa, com um ar quasi angustioso: não se lembrava de nada disso! Queixou-se logo amargamente da sua falta de memória. Uma coisa tão indispensável em quem segue a vida publica, a memória! e ele desgraçadamente, não possuía nem um átomo. Por exemplo, lera (como todo o homem devia ler) os vinte volumes da História Universal de César Cantu; lera-os com atenção, fechado no seu gabinete, absorvendo-se na obra. Pois, senhores, escapara-lhe tudo - e ali estava sem saber história!
- V. Ex.ª tem boa memória, Sr. Maia?
- Tenho uma razoável memória.
- Inapreciável bem de que goza!
A condessa voltara-se para a plateia, coberta com o leque, com o ar constrangido, como se aquelas palavras pueris do marido a diminuíssem, a desfeiassem... Carlos então falou da ópera. Que belo escudeiro huguenote fazia o Pandoli! A condessa não aturava o Corceli, o tenor, com as suas notas ásperas e aquela obesidade que o tornava bufo. Mas também (lembrava Carlos) onde havia hoje tenores? Passara essa grande raça dos Marios, homens de beleza, de inspiração, realizando os grandes tipos líricos. Nicolini era já uma degeneração... Isto fez lembrar a Pati. A condessa adorava-a, e a sua graça de fada, e a sua voz semelhante a uma chuva de ouro!...
Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil coisas; em certos movimentos, o cabelo crespamente ondeado, tomava tons de oiro vermelho: e em torno dela errava, no calor do gás e da enchente, um aroma exagerado de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha de rendas negras, à Valois, afogando-lhe o pescoço onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arzinho de provocação e de ataque. De pé, calado, grave, o conde batia a coxa com a claque fechada.
O quarto acto começara, Carlos ergueu-se; e os seus olhos encontraram defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binóculo, observando-o, mirando a condessa e falando a Rachel, que sorria, movia o leque com um ar dolente e vago.
- Nós recebemos ás terças feiras, disse a condessa a Carlos - e o resto da frase perdeu-se num murmúrio e num sorriso.
O conde acompanhou-o fora, ao corredor.
- É sempre uma honra para mim, dizia ele caminhando ao lado de Carlos, fazer o conhecimento das pessoas que valem alguma coisa neste país... V. Ex.ª é desse número, bem raro infelizmente.
Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta e rotunda:
- Não o lisongeio. Eu nunca lisongeio... Mas a V. Ex.ª podem-se dizer estas coisas, porque pertence à elite: a desgraça de Portugal é a falta de gente. Isto é um país sem pessoal. Quer-se um bispo? Não há um bispo. Quer-se um economista? Não há um economista. Tudo assim! Veja V. Ex.ª mesmo nas profissões subalternas. Quer-se um bom estofador? Não há um bom estofador...
Um cheio de instrumentos e vozes, dum tom sublime, passando pela porta da frisa entreaberta, cortou-lhe umas ultimas palavras sobre a deficiência dos fotógrafos... Escutou, com a mão no ar:
- É o coro dos punhais, não? Ah vamos a ouvir... Ouve-se sempre isto com proveito. Há filosofia nesta música... É pena que lembre tão vivamente os tempos da intolerância religiosa, mas há ali incontestavelmente filosofia!
A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assimilar-se-ia a um Colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha de certo dum revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo de Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números duma data.
Longos anos o Ramalhete permanecera desabitado, com teias de aranha pelas grades dos postigos térreos, e cobrindo-se de tons de ruína. Em 1858 Monsenhor Bucarini, Núncio de S. Santidade, visitara-o com ideia de instalar lá a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edifício e pela paz dormente do bairro: e o interior do casarão agradara-lhe também, com a sua disposição apalaçada, os tectos apainelados, as paredes cobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos Cupidinhos. Mas Monsenhor, com os seus hábitos de rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os arvoredos e as águas dum jardim de luxo: e o Ramalhete possuía apenas, ao fundo dum terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado ás ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatasinha seca, um tanque entulhado, e uma estátua de mármore (onde Monsenhor reconheceu logo Vénus Citereia) enegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres. Além disso, a renda que pediu o velho Vilaça, procurador dos Maias, pareceu tão exagerada a Monsenhor, que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Igreja nos tempos de Leão X. Vilaça respondeu - que também a nobreza não estava nos tempos do Sr. D. João V. E o Ramalhete, continuou desabitado.
Este inútil pardieiro (como lhe chamava Vilaça Junior, agora por morte de seu pai administrador dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870, para lá se arrecadarem as mobílias e as louças provenientes do palacete de família em Benfica, morada quasi histórica, que, depois de andar anos em praça, fora então comprada por um comendador brasileiro. Nessa ocasião vendera-se outra propriedade dos Maias, a Tojeira; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e sabiam que desde a Regeneração eles viviam retirados na sua quinta de Santa Olavia, nas margens do Douro, tinham perguntado a Vilaça se essa gente estava atrapalhada.
- Ainda têm um pedaço de pão, disse Vilaça sorrindo, e a manteiga para lhe barrar por cima.
Os Maias eram uma antiga família da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas colaterais, sem parentelas - e agora reduzida a dois varões, o senhor da casa, Afonso da Maia, um velho já, quasi um antepassado, mais idoso que o século, e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra. Quando Afonso se retirara definitivamente para Santa Olavia, o rendimento da casa excedia já cinquenta mil cruzados: mas desde então tinham-se acumulado as economias de vinte anos de aldeia; viera também a herança dum ultimo parente, Sebastião da Maia, que desde 1830 vivia em Nápoles, só, ocupando-se de numismática; - e o procurador podia certamente sorrir com segurança quando falava dos Maias e da sua fatia de pão.
A venda da Tojeira fora realmente aconselhada por Vilaça: mas nunca ele aprovara que Afonso se desfizesse de Benfica - só pela razão daqueles muros terem visto tantos desgostos domésticos. Isso, como dizia Vilaça, acontecia a todos os muros. O resultado era que os Maias, com o Ramalhete inabitável, não possuíam agora uma casa em Lisboa; e se Afonso naquela idade amava o sossego de Santa Olavia, seu neto, rapaz de gosto e de luxo que passava as ferias em Paris e Londres, não quereria, depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do Douro. E com efeito, meses antes de ele deixar Coimbra, Afonso assombrou Vilaça anunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete! O procurador compôs logo um relatório a enumerar os inconvenientes do casarão: o maior era necessitar tantas obras e tantas despesas; depois, a falta dum jardim devia ser muito sensível a quem saía dos arvoredos de Santa Olavia; e por fim aludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete, «ainda que (acrescentava ele numa frase meditada) até me envergonho de mencionar tais frioleiras neste século de Voltaire, Guisot e outros filósofos liberais...»
Afonso riu muito da frase, e respondeu que aquelas razões eram excelentes - mas ele desejava habitar sob tectos tradicionalmente seus; se eram necessárias obras, que se fizessem e largamente; e enquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par em par as janelas e deixar entrar o sol.
S. Ex.ª mandava: - e, como esse inverno ia seco, as obras começaram logo, sob a direcção dum Esteves, arquitecto, político, e compadre de Vilaça. Este artista entusiasmara o procurador com um projecto de escada aparatosa, flanqueada por duas figuras simbolizando as conquistas da Guiné e da índia. E estava ideando também uma cascata de louça na sala de jantar - quando, inesperadamente, Carlos apareceu em Lisboa com um arquitecto-decorador de Londres, e, depois de estudar com ele à pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para ele ali criar, exercendo o seu gosto, um interior confortável, de luxo inteligente e sóbrio.
Vilaça ressentiu amargamente esta desconsideração pelo artista nacional; Esteves foi berrar ao seu Centro político que isto era um país perdido. E Afonso lamentou também que se tivesse despedido o Esteves, exigiu mesmo que o encarregassem da construção das cocheiras. O artista ia aceitar - quando foi nomeado governador civil.
Ao fim dum ano, durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa colaborar nos trabalhos, «dar os seus retoques estéticos» - do antigo Ramalhete só restava a fachada tristonha, que Afonso não quisera alterada por constituir a fisionomia da casa. E Vilaça não duvidou declarar que Jones Bule (como ele chamava ao inglês) sem despender despropositadamente, aproveitando até as antigualhas de Benfica, fizera do Ramalhete «um museu.»
O que surpreendia logo era o pátio, outrora tão lôbrego, nú, lageado de pedregulho - agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de mármores brancos e vermelhos, plantas decorativas, vasos de Quimper, e dois longos bancos feudais que Carlos trouxera de Espanha, trabalhados em talha, solenes como coros de catedral. Em cima, na antecâmara, revestida como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-na divãs cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscos com reflexos metálicos de cobre, uma harmonia de tons severos, onde destacava, na brancura imaculada do mármore, uma figura de rapariga friorenta, arrepiando-se, rindo, ao meter o pésinho na água. daí partia um amplo corredor, ornado com as peças ricas de Benfica, arcas góticas, jarrões da índia, e antigos quadros devotos. As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No salão nobre, raramente usado, todo em brocados de veludo cor de musgo de outono, havia uma bela tela de Constable, o retrato da sogra de Afonso, a condessa de Runa, de tricorne de plumas e vestido escarlate de caçadora inglesa, sobre um fundo de paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia música, tinha um ar de século XVIII com seus móveis enramelhetados de ouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas tapeçarias de Gobelins, desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as paredes de pastores e de arvoredos.
Defronte era o bilhar, forrado dum couro moderno trazido por Jones Bule, onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, esvoaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais cómoda do Ramalhete: as otomanas tinham a fofa vastidão de leitos; e o aconchego quente, e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes de velhas faianças holandesas.
Ao fundo do corredor ficava o escritório de Afonso, revestido de damascos vermelhos como uma velha câmara de prelado. A maciça mesa de pau preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o solene luxo das encadernações, tudo tinha ali uma feição austera de paz estudiosa - realçada ainda por um quadro atribuído a Rubens, antiga relíquia da casa, um Cristo na Cruz, destacando a sua nudez de atleta sobre um céu de poente revolto e rubro. Ao lado do fogão Carlos arranjara um canto para o avô com um biombo japonês bordado a ouro, uma pele de urso branco, e uma venerável cadeira de braços, cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de seda.
No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de família, estavam os quartos de Afonso. Carlos dispusera os seus, num ângulo da casa, com uma entrada particular, e janelas sobre o jardim: eram três gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e, os recostos acolchoados, a seda que forrava as paredes, faziam dizer ao Vilaça que aquilo não eram aposentos de médico - mas de dançarina!
A casa, depois de arranjada, ficou vazia enquanto Carlos, já formado, fazia uma longa viagem pela Europa; - e foi só nas véspera da sua chegada, nesse lindo outono de 1875, que Afonso se resolveu enfim a deixar Santa Olavia e vir instalar-se no Ramalhete. Havia vinte e cinco anos que ele não via Lisboa; e, ao fim de alguns curtos dias, confessou ao Vilaça que estava suspirando outra vez pelas suas sombras de Santa Olavia. Mas, que remédio! Não queria viver muito separado do neto; e Carlos agora, com ideias sérias de carreira activa, devia necessariamente habitar Lisboa... De resto, não desgostava do Ramalhete, apesar de Carlos, com o seu fervor pelo luxo dos climas frios, ter prodigalizado de mais as tapeçarias, os pesados reposteiros, e os veludos. Agradava-lhe também muito a vizinhança, aquela doce quietação de subúrbio adormecido ao sol. E gostava até do seu quintalejo. Não era de certo o jardim de Santa Olavia: mas tinha o ar simpático, com os seus girassóis perfilados ao pé dos degraus do terraço, o cipreste e o cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes, e a Vénus Citereia parecendo agora, no seu tom claro de estátua de parque, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande século... E desde que a água abundava, a cascatasinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus três pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancolizando aquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de naiade doméstica, esfiado gota a gota na bacia de mármore.
O que desconsolara Afonso, ao principio, fora a vista do terraço - de onde outrora, de certo, se abrangia até ao mar. Mas as casas edificadas em redor, nos últimos anos, tinham tapado esse horizonte esplêndido. Agora, uma estreita tira de água e monte que se avistava entre dois prédios de cinco andares, separados por um corte de rua, formava toda a paisagem defronte do Ramalhete. E, todavia, Afonso terminou por lhe descobrir um encanto íntimo. Era como uma tela marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de cor e luz, os episódios fugitivos duma pacata vida de rio: ás vezes uma vela de barco da Trafaria fugindo airosamente à bolina; outras vezes uma galera toda em pano, entrando num favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancolia dum grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desaparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó de ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglês... E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e duas casas brancas ao rés da água, cheias de expressão - ora faiscantes e despedindo raios das vidraças acesas em brasa; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de poente, quasi semelhantes a um rubor humano; e duma tristeza arrepiada nos dias de chuva, tão sós, tão brancas, como nuas, sob o tempo agreste.
O terraço comunicava por três portas envidraçadas com o escritório - e foi nessa bela câmara de prelado que Afonso se acostumou logo a passar os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe preparara ternamente, ao lado do fogão. A sua longa residência em Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume. Em Santa Olavia as chaminés ficavam acesas até Abril; depois ornavam-se de braçadas de flores, como um altar doméstico; e era ainda aí, nesse aroma e nessa frescura, que ele gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tácito, ou o seu querido Rabelais.
Todavia, Afonso ainda ia longe, como ele dizia, de ser um velho borralheiro. Naquela idade, de verão ou de inverno, ao romper do sol, estava a pé, saindo logo para a quinta, depois da sua boa oração da manhã que era um grande mergulho na água fria. Sempre tivera o amor supersticioso da água; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem - que sabor de água, som de água, e vista de água. O que o prendera mais a Santa Olavia fora a sua grande riqueza de águas vivas, nascentes, repuxos, tranquilo espelhar de águas paradas, fresco murmúrio de águas regantes... E a esta viva tonificação da água atribuía ele o ter vindo assim, desde o começo do século, sem uma dor e sem uma doença, mantendo a rica tradição de saúde da sua família, duro, resistente aos desgostos e anos - que passavam por ele, tão em vão, como passavam em vão, pelos seus robles de Santa Olavia, anos e vendavais.
Afonso era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pele corada, quasi vermelha, o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a barba de neve aguda e longa - lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das idades heróicas, um D. Duarte de Menezes ou um Afonso de Albuquerque. E isto fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando, quanto as aparências iludem!
Não, não era Menezes, nem Albuquerque; apenas um antepassado bonacheirão que amava os seus livros, o aconchego da sua poltrona, o seu whist ao canto do fogão. Ele mesmo costumava dizer, que era simplesmente um egoísta: - mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu coração tinham sido tão profundas e largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, numa caridade enternecida. Cada vez amava mais o que é pobre e o que é fraco. Em Santa Olavia, as crianças corriam para ele, dos portais, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor: - e era dos que não pisam um formigueiro, e se compadece da sede duma planta.
Vilaça costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos patriarcas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminé, na sua coçada quinzena de veludilho, sereno, risonho, com um livro na mão, o seu velho gato aos pés. Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era agora (desde a morte de Tobias, o soberbo cão de S. Bernardo) o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em Santa Olavia, e recebera então o nome de Bonifácio: depois, ao chegar à idade do amor e da caça fora-lhe dado o apelido mais cavalheiresco de D. Bonifácio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades eclesiásticas, e era o Reverendo Bonifácio...
Esta existência nem sempre assim correra com a tranquilidade larga e clara dum belo rio de verão. O antepassado, cujos olhos se enchiam agora duma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume relia com gosto o seu Guisot, fora, na opinião de seu pai, algum tempo, o mais feroz Jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionário do pobre moço consistira em ler Rousseau, Volney, Helvetius, e a Enciclopédia; em atirar foguetes de lágrimas à Constituição; e ir, de chapéu à liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maçónicas Odes abomináveis ao Supremo Arquitecto do Universo. Isto, porém, bastara para indignar o pai. Caetano da Maia era um português antigo e fiel que se benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apatia de fidalgo beato e doente, tinha só um sentimento vivo - o horror, o ódio ao Jacobino, a quem atribuía todos os males, os da pátria e os seus, desde a perda das colónias até ás crises da sua gota. Para extirpar da nação o Jacobino, dera ele o seu amor ao Sr. infante D. Miguel, Messias forte e Restaurador providencial... E ter justamente por filho um Jacobino, parecia-lhe uma provação comparável só ás de Job!
Ao principio, na esperança que o menino se emendasse, contentou-se em lhe mostrar um carão severo e chamar-lhe com sarcasmo - cidadão! Mas quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara à turba que, numa noite de festa cívica e de luminárias, tinha apedrejado as vidraças apagadas do Sr. Legado de Áustria, enviado da Santa Aliança - considerou o rapaz um Marat e toda a sua cólera rompeu. A gota cruel, cravando-o na poltrona, não lhe deixou espancar o mação, com a sua bengala da índia, à lei de bom pai português: mas decidiu expulsá-lo de sua casa, sem mesada e sem bênção, renegado como um bastardo! Que aquele pedreiro livre não podia ser do seu sangue!
As lágrimas da mamã amoleceram-no; sobretudo as razões duma cunhada de sua mulher, que vivia com eles em Benfica, senhora irlandesa de alta instrução, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara inglês ao menino e o adorava como um bebé. Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho para a quinta de Santa Olavia; mas não cessou de chorar no seio dos padres, que vinham a Benfica, a desgraça da sua casa. E esses santos lá o consolavam, afirmando-lhe que Deus, o velho Deus de Ourique, não permitiria jamais que um Maia pactuasse com Belzebut e com a Revolução! E, à falta de Deus Padre, lá estava Nossa Senhora da Solidade, padroeira da casa e madrinha do menino, para fazer o bom milagre.
E o milagre fez-se. Meses depois, o Jacobino, o Marat, voltava de Santa Olavia um pouco contricto, enfastiado sobretudo daquela solidão, onde os chás do brigadeiro Sena eram ainda mais tristes que o terço das primas Cunhas. Vinha pedir ao pai a benção, e alguns mil cruzados, para ir a Inglaterra, esse país de vivos prados e de cabelos de ouro de que lhe falara tanto a tia Fanny. O pai beijou-o, todo em lágrimas, acedeu a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da Solidade! E o mesmo Frei Jerónimo da Conceição seu confessor, declarou este milagre - não inferior ao de Carnaxide.
Afonso partiu. Era na primavera - e a Inglaterra toda verde, os seus parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia penetrante dos seus nobres costumes, aquela raça tão séria e tão forte - encantaram-no. Bem depressa esqueceu o seu ódio aos sorumbáticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau, e a República que quisera fundar, clássica e voltariana, com um triumvirato de Scipiões e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da Abrilada estava ele nas corridas de Epsom, no alto duma sege de posta, com um grande nariz postiço, dando hurrahs medonhos - bem indiferente aos seus irmãos de Maçonaria, que a essas horas o Sr. infante espicaçava a chuço, pelas vielas do Bairro Alto, no seu rijo cavalo de Alter.
Seu pai morreu de súbito, ele teve de regressar a Lisboa. Foi então que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa, uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ela. Teve um filho, desejou outros; e começou logo, com belas ideias de patriarca moço, a fazer obras no palacete de Benfica, a plantar em redor arvoredos, preparando tectos e sombras à descendência amada que lhe encantaria a velhice.
Mas não esquecia a Inglaterra: - e tornava-lha mais apetecida essa Lisboa miguelista que ele via, desordenada como uma Tunis barbaresca; essa rude conjuração apostólica de frades e baleeiros, atroando tavernas e capelas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do lausperene para o curro, e ansiando tumultuosamente pelo príncipe que lhe encarnava tão bem os vícios e as paixões...
Este espectáculo indignava Afonso da Maia; e muitas vezes, na paz do serão, entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu a indignação da sua alma honesta. Já não exigia de certo, como em rapaz, uma Lisboa de Catões e de Mucios-Scevolas. Já admitia mesmo o esforço duma nobreza para manter o seu privilegio históricos; mas então queria uma nobreza inteligente e digna, como a Aristocracia tory (que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealizar), dando em tudo a direcção moral, formando os costumes e inspirando a literatura, vivendo com fausto e falando com gosto, exemplo de ideias altas e espelho de maneiras patrícias... O que não tolerava era o mundo de Queluz, bestial e sórdido.
Tais palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as cortes gerais, a polícia invadiu Benfica, «a procurar papéis e almas escondidas.»
Afonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao lado - viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas, as mãos sujas do malsim rebuscando os colchões do seu leito. O Sr. juiz de fora não descobriu nada: aceitou mesmo na copa um cálice de vinho, e confessou ao mordomo «que os tempos iam bem duros...» Desde essa manhã as janelas do palacete conservaram-se cerradas; não se abriu mais o portão nobre para sair o coche da senhora; e daí a semanas, com a mulher e com o filho, Afonso da Maia partia para Inglaterra e para o exílio.
Aí instalou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres, junto a Richmond, ao fundo dum parque, entre as suaves e calmas paisagens de Surrey.
Os seus bens, graças ao credito do conde de Runa, antigo mimoso de D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro ríspido do Sr. D. Miguel, não tinham sido confiscados; e Afonso da Maia podia viver largamente.
Ao principio os emigrados liberais, Palmela e a gente do Belfast, ainda o vieram desassossegar e consumir. A sua alma recta não tardou a protestar vendo a separação de castas, de hierarquias, mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma ideia - os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres à forra, e a plebe, o exercito, depois dos padecimentos da Galiza, sucumbindo agora à fome, à vermina, à febre nos barracões de Plymouth. Teve logo conflitos com os chefes liberais; foi acusado de vintista e demagogo; descreu por fim do liberalismo. Isolou-se então - sem fechar todavia a sua bolsa, de onde saíam ás cinquenta, ás cem moedas... Mas quando a primeira expedição partiu, e pouco a pouco se foram vasando os depósitos de emigrados, respirou enfim - e, como ele disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar de Inglaterra!
Meses depois sua mãe, que ficara em Benfica, morria duma apoplexia: e a tia Fanny veio para Richmond completar a felicidade de Afonso, com o seu claro juizo, os seus caracóis brancos, os seus modos de discreta Minerva. Ali estava ele pois no seu sonho, numa digna residência inglesa, entre árvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo em torno de si tudo são, forte, livre e sólido, - como o amava o seu coração.
Teve relações; estudou a nobre e rica literatura inglesa; interessou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavalos, pela pratica da caridade; - e pensava com prazer em ficar ali para sempre naquela paz e naquela ordem.
Somente Afonso sentia que sua mulher não era feliz. Pensativa e triste, tossia sempre pelas salas. Á noite sentava-se ao fogão, suspirava e ficava calada...
Pobre senhora! a nostalgia do país, da parentela, das igrejas, ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo palidamente, tinha vivido desde que chegara num ódio surdo aquela terra de herejes e ao seu idioma bárbara: sempre arrepiada, abafada em peles, olhando com pavor os céus fuscos ou a neve nas árvores, o seu coração não estivera nunca ali, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoção (a devoção dos Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se aquela hostilidade ambiente que ela sentia em redor contra os «papistas». E só se satisfazia à noite, indo refugiar-se no sótão com as criadas portuguesas, para rezar o terço agachada numa esteira - gozando ali, nesse murmúrio de ave-marias em país protestante, o encanto de uma conjuração católica!
Odiando tudo o que era inglês, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe provou que era um colégio católico! Não queria: aquele catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas - não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à heresia; - e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capelão do Conde de Runa.
O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha: e a face de Afonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar de alguma caçada ou das ruas de Londres, de entre o forte rumor da vida livre - ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo duma treva:
- Quantos são os inimigos da alma?
E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:
-Três. Mundo, Diabo e Carne...
Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho...
Ás vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho - para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois lá fora o menino, acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros pensativo, triste daquela fraqueza do filho...
Mas o menor esforço dele para arrancar o rapaz aqueles braços de mãe que o amoleciam, aquela cartilha mortal do padre Vasques - trazia logo à delicada senhora acessos de febre. E Afonso não se atrevia já a contrariar a pobre doente, tão virtuosa, e que o amava tanto! Ia então lamentar-se para o pé da tia Fanny: a sábia irlandesa metia os óculos entre as folhas do seu livro, tratado de Addisson ou poema de Pope, e encolhia melancolicamente os ombros. Que podia ela fazer!...
Por fim a tosse de Maria Eduarda foi aumentando - como a tristeza das suas palavras. Já falava da «sua ambição derradeira», que era ver o sol uma vez mais! Por que não voltariam a Benfica, ao seu lar, agora que o Sr. Infante estava também desterrado e que havia uma grande paz? Mas a isso Afonso não cedeu: não queria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas - e os soldados do Sr. D. Pedro não lhe davam mais garantias que os malsins do Sr. D. Miguel.
Por esse tempo veio um grave desgosto à casa: a tia Fanny morreu, duma pneumonia, nos frios de março; e isto enegreceu mais a melancolia de Maria Eduarda, que a amava muito também - por ser irlandesa e católica.
Para a distrair, Afonso levou-a para a Itália, para uma deliciosa vila ao pé de Roma. Aí não lhe faltava o sol: tinha-o pontual e generoso todas as manhãs, banhando largamente os terraços, dourando loureirais e mirtos. E depois, lá em baixo, entre mármores, estava a coisa preciosa e santa, o Papa!
Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente apetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrenta penitência por tardes de sol e de poeira...
Foi necessário acalmá-la, voltar a Benfica.
Aí começou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente, todos os dias mais pálida, levando semanas imóvel sobre um canapé, com as mãos transparentes cruzadas sobre as suas grossas peles de Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-se daquela alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornara-se o grande homem da casa. De resto Afonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras canónicas, de capote e solidão, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio de sacristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha.
Todos aqueles santos varões comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador apareciam sobrecarregadas com as mesadas piedosas que dava a senhora: um Frei Patrício surripiara-lhe duzentas missas de cruzado por alma do Sr. D. José I...
Esta carolice que o cercava ia lançando Afonso num ateísmo rancoroso: quereria as igrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado, uma matança de reverendos... Quando sentia na casa a voz de rezas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel Sequeira, que vivia numa quinta a Queluz.
O Pedrinho no entanto estava quasi um homem. Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da raça, da força dos Maias; a sua linda face oval dum trigueiro cálido, dois olhos maravilhosos e irresistiveis, prontos sempre a humedecer-se, faziam-no assemelhar a um belo árabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indiferente a brinquedos, a animais, a flores, a livros. Nenhum desejo forte parecera jamais vibrar naquela alma meia adormecida e passiva: só ás vezes dizia que gostaria muito de voltar para a Itália. Tomara birra ao Padre Vasques, mas não ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse abatimento continuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarelo, com as olheiras fundas e já velho. O seu único sentimento vivo, intenso, até aí, fora a paixão pela mãe.
Afonso quisera-o mandar para Coimbra. Mas, à ideia de se separar do seu Pedro, a pobre senhora caíra de joelhos diante de Afonso, balbuciando e tremendo: e ele, naturalmente, lá cedeu perante essas mãos suplicantes, essas lágrimas que caiam quatro a quatro pela pobre face de cera. O menino continuou em Benfica dando os seus lentos passeios a cavalo, de criado de farda atrás, começando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa... Depois foi despontando naquela organização uma grande tendência amorosa: aos dezanove anos teve o seu bastardosinho.
Afonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de tão desgraçados mimos, não faltavam ao rapaz qualidades: era muito esperto, são, e, como todos os Maias, valente: não havia muito que ele só, com um chicote, dispersara na estrada três saloios de varapau que lhe tinham chamado palmito.
Quando a mãe morreu, numa agonia terrível de devota, debatendo-se dias nos pavores do inferno, Pedro teve na sua dor os arrebatamentos duma loucura. Fizera a promessa histérica, se ela escapasse, de dormir durante um ano sobre as lajes do pátio: e levado o caixão, saídos os padres, caiu numa angustia soturna, obtusa, sem lágrimas, de que não queria emergir, estirado de bruços sobre a cama numa obstinação de penitente. Muitos meses ainda não o deixou uma tristeza vaga: e Afonso da Maia já se desesperava de ver aquele rapaz, seu filho e seu herdeiro, sair todos os dias a passos de monge, lúgubre no seu luto pesado, para ir visitar a sepultura da mamã...
Esta dor exagerada e mórbida cessou por fim; e sucedeu-lhe, quasi sem transição, um período de vida dissipada e turbulenta, estroinice banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava afogar em lupanares e botequins as saudades da mamã. Mas essa exuberância ansiosa que se desencadeara tão subitamente, tão tumultuosamente, na sua natureza desequilibrada, gastou-se depressa também.
Ao fim dum ano de distúrbios no Marrare, de façanhas nas esperas de touros, de cavalos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, começaram a reaparecer as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam esses dias taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas salas, ou sob alguma árvore da quinta todo estirado de bruços, como despenhado num fundo de amargura. Nesses períodos tornava-se também devoto: lia Vidas de Santos, visitava o Lausperene: eram desses bruscos abatimentos de alma que outrora levavam os fracos aos mosteiros.
Isto penalizava Afonso da Maia: preferia saber que ele recolhera de Lisboa, de madrugada, exausto e bêbedo, - do que vê-lo, de ripanço debaixo do braço, com um ar velho, marchando para a Igreja de Benfica.
E havia agora uma ideia que, a seu pesar, ás vezes o torturava: descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Benfica: este homem extraordinário, com que na casa se metia medo ás crianças, enlouquecera - e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira...
Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor à Romeu, vindo de repente numa troca de olhares fatal e deslumbradora, uma dessas paixões que assaltam uma existência, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a razão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abismos.
Numa tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, à porta de Mme. Levailant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéu branco, e uma senhora loira, embrulhada num chale de Cashmira.
O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo, uma face tisnada de antigo embarcadiço e o ar gauche, desceu todo encostado ao trintanário como se um reumatismo o tolhesse, entrou arrastando a perna o portal da modista; e ela voltando de vagar a cabeça olhou um momento o Marrare.
Sob as rosinhas que ornavam o seu chapéu preto os cabelos loiros, dum oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e clássica: os olhos maravilhosos iluminavam-na toda; a friagem fazia-lhe mais pálida a carnação de mármore: e com o seu perfil grave de estátua, o modelado nobre dos ombros e dos braços que o chale cingia - pareceu a Pedro nesses instantes alguma coisa de imortal e superior à terra.
Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado à outra ombreira, numa pose de tédio - vendo o violento interesse de Pedro, o olhar aceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veio tomar-lhe o braço, murmurou-lhe junto à face, na sua voz grossa e lenta:
- Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os feitos principais? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de Champagne?
Veio o Champagne. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anéis da cabeleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando um puxão aos punhos:
- Por uma dourada tarde de outono...
- André, gritou Pedro ao criado, martelando o mármore da mesa, retira o Champagne!
O Alencar bradou, imitando o actor Epifânio:
- O quê! Sem saciar a avidez de meu lábio?...
Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta das Vozes de Aurora, explicaria aquela gente da caleche azul numa linguagem cristã e pratica!...
- Aí vai, meu Pedro, aí vai!
Havia dois anos, justamente quando Pedro perdera a mamã, aquele velho, o papá Monforte, uma manhã rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa naquela mesma caleche com essa bela filha ao seu lado. Ninguém os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a aparecer em S. Carlos, fazendo uma impressão - uma impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ela atravessava o salão os ombros vergavam-se no deslumbramento de auréola que vinha daquela magnífica criatura, arrastando com um passo de Deusa a sua cauda de corte, sempre decotada como em noites de gala, e apesar de solteira resplandecente de jóias. O papá nunca lhe dava o braço: seguia atrás, entalado numa grande gravata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiço na claridade loira que saía da filha, encolhido e quasi apavorado, trazendo nas mãos o óculo, o libreto, um saco de bombons, o leque e o seu próprio guarda-chuva. Mas era no camarote, quando a luz caía sobre o seu colo ebúrneo e as suas tranças de oiro, que ela oferecia verdadeiramente a encarnação dum ideal da Renascença, um modelo de Ticiano... Ele, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ela e ás outras, ás trigueirotas da assinatura:
- Rapazes! é como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI!
O Magalhães, esse torpe pirata, pusera o dito num folhetim do Português. Mas o dito era dele, Alencar!
Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca naquela casa se abria uma janela. Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manuel. Enfim uma criada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno, tremia diante da filha, e dormia numa rede; a senhora, essa, vivia num ninho de sedas todo azul-ferrete, e passava o seu dia a ler novelas. Isto não podia satisfazer a sofreguidão de Lisboa. Fez-se uma devassa metódica, hábil, paciente... Ele, Alencar, pertencera à devassa.
E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Açores: muito moço, uma facada numa rixa, um cadáver a uma esquina tinham-no forçado a fugir a bordo dum brigue Americano. Tempos depois um certo Silva, procurador da casa de Taveira, que o conhecera nos Açores, estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrara lá o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo cais, de chinelas de esparto, à procura de embarque para a Nova-Orleans. Aqui havia uma treva na história do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor numa plantação da Virgínia... Enfim, quando reapareceu à face dos céus comandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brasil, para a Havana e para a Nova Orleans.
Escapara aos cruzeiros ingleses, arrancara uma fortuna da pele do africano, e agora rico, homem de bem, proprietário, ia ouvir a Coreli a S. Carlos. Todavia esta terrível crónica, como dizia o Alencar, obscura e mal provada, claudicava aqui e além...
- E a filha? perguntou Pedro, que o escutara, sério e pálido.
Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim tão loira e bela? Quem fora a mamã? Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com aquele gesto real no seu chale de Cashmira?...
- Isso, meu Pedro, são mistérios que jamais pôde Lisboa astuta devassar e só Deus sabe!
Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquela legenda de sangue e negros, o entusiasmo pela Monforte acalmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino, a beltà do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se em vilipendiar uma mulher tão loira, tão linda e com tantas jóias, chamaram-lhe logo a negreira! Quando ela aparecia agora no teatro, D. Maria da Gama afectava esconder a face detrás do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ela usava os seus belos rubis) o sangue das facadas que dera o papázinho! E tinham-na caluniado abominavelmente. Assim, depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-se logo, com furor, que estavam arruinados, que a polícia perseguia o velho, mil perversidades... O excelente Monforte, que sofre de reumatismos articulares, achava-se tranquilamente, ricamente, tomando as águas dos Pirineus... Fora lá que o Melo os conhecera...
- Ah! o Melo conhece-os? exclamou Pedro.
- Sim, meu Pedro, o Melo os conhece.
Pedro daí a um momento deixou o Marrare; e nessa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria e miúda, andou rondando uma hora, com a imaginação toda acesa, o palacete dos Vargas apagado e mudo. Depois, daí a duas semanas o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro acto do Barbeiro, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia instalado na frisa da Monforte, à frente, ao lado de Maria, com uma camélia escarlate na casaca - igual ás dum ramo pousado no rebordo de veludo.
Nunca Maria Monforte aparecera mais bela: tinha uma dessas toaletes excessivas e teatrais que ofendiam Lisboa, e faziam dizer ás senhoras que ela se vestia «como uma cómica». Estava de seda cor de trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o colo e nos braços; e estes tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabelos, iluminando-lhe a carnação ebúrnea, banhando as suas formas de estátua, davam-lhe o esplendor duma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Melo, que conversava de pé com o papá Monforte - escondido como sempre no canto negro da frisa.
O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedro voltara à sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Ela conservou algum tempo a sua atitude de Deusa insensível; mas, depois, no dueto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azuis e profundos se fixaram nele, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braços ao ar, a berrar a novidade.
Não tardou de resto a falar-se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Ele também namorou-a publicamente, à antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janela dela, imóvel e pálido de êxtase.
Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel - poemas desordenados que ia compor para o Marrare: e ninguém lá ignorava o destino daquelas paginas de linhas encruzadas que se acumulavam diante dele sobre o tabuleiro da genebra. Se algum amigo vinha à porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:
- O Sr. D. Pedro? Está a escrever à menina.
E ele mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, exclamava radiante, com o seu belo e franco sorriso:
- Espera aí um bocado, rapaz, estou a escrever à Maria!
Os velhos amigos de Afonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Benfica, sobretudo o Vilaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer a nova daqueles amores do Pedrinho. Afonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camélias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume dum envelope com sinete de lacre dourado; - e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho à estroinice bulhenta, ao jogo, ás melancolias sem razão em que reaparecia o negro ripanço...
Mas ignorava o nome, a existência sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos lhe revelaram, aquela facada nos Açores, o chicote de feitor na Virgínia, o brigue Nova Linda, toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Afonso da Maia.
Uma noite que o coronel Sequeira, à mesa do whist, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavalo, «ambos muito bem e muito distingués», Afonso, depois dum silêncio, disse com um ar enfastiado:
- Enfim, todos os rapazes têm as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir tais coisas. Mas essa mulher, com um pai desses, mesmo para amante acho má.
O Vilaça suspendeu o baralhar das cartas, e ajeitando os óculos de ouro exclamou com espanto:
- Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!...
Afonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, numa voz que tremia um pouco também:
- O Vilaça de certo não supõe que meu filho queira casar com essa criatura...
O outro emudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:
-Isso não, está claro que não...
E o jogo continuou algum tempo em silêncio.
Mas Afonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas que Pedro não jantava em Benfica. De manhã, se o via, era um momento, quando ele descia ao almoço, já com uma luva calçada, apressado e radiante, gritando para dentro se estava selado o cavalo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de chá, perguntava a correr «se o papá queria alguma coisas», dava um jeito ao bigode diante do grande espelho de Veneza sobre o fogão, e lá partia, enlevado. Outras vezes todo o dia não saía do quarto: a tarde descia, acendiam-se as luzes; até que o pai, inquieto, subia, ia encontrá-lo estirado sobre o leito, com a cabeça enterrada nos braços.
- Que tens tu? - perguntava-lhe.
- Enxaqueca, - respondia num tom surdo e rouco.
E Afonso descia indignado, vendo em toda aquela angustia covarde alguma carta que não viera, ou talvez uma rosa oferecida que não fora posta nos cabelos...
Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em volta da bandeja do chá, os seus amigos tinham observações que o inquietavam, partindo daqueles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os rumores - enquanto ele passava ali, inverno e verão, entre os seus livros e as suas rosas. Era o excelente Sequeira que perguntava porque não faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, à Alemanha, ao Oriente? Ou o velho Luís Runa, o primo de Afonso, que, a propósito de coisas indiferentes, rompia lamentando os tempos em que o Intendente da polícia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente aludiam à Monforte, evidentemente julgavam-na perigosa.
No verão, Pedro partiu para Sintra; Afonso soube que os Monfortes tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Vilaça apareceu em Benfica, muito preocupado: na véspera Pedro visitara-o no cartório, pedira-lhe informações sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar dinheiro. Ele lá lhe dissera que em setembro, chegando à sua maioridade, tinha a legitima da mamã...
- Mas não gostei disto, meu senhor, não gostei disto...
- E porque, Vilaça? O rapaz quererá dinheiro, quererá dar presentes à criatura... O amor é um luxo caro, Vilaça.
- Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouça!
E aquela confiança tão nobre de Afonso da Maia no orgulho patrício, nos brios de raça de seu filho, chegava a tranquilizar Vilaça.
daí a dias, Afonso da Maia viu enfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam ambos o seu café no mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavalos cobertos de redes. Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido cor de rosa cuja roda, toda em folhos, quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéu, apertadas num grande laço que lhe enchia o peito, eram também cor de rosa: e a sua face, grave e pura como um mármore grego, aparecia realmente adorável, iluminada pelos olhos dum azul sombrio, entre aqueles tons rosados. No assento defronte, quasi todo tomado por cartões de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapéu panamá, calça de ganga, o mantelete da filha no braço, o guarda sol entre os joelhos. Iam calados, não viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou com balanços lentos, sob os ramos que roçavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chávena de café junto aos lábios, de olho esgazeado, murmurando:
- Caramba! É bonita!
Afonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquela sombrinha escarlate, que agora se inclinava sobre Pedro, quasi o escondia, parecia envolvê-lo todo - como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste das ramas.
O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo. Uma manhã, Pedro entrou na livraria onde o pai estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a benção, passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se bruscamente para ele:
- Meu pai, - disse, esforçando-se por ser claro e decidido - venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.
Afonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e numa voz grave e lenta:
- Não me tinhas falado disso... Creio que é a filha dum assassino, dum negreiro, a quem chamam também a negreira...
- Meu pai!
Afonso ergueu-se diante dele, rígido e inexorável como a encarnação mesma da honra domestica.
- Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.
Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão, exclamou todo a tremer, quasi em soluços:
- Pois pode estar certo, meu pai, que hei de casar! Saiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o pai ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao hotel da Europa.
Dois dias depois Vilaça entrou em Benfica, com as lágrimas nos olhos, contando que o menino casara nessa madrugada - e segundo lhe dissera o Sergio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Itália.
Afonso da Maia sentara-se nesse instante à mesa do almoço, posta ao pé do fogão: ao centro, um ramo esfolhava-se num vaso do Japão, à chama forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o número da Grinalda, jornal de versos que ele costumava receber... Afonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo.
- Já almoçou, Vilaça?
O procurador, assombrado daquela serenidade, balbuciou:
- Já almocei, meu senhor...
Então Afonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:
- Pode tirar dali esse talher, Teixeira. Daqui por diante há só um talher à mesa... Sente-se, Vilaça, sente-se.
O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indiferença o talher do menino. Vilaça sentara-se. Tudo em redor era correto e calmo como nas outras manhãs em que almoçara em Benfica. Os passos do escudeiro não faziam ruído no tapete fofo; o lume estalava alegremente, pondo retoques de ouro nas pratas polidas; o sol discreto que brilhava fora no azul de inverno fazia cintilar cristais de geada nas ramas secas; e à janela o papagaio, muito patulea e educado por Pedro, rosnava injurias aos Cabrais.
Por fim Afonso ergueu-se; esteve olhando abstraidamente a quinta, os pavões no terraço; depois ao sair da sala tomou o braço de Vilaça, apoiou-se nele com força, como se lhe tivesse chegado a primeira tremura da velhice, e no seu abandono sentisse ali uma amizade segura. Seguiram o corredor, calados. Na livraria Afonso foi ocupar a sua poltrona ao pé da janela, começou a encher de vagar o seu cachimbo. Vilaça, de cabeça baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas pontas dos pés, como no quarto dum doente. Um bando de pardais veio gralhar um momento nos ramos duma alta árvore que roçava a varanda. Depois houve um silêncio, e Afonso da Maia disse:
- Então, Vilaça, o Saldanha lá foi demitido do Paço?...
O outro respondeu, vaga e maquinalmente:
- É verdade, meu senhor, é verdade...
E não se falou mais de Pedro da Maia.
Capítulo II
Pedro e Maria, no entanto, numa felicidade de novela, iam descendo a Itália, a pequenas jornadas, de cidade em cidade, nessa via sagrada que vai desde as flores e das messes da planície lombarda até ao mole país de romanza, Nápoles, branca sob o azul. Era lá que tencionavam passar o inverno, nesse ar sempre tépido junto a um mar sempre manso, onde as preguiças de noivado têm uma suavidade mais longa... Mas um dia, em Roma, Maria sentiu o apetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar assim, aos balouços das caleças, só para ir ver lazzaroni engolir fios de macarrão. Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elíseos, e gozarem ali um lindo inverno de amor! Paris estava seguro, agora, com o príncipe Luís Napoleão... Além disso, aquela velha Itália clássica enfastiava-a já: tantos mármores eternos, tantas madonas começavam (como ela dizia pendurada languidamente do pescoço de Pedro) a dar tonturas à sua pobre cabeça! Suspirava por uma boa loja de modas, sob as chamas do gás, ao rumor do boulevard... Depois tinha medo da Itália onde todo mundo conspirava.
Foram para França.
Mas por fim aquele Paris ainda agitado, onde parecia restar um vago cheiro de pólvora pelas ruas, onde cada face conservava um calor de batalha, desagradou a Maria. De noite acordava com a Marselhesa; achava um ar feroz à polícia; tudo permanecia triste; e as duquesas, pobres anjos, ainda não ousavam vir ao Bois, com medo dos operários, corja insaciável! Enfim demoraram-se lá até a primavera, no ninho que ela sonhara, todo de veludo azul, abrindo sobre os Campos Elíseos.
Depois principiou a falar-se de novo em revolução, em golpe de estado. A admiração absurda de Maria pelos novos uniformes da garde-mobile fazia Pedro nervoso. E quando ela apareceu grávida, ansiou por a tirar daquele Paris batalhador e fascinante, vir abrigá-la na pacata Lisboa adormecida ao sol.
Antes de partir porém escreveu ao pai.
Fora um conselho, quasi uma exigência de Maria. A recusa de Afonso da Maia ao principio desesperara-a. Não a afligia a desunião doméstica: mas aquele não afrontoso de fidalgo puritano marcara muito publicamente, muito brutalmente, a sua origem suspeita! Odiou o velho: e tinha apressado o casamento, aquela partida triunfante para Itália, para lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avós godos, brios de família - diante dos seus braços nus... Agora porém que ia voltar a Lisboa, dar soirées, criar corte, a reconciliação tornava-se indispensável: aquele pai retirado em Benfica, com o rígido orgulho de outras idades, faria lembrar constantemente, mesmo entre os seus espelhos e os seus estofos, o brigue Nova Linda carregado de negros... E queria mostrar-se a Lisboa pelo braço desse sogro tão nobre e tão ornamental, com as suas barbas de Viso-rei.
-Dize-lhe que já o adoro, murmurava ela curvada sobre a escrivaninha acariciando os cabelos de Pedro. Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei de pôr o nome dele... Escreve-lhe uma carta bonita, hein!
E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá. O pobre rapaz amava-o. Falou-lhe comovido da esperança de ter um filho varão; as desinteligências deviam findar em torno do berço daquele pequeno Maia que ali vinha, morgado e herdeiro do nome... Contava-lhe a sua felicidade com uma efusão de namorado indiscreto: a história da bondade de Maria, das suas graças, da sua instrução, enchia duas paginas: e jurava-lhe que apenas chegasse não tardaria uma hora em ir atirar-se aos seus pés...
Com efeito, apenas desembarcou, correu num trem a Benfica. Dois dias antes o pai partira para Santa Olavia: isto pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o acerbamente.
Fez-se então entre o pai e o filho uma grande separação. Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lho participou - dizendo dramaticamente ao Vilaça «que já não tinha pai!» Era uma linda bebé, muito gorda, loira e cor de rosa, com os belos olhos negros dos Maias. Apesar do desejo de Pedro, Maria não a quis criar; mas adorava-a com frenesi; passava dias de joelhos ao pé do berço, em êxtase, correndo as suas mãos cheias de pedrarias pelas carninhas tenras, pondo-lhe beijos de devota nos pésinhos, na rosquinha das coxas, balbuciando-lhe num enlevo nomes de grande amor, e perfurmando-a já, enchendo-a já de laçarotes.
E nestes delírios pela filha, brotava, mais amarga, a sua cólera contra Afonso da Maia. Considerava-se então insultada em si mesma e naquele querubim que lhe nascera. Injuriava o velho grosseiramente, chamava-lhe o D. Fuas, o Barbatanas...
Pedro um dia ouviu isto, e escandalizou-se: ela replicou desabridamente: e diante daquela face abrasada, onde entre lágrimas os olhos azuis pareciam negros de cólera, ele só pôde balbuciar timidamente:
- É meu pai, Maria...
Seu pai! E à face de toda a Lisboa tratava-a então como uma concubina! Podia ser um fidalgo, as maneiras eram de vilão. Um D. Fuas, um Barbatanas, nada mais!...
Arrebatou a filha, e abraçada nela, romperam as queixas por entre os prantos:
- Ninguém nos ama, meu anjo! Ninguém te quer! Tens só a tua mãe! Tratam-te como se fosses bastarda!
A bebé, sacudida nos braços da mãe, desatou a gritar. Pedro correu, envolveu-as ambas no mesmo abraço, já enternecido, já humilde; e tudo terminou num longo beijo.
E ele, por fim, no seu coração, justificava aquela cólera de mãe que vê desprezado o seu anjo. De resto, mesmo alguns amigos de Pedro, o Alencar, o D. João da Cunha, que começavam agora a frequentar Arroios, riam daquela obstinação de pai gótico, amuado na província, porque sua nora não tivera avós mortos em Aljubarrota! E onde havia outra em Lisboa, com aquelas toiletes, aquela graça, recebendo tão bem? Que diabo, o mundo marchara, saíra-se já das atitudes empertigadas do século XVI!
E o próprio Vilaça, um dia que Pedro lhe fora mostrar a pequerruchinha adormecida entre as rendas do seu berço, sensibilizou-se, veio-lhe uma da suas fáceis lágrimas, declarou, com a mão no coração, que aquilo era uma caturrice do Sr. Afonso da Maia!
- Pois pior para ele! não querer ver um anjo destes! disse Maria, dando diante do espelho um lindo jeito ás flores do cabelo. Também não faz cá falta...
E não fazia falta. Nesse outubro, quando a pequena completou o seu primeiro ano, houve um grande baile na casa de Arroios, que eles agora ocupavam toda, e que fora ricamente remobilada. E as senhoras que outrora tinham horror à negreira, a D. Maria da Gama que escondia a face por traz do leque, lá vieram todas, amáveis e decotadas, com o beijinho pronto, chamando-lhe «querida», admirando as grinaldas de camélias que emolduravam os espelhos de quatrocentos mil réis, e gozando muito os gelados.
Começara então uma existência festiva e luxuosa, que, segundo dizia o Alencar, o íntimo da casa, o cortesão de Madame, «tinham um saborsinho de orgia distinguée como os poemas de Byron.» Eram realmente as soirées mais alegres de Lisboa: ceava-se à uma hora com Champagne; talhava-se até tarde um monte forte; inventavam-se quadros vivos, em que Maria se mostrara soberanamente bela sob as roupagens clássicas de Helena ou no luxo sombrio do luto oriental de Judith. Nas noites mais intimas, ela costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha perfumada. Muitas vezes, na sala de bilhar, as palmas estalaram, vendo-a bater à carambola francesa D. João da Cunha, o grande taco da época.
E no meio desta festança, atravessada pelo sopro romântico da Regeneração, lá se via sempre, taciturno e encolhido, o papá Monforte, de alta gravata branca, com as mãos atrás das costas, rondando pelos cantos, refugiado pelos vãos das janelas, mostrando-se só para salvar alguma bobèche que ia estalar - e não desprendendo nunca da filha o olho embevecido e senil.
Nunca Maria fora tão formosa. A maternidade dera-lhe um esplendor mais copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz àquelas altas salas de Arroios, com a sua radiante figura de Juno loira, os diamantes das tranças, o ebúrneo e o lácteo do colo nu, e o rumor das grandes sedas. Com razão, querendo ter, à maneira das damas da Renascença, uma flor que a simbolizasse, escolhera a tulipa real opulenta e ardente.
Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas, rendas do valor de propriedades!... Podia faze-lo! o marido era rico, e ela sem escrúpulo arruiná-lo-ia, a ele e ao papá Monforte...
Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam. O Alencar esse proclamava-se com alarido seu «cavaleiro e seu poeta». Estava sempre em Arroios, tinha lá o seu talher: por aquelas salas soltava as suas frases ressoantes, por esses sofás arrastava as suas poses de melancolia. Ia dedicar a Maria (e nada havia mais extraordinário que o tom langoroso e plangente, o olho turvo, fatal, com que ele pronunciava este nome - MARIA!) ia dedicar-lhe o seu poema, tão anunciado, tão esperado - FLOR DE MARTYRIO! E citavam-se as estrofes que lhe fizera ao gosto cantante do tempo:
Vi-te essa noite no esplendor das salas
Com as loiras tranças volteando louca...
A paixão do Alencar era inocente: mas, dos outros íntimos da casa, mais dum de certo balbuciara já a sua declaração no boudoir azul em que ela recebia ás três horas, entre os seus vasos de tulipas; as suas amigas porém, mesmo as piores, afirmavam que os seus favores nunca teriam passado de alguma rosa dada num vão de janela, ou de algum longo e suave olhar por traz do leque. Pedro todavia começava a ter horas sombrias. Sem sentir ciúmes, vinha-lhe ás vezes, de repente, um tédio daquela existência de luxo e de festa, um desejo violento de sacudir da sala esses homens, os seus íntimos, que se atropelavam assim tão ardentemente em volta dos ombros decotados de Maria.
Refugiava-se então nalgum canto, trincando com furor o charuto: e aí, era em toda a sua alma um tropel de coisas dolorosas e sem nome...
Maria sabia perceber bem na face do marido «estas nuvens», como ela dizia. Corria para ele, tomava-lhe ambas as mãos, com força, com domínio:
- Que tens tu, amor? Estás amuado!
- Não, não estou amuado...
- Olha então para mim!...
Colava o seu belo seio contra o peito dele; as suas mãos corriam-lhe os braços numa carícia lenta e quente, dos pulsos aos ombros; depois, com um lindo olhar, estendia-lhe os lábios. Pedro colhia neles um longo beijo, e ficava consolado de tudo.
Durante esse tempo Afonso da Maia não saía das sombras de Sta. Olavia, tão esquecido para lá como se estivesse no seu jazigo. Já se não falava dele em Arroios, D. Fuas estava roendo a teima. Só Pedro ás vezes perguntava a Vilaça «como ia o papá.» E as noticias do administrador enfureciam sempre Maria: o papá estava óptimo; tinha agora um cozinheiro francês esplêndido; Sta. Olavia enchera-se de hospedes, o Sequeira, André da Ega, D. Diogo Coutinho...
- O Barbatanas trata-se! ia ela dizer ao pai com rancor.
E o velho negreiro esfregava as mãos, satisfeito de o saber assim feliz em Sta. Olavia; porque nunca cessara de tremer à ideia de ver em Arroios, diante de si, aquele fidalgo tão severo e de vida tão pura.
Quando porém Maria teve outro filho, um pequeno, o sossego que então se fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente ao coração de Pedro a imagem do pai abandonado naquela tristeza do Douro. Falou a Maria de reconciliação, a medo, aproveitando a fraqueza da convalescença. E a sua alegria foi grande, quando Maria, depois de ficar um momento pensativa, respondeu:
- Creio que me havia de fazer feliz te-lo aqui...
Pedro, entusiasmado com um assentimento tão inesperado, pensou em abalar para Sta. Olavia. Mas ela tinha um plano melhor: Afonso, segundo dizia o Vilaça, devia recolher em breve a Benfica; pois bem, ela iria lá com o pequeno, toda vestida de preto, e de repente, atirando-se-lhe aos pés, pedir-lhe-ia a benção para seu neto! Não podia falhar! Não podia, realmente; e Pedro viu ali uma alta inspiração de maternidade...
Para abrandar desde já o papá, Pedro quis dar ao pequeno o nome de Afonso. Mas nisso Maria não consentiu. Andava lendo uma novela de que era herói o ultimo Stuart, o romanesco príncipe Carlos Eduardo; e, namorada dele, das suas aventuras e desgraças, queria dar esse nome a seu filho... Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo um destino de amores e façanhas.
O baptizado teve de ser retardado; Maria adoecera com uma angina. Foi muito benigna porém; e daí a duas semanas Pedro podia já sair para uma caçada na sua quinta da Tojeira, adiante de Almada. Devia demorar-se dois dias. A partida arranjara-se unicamente para obsequiar um italiano, chegado por então a Lisboa, distinto rapaz que lhe fora apresentado pelo secretario da Legação Inglesa, e com quem Pedro simpatizara vivamente; dizia-se sobrinho dos Príncipes de Soria; e vinha fugido de Nápoles, onde conspirara contra os Bourbons, e fora condenado à morte. O Alencar e D. João Coutinho iam também à caçada - e a partida foi de madrugada.
Nessa tarde, Maria jantava só no seu quarto, quando sentiu carruagens parando à porta, um grande rumor encher a escada; quasi imediatamente Pedro aparecia-lhe tremulo e enfiado:
- Uma grande desgraça, Maria!
- Jesus!
- Feri o rapaz, feri o napolitano!...
- Como?
Um desastre estúpido!... Ao saltar um barranco, a espingarda dispara-se-lhe, e a carga, zás, vai cravar-se no napolitano! Não era possível fazer curativos na Tojeira, e voltaram logo a Lisboa. Ele naturalmente não consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao hotel: trouxera-o para Arroios, para o quarto verde por cima, mandara chamar o médico, duas enfermeiras para o velar, e ele mesmo lá ia passar a noite...
- E ele?
- Um herói!... Sorri, diz que não é nada, mas eu vejo-o pálido como um morto. Um rapaz adorável! Isto só a mim, Senhor! E então o Alencar que ia mesmo ao pé dele... Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz íntimo, de confiança! até a gente se ria. Mas não, zás, logo o outro, o de cerimónia...
Uma sege, nesse instante, entrava o pátio.
- É o médico!
E Pedro abalou.
Voltou daí a pouco mais tranquilo. O Dr. Guedes quasi rira daquela bagatela, uma chumbada no braço, e alguns grãos perdidos nas costas. Prometera-lhe que daí a duas semanas podia caçar outra vez na Tojeira; e o príncipe estava já fumando o seu charuto. Belo rapaz! Parecia simpatizar com o papá Monforte...
Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitação vaga que lhe dava aquela ideia dum príncipe entusiasta, conspirador, condenado à morte, ferido agora por cima do seu quarto.
Logo de manhã cedo - apenas Pedro saíra a fazer transportar, ele mesmo, do hotel, as bagagens do napolitano - Maria mandou a sua criada francesa de quarto, uma bela moça de Arles, acima, saber da parte dela como S. Alteza passara, e «ver que figura tinha». A arlesiana apareceu, com os olhos brilhantes, a dizer à senhora, nos seus grandes gestos de Provençal, que nunca vira um homem tão formoso! Era uma pintura de Nosso Senhor Jesus Cristo! Que pescoço, que brancura de mármore! Estava muito pálido ainda; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia; e ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros...
Maria, desde então, não pareceu interessar-se mais pelo ferido. Era Pedro que vinha, a cada instante, falar-lhe dele, entusiasmado por aquela existência patética de príncipe conspirador, partilhando já o seu ódio aos Bourbons, encantado com a similitude de gostos que encontrava nele, o mesmo amor da caça, dos cavalos, das armas. Agora logo de manhã, subia para o quarto do Príncipe, de robe-de-chambre e cachimbo na boca, e passava lá horas numa camaradagem, fazendo grogs quentes - permitidos pelo Dr. Guedes. Levava mesmo para lá os seus amigos, o Alencar, o D. João da Cunha. Maria sentia-lhes por cima as risadas. Ás vezes tocava-se viola. E o velho Monforte, pasmado para o herói, não cessava de lhe rondar o leito.
A Arlesiana, essa, também a cada momento aparecia lá a levar toalhas de rendas, um açucareiro que ninguém reclamara, ou algum vaso com flores para alegrar a alcova... Maria, por fim, perguntou a Pedro, muito seria, se além de todos os amigos da casa, duas enfermeiras, dois escudeiros, o papá e ele Pedro - era necessária também constantemente a sua própria criada no quarto de Sua Alteza!
Não era. Mas Pedro riu muito à ideia de que a Arlesiana se tivesse namorado do príncipe. Nesse caso Vénus era-lhe propicia! O napolitano também a achava picante: un très joli brin de femme, tinha ele dito.
A bela face de Maria empalideceu de cólera. Julgava tudo isso de mau gosto, grosseiro, impudente! Pedro fora realmente um doido em trazer assim para a intimidade de Arroios um estrangeiro, um fugido, um aventureiro! Demais, aquela troça em cima, entre grogs quentes, com guitarra, sem respeito por ela ainda toda nervosa, toda fraca da convalescença, indignava-a! Apenas Sua Alteza pudesse acomodar-se com almofadas numa sege, queria-o fora, na estalagem...
- O que aí vai! Jesus! o que aí vai!... disse Pedro.
- É assim.
E de certo foi muito severa também com a Arlesiana, por que nessa tarde Pedro encontrou a moça aos ais no corredor, limpando ao avental os olhos afogueados.
daí a dias, porém, o napolitano, já convalescente, quis recolher ao seu hotel. Não vira Maria: mas em agradecimento da sua hospitalidade mandou-lhe um admirável ramo, e, com uma galanteria de príncipe artista da Renascença, um soneto em italiano enrolado entre as flores e tão perfumado como elas: comparava-a a uma nobre dama da Síria dando a gota de água da sua bilha ao cavaleiro árabe, ferido na estrada ardente; comparava-a à Beatriz do Dante.
Isto afigurou-se a todos de uma rara distinção, e, como disse o Alencar, um rasgo à Byron.
Depois, na soirée do baptizado de Carlos Eduardo, dada daí a uma semana, o napolitano mostrou-se, e impressionou tudo. Era um homem esplêndido, feito como um Apolo, de uma palidez de mármore rico: a sua barba curta e frisada, os seus longos cabelos castanhos, cabelos de mulher, ondeados e com reflexos de ouro, apartados à nazarena - davam-lhe realmente, como dizia a Arlesiana, uma fisionomia de belo Cristo.
Dançou apenas uma contradança com Maria, e pareceu, na verdade, um pouco taciturno e orgulhoso: mas tudo nele fascinava, a sua figura, o seu mistério, até o seu nome de Tancredo. Muitos corações de mulher palpitavam quando ele, encostado a uma ombreira, de claque na mão, uma melancolia na face, exalando o encanto patético de um condenado à morte, derramava lentamente pela sala o langor sombrio do seu olhar de veludo. A marquesa de Alvenga, para o examinar de perto, pediu o braço a Pedro, e foi aplicar-lhe, como a um mármore de museu, a sua luneta de ouro.
- É de apetite! exclamou ela. É uma imagem!... E são amigos, são amigos, Pedro?
- Somos como dois irmãos de armas, minha senhora.
Nessa mesma soirée, o Vilaça informara Pedro que o pai era esperado no dia seguinte em Benfica. E Pedro, logo que se recolheram, falou a Maria em «irem fazer a grande cena ao papá.» Ela, porém, recusou, e com as razões mais imprevistas, as mais sensatas. Tinha cogitado muito! Reconhecia agora que um dos motivos daquela teima do papá - ultimamente chamava-lhe sempre o papá - era essa extraordinária existência de Arroios...
- Mas filha, disse Pedro, escuta, nós não vivemos também em plena orgia... Alguns amigos que vêem...
Pois sim, pois sim... Mas, realmente, estava decidida a ter um interior mais calmo e mais doméstico. Era mesmo melhor para os bebés. Pois bem, queria que o papá estivesse convencido dessa transformação, para que as pazes fossem mais fáceis e eternas.
- Deixa passar dois ou três meses... Quando ele souber como nós vivemos quietinhos, eu o trarei, sossega... É bom também que seja quando meu pai partir para as águas, para os Pirineus. Que o pobre papá, coitado, tem medo do teu... Filho, não achas assim melhor?
- És um anjo, foi a resposta de Pedro, beijando-lhe ambas as mãos.
Toda a antiga maneira de Maria pareceu com efeito ir mudando. Suspendera as soirées. Começou a passar as noites muito recolhidas, com alguns íntimos, no seu boudoir azul. Já não fumava; abandonara o bilhar; e vestida de preto, com uma flor nos cabelos, fazia crochet ao pé do candeeiro. Estudava-se música clássica quando vinha o velho Cazoti. O Alencar, que, imitando a sua dama, entrara também na gravidade, recitava traduções de Klopstock. Falava-se com sisudez de política; Maria era muito regeneradora.
E todas essas noites, Tancredo lá estava, indolente e belo, desenhando alguma flor para ela bordar, ou tangendo à guitarra canções populares de Nápoles. Todos ali o adoravam; mas ninguém mais que o velho Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata, contemplando o Príncipe com enternecimento. Depois, de repente, erguia-se, atravessava a sala, ia-se debruçar sobre ele, palpá-lo, senti-lo, respirá-lo, murmurando no seu francês de embarcadiço:
- Ça aler bien... Hein? Beaucoup bien... Ora estimo...
E estas correntes bruscas de afecto comunicavam-se decerto, porque nesse momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sorrisos para o papá ou vinha beijá-lo na testa.
De dia ocupava-se de coisas serias. Organizara uma útil associação de caridade, a Obra pia dos cobertores, com o fim de fazer no inverno ás famílias necessitadas distribuições de agasalhos; e presidia no salão de Arroios, com uma campainha, as reuniões em que se elaboravam os estatutos. Visitava os pobres. Ia também amiudadas vezes a uma devoção ás Igrejas, toda vestida de preto, a pé, com um véu muito espesso no rosto.
O esplendor da sua beleza aparecia agora velado por uma sombra tocante de ternura grave: a Deusa idealizava-se em Madona; e não era raro ouvi-la de repente suspirar sem razão.
Ao mesmo tempo a sua paixão pela filha crescia. Tinha então dois anos e estava realmente adorável; vinha todas as noites um momento à sala, vestida com um luxo de princesa; e as exclamações, os êxtases de Tancredo não findavam! Fizera-lhe o retrato a carvão, a esfuminho, a aquarela; ajoelhava-se para lhe beijar a mãozinha cor de rosa, como ao bambino sagrado. E Maria, agora, apesar dos protestos de Pedro, dormia sempre com ela entre os braços.
Ao começo desse setembro o velho Monforte partiu para os Pirineus. Maria chorou, dependurada do pescoço do velho, como se ele largasse de novo para as travessias de África.
Ao jantar, porém, chegou já consolada e radiante; e Pedro voltou a falar da reconciliação, parecendo-lhe bom o momento de ir a Benfica recuperar para sempre aquele papá tão teimoso...
- Ainda não, disse ela reflectindo, olhando o seu cálice de Bordéus. Teu pai é uma espécie de santo, ainda o não merecemos... Mais para o inverno.
Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Afonso da Maia estava no seu escritório lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeu a chorar perdidamente.
- Pedro! que sucedeu, filho?
Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo à sua solidão os dois netos, toda uma descendência para amar! E repetia, tremulo também, desprendendo-o de si com grande amor:
- Sossega, filho, que foi?
Pedro então caiu para o canapé, como cai um corpo morto; e levantando para o pai um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, numa voz surda:
- Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!
Afonso da Maia ficou diante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bela face, onde todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco, de uma grande cólera. Viu, num relance, o escândalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E era aquele filho que, desprezando a sua autoridade, ligando-se a essa criatura, estragara o sangue da raça, cobria agora a sua casa de vexame. E ali estava! ali jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de homem traído! Vinha atirar-se para um sofá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passear pela sala, rígido e áspero, cerrando os lábios para que não lhe escapassem as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam o peito em tumulto... - Mas era pai: ouvia, ali ao seu lado, aquele soluçar de funda dor; via tremer aquele pobre corpo desgraçado que ele outrora embalara nos braços; - parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se ele fosse ainda criança, restituindo-lhe ali e para sempre a sua ternura inteira.
- Tinha razão, meu pai, tinha razão, murmurava Pedro entre lágrimas.
Depois ficaram calados. Fora, as pancadas sucessivas da chuva batiam a casa, a quinta, num clamor prolongado; e as árvores, sob as janelas, ramalhavam num vasto vento de inverno.
Foi Afonso que quebrou o silêncio:
- Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só chorar...
- Não sei nada, respondeu Pedro num longo esforço. Sei que fugiu. Eu saí de Lisboa na segunda feira. Nessa mesma noite, ela partiu de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de jóias, uma criada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse à governante e à ama do pequeno que ia ter comigo. Elas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta.
Era um papel já sujo, e desde essa manhã de certo muitas vezes relido, amarrotado com fúria. Continha estas palavras:
«É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que não sou digna de ti, e levo a Maria que me não posso separar dela.»
- E o pequeno, onde está o pequeno? exclamou Afonso.
Pedro pareceu recordar-se:
- Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.
0 velho correu, logo; e daí a pouco aparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adorável bochecha fresca e cor de rosa. Todo ele ria, grulhando, agitando o seu guizo de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mão.
Afonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e acomodou o neto no colo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bela luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha domestica; agora só havia ali aquela facesinha tenra, que se lhe babava nos braços...
- Como se chama ele?
- Carlos Eduardo, murmurou a ama.
- Carlos Eduardo, hein?
Ficou a olha-lo muito tempo, como procurando nele os sinais da sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãozinhas vermelhas que não largavam o guizo, e muito grave, como se a criança o percebesse, disse-lhe:
- Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessário amar o avô!
E àquela forte voz, o pequeno, com efeito, abriu os seus lindos olhos para ele, sérios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãozinha, e martelou-lhe furiosamente a cabeça com o guizo.
Toda a face do velho sorria àquela viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, pôs-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo de avô; depois, com todo o cuidado, foi coloca-lo nos braços da ama.
- Vá, ama, vá... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe o quarto, vá ver o que é necessário.
Fechou a porta, e veio sentar-se junto do filho que se não movera do canto do sofá, nem despregara os olhos do chão.
- Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos não vemos há três anos, filho...
- Há mais de três anos, murmurou Pedro.
Ergueu-se, alongou a vista à quinta, tão triste sob a chuva; depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu próprio retrato, feito em Roma aos doze anos, todo de veludo azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda amargamente:
- Tinha razão, meu pai, tinha razão...
E pouco a pouco, passeando e suspirando, começou a falar daqueles últimos anos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliação, por fim aquela carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento tivera só ideias de sangue e quisera persegui-los. Mas conservava um clarão de razão. Seria ridículo, não é verdade? De certo a fuga fora de antemão preparada, e não havia de ir correndo as estalagens da Europa à busca de sua mulher... Ir lamentar-se à polícia, faze-los prender? Uma imbecilidade; nem impedia que ela fosse já por esses caminhos fora dormindo com outro... Restava-lhe somente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns anos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, sem mãe, com um mau nome. Paciência! Necessitava esquecer, partir para uma longa viagem, para a América talvez; e o pai veria, havia de voltar consolado e forte.
Dizia estas coisas sensatas, passeando devagar, com o charuto apagado nos dedos, numa voz que se acalmava. Mas de repente parou diante do pai, com um riso seco, um brilho feroz nos olhos.
- Sempre desejei ver a América, e é boa ocasião agora... É uma ocasião famosa, hein? Posso até naturalizar-me, chegar a presidente, ou rebentar... Ah! Ah!
- Sim, mais tarde, depois pensarás nisso, filho, acudiu o velho assustado.
Nesse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo do corredor.
- Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.
Teve um suspiro cansada e lento, murmurou:
- Nós jantávamos ás sete...
Quis então que o pai fosse para a mesa. Não havia motivo para que se não jantasse. Ele ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá tinha a cama, não é verdade? Não, não queria tomar nada...
- O Teixeira que me leve um cálice de genebra... Ainda cá está o Teixeira, coitado!
E vendo Afonso sentado, repetiu, já impaciente:
- Vá jantar meu pai, vá jantar, pelo amor de Deus...
Saiu. O pai ouviu-lhe os passos por cima, e o ruído de janelas desabridamente abertas. Foi então andando para a sala de jantar, onde os criados que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de pés, com a lentidão contristada duma casa onde há morte. Afonso sentou-se à mesa só; mas já lá estava outra vez o talher de Pedro; rosas de inverno esfolhavam-se num vaso do Japão; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro.
Afonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto do fogão; e ali ficou envolvido pouco a pouco naquele melancólico crepúsculo de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste contra as vidraças, pensando em todas as coisas terríveis que assim invadiam num tropel patético a sua paz de velho. Mas no meio da sua dor, funda como era, ele percebia um ponto, um recanto do seu coração onde alguma coisa de muito doce, de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se algures, no seu ser, estivesse rompendo, borbulhando uma nascente rica de alegrias futuras; e toda a sua face sorria à chama alegre, revendo a bochechinha rosada, sob as rendas brancas da touca...
Pela casa no entanto tinham-se acendido as luzes. Já inquieto subiu ao quarto do filho; estava tudo escuro, tão húmido e frio, como se a chuva caísse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz de Pedro veio do negro da janela: estava lá, com a vidraça aberta, sentado fora na varanda, voltado para a noite brava, para o sombrio rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a água, toda a invernia agreste.
- Pois estás aqui filho! exclamou Afonso. Os criados hão de querer arranjar o quarto, desce um momento... Estás todo molhado, Pedro!
Apalpava-lhe os joelhos, as mãos regeladas. Pedro ergueu-se com um estremeção, desprendeu-se, impaciente daquela ternura do velho.
- Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me tão bem!
O Teixeira trouxe luzes, e atrás dele apareceu o criado de Pedro, que chegara nesse momento de Arroios, com um largo estojo de viagem recoberto de oleado. As malas tinha-as deixado em baixo; e o cocheiro viera também, como nenhum dos senhores estava em casa...
- Bem, bem, interrompeu Afonso. O Sr. Vilaça lá irá amanhã, e ele dará as ordens.
O criado então, em bicos de pés, foi depor o estojo sobre o mármore da cómoda: ainda lá restavam antigos frascos de toilete de Pedro: e os castiçais sobre a mesa alumiavam o grande leito triste de solteiro com os colchões dobrados ao meio.
A Gertrudes toda atarefada entrara com os braços carregados de roupa de cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; o criado de Arroios pousando o chapéu a um canto, e sempre em ponta de pés, veio ajuda-los também. Pedro no entanto, como sonâmbulo, voltara para a varanda, com a cabeça à chuva, atraído por aquela treva da quinta que se cavava em baixo com um rumor de mar bravo.
Afonso, então, puxou-lhe o braço quasi com aspereza.
- Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento.
Ele seguiu maquinalmente o pai à livraria, mordendo o charuto apagado que desde tarde conservava na mão. Sentou-se longe da luz, ao canto do sofá, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo só os passos lentos do velho, ao comprido das altas estantes, quebraram o silêncio em que toda a sala ia adormecendo. Uma brasa morria no fogão. A noite parecia mais áspera. Eram de repente vergastadas de água contra as vidraças, trazidas numa rajada, que longamente, num clamor teimoso, faziam escoar um dilúvio dos telhados; depois havia uma calma tenebrosa, com uma susurração distante de vento fugindo entre ramagens: nesse silêncio as goteiras punham um pranto lento; e logo uma corda de vendaval corria mais furioso, envolvia a casa num bater de janelas, redomoinhava, partia com silvos desolados.
- Está uma noite de Inglaterra, disse Afonso, debruçando-se a espertar o lume.
Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente. De certo o ferira a ideia de Maria, longe, num quarto alheio, agasalhando-se-lhe no leito do adultério entre os braços do outro. Apertou um instante a cabeça nas mãos, depois veio junto do pai, com o passo mal firme, mas a voz muito calma.
- Estou realmente cansado, meu pai, vou-me deitar. Boa noite... Amanhã conversaremos mais.
Beijou-lhe a mão e saiu de vagar.
Afonso demorou-se ainda ali, com um livro na mão, sem ler, atento só a algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia em silêncio.
Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao quarto onde se fizera a cama da ama. A Gertrudes, o criado de Arroios, o Teixeira, estavam lá cochichando ao pé da cómoda, na penumbra que dava um fólio posto diante do candeeiro; todos se esquivaram em pontas de pés quando lhe sentiram os passos, e a ama continuou a arrumar em silêncio os gavetões. No vasto leito, o pequeno dormia como um Menino Jesus cansado, com o seu guizo apertado na mão. Afonso não ousou beijá-lo, para o não acordar com as barbas ásperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa contra a parede, deu um jeito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a sua dor acalmar-se naquela sombra de alcova onde o seu neto dormia.
- É necessário alguma coisa, ama? perguntou, abafando a voz.
- Não, meu senhor...
Então, sem ruído, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, à luz de duas velas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pai: e na face que ergueu, envelhecida e lívida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.
- Estou a escrever, disse ele.
Esfregou as mãos, como arrepiado da friagem do quarto, e acrescentou:
- Amanhã cedo é necessário que o Vilaça vá a Arroios... Estão lá os criados, tenho lá dois cavalos meus, enfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É número 32 a casa dele, não é? O Teixeira há de saber. Boas noites, papá, boas noites.
No seu quarto, ao lado da livraria, Afonso não pôde sossegar, numa opressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silêncio da casa e do vento que acalmara, ressoavam por cima lentos e contínuos os passos de Pedro.
A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo - quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava no tapete, Afonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.
Entre as duas velas que se extinguiam, com fogachos lívidos, deixara-lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o envelope, numa letra firme: Para o papá.
Daí a dias fechou-se a casa de Benfica. Afonso da Maia partia com o neto e com todos os criados para a quinta de Sta. Olavia.
Quando Vilaça, em fevereiro, foi lá acompanhar o corpo de Pedro, que ia ser depositado no jazigo de família, não pôde conter as lágrimas ao avistar aquela vivenda onde passara tão alegres natais. Um baetão preto recobria o brazão de armas, e esse pano de esquife parecia ter distingido todo o seu negrume sobre a fachada muda, sobre os castanheiros que ornavam o pátio; dentro os criados abafavam a voz, carregados de luto; não havia uma flor nas jarras; o próprio encanto de Sta. Olavia, o fresco cantar das águas vivas por tanques e repuchos, vinha agora com a cadencia saudosa de um choro. E Vilaça foi encontrar Afonso na livraria, com as janelas cerradas ao lindo sol de inverno, caído para uma poltrona, a face cavada sob os cabelos crescidos e brancos, as mãos magras e ociosas sobre os joelhos...
O procurador veio dizer para Lisboa que o velho não durava um ano.
Capítulo III
Mas esse ano passou, outros anos passaram.
Por uma manhã de abril, nas vésperas de Páscoa, Vilaça chegava de novo a Sta. Olavia.
Não o esperavam tão cedo; e como era o primeiro dia bonito dessa primavera chuvosa os senhores andavam para a quinta. O mordomo, o Teixeira, que ia já embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver o Sr. administrador com quem ás vezes se correspondia, e conduziu-o à sala de jantar onde a velha governante, a Gertrudes, tomada de surpresa, deixou cair uma pilha de guardanapos e para lhe saltar ao pescoço.
As três portas envidraçadas estavam abertas para o terraço, que se estendia ao sol, com a sua balaustrada de mármore coberta de trepadeiras: e Vilaça, adiantando-se para os degraus que desciam ao jardim, mal pôde reconhecer Afonso da Maia naquele velho de barba de neve, mas tão robusto e corado, que vinha subindo a rua de romanzeiras com o seu neto pela mão.
Carlos, ao avistar no terraço um desconhecido, de chapéu alto, abafado num cache-nez de pelúcia, correu a mira-lo, curioso - e achou-se arrebatado nos braços do bom Vilaça, que largara o guarda sol, o beijava pelo cabelo, pela face, balbuciando:
- Oh meu menino, meu querido menino! Que lindo que está! que crescido que está...
- Então, sem avisar, Vilaça? exclamava Afonso da Maia, chegando de braços abertos. Nós só o esperávamos para a semana, criatura!
Os dois velhos abraçaram-se; depois um momento os seus olhos encontraram-se, vivos e húmidos, e tornaram a apertar-se comovidos.
Carlos ao lado, muito sério, todo esbelto, com as mãos enterradas nos bolsos das suas largas bragas de flanela branca, o casquete da mesma flanela posta de lado sobre os belos anéis do cabelo negro - continuava a mirar o Vilaça, que com o beiço tremulo, tendo tirado a luva, limpava os olhos por baixo dos óculos.
- E ninguém a espera-lo, nem um criado lá em baixo no rio! dizia Afonso. Enfim, cá o temos, é o essencial... E como você está rijo, Vilaça!
- E V. Ex.ª meu senhor! balbuciou o administrador, engolindo um soluço. Nem uma ruga! Branco sim, mas uma cara de moço... Eu nem o conhecia!... Quando me lembro, a ultima vez que o vi... E cá isto! cá esta linda flor!...
Ia abraçar Carlos outra vez entusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma bela risada, saltou do terraço, foi pendurar-se dum trapésio armado entre as árvores, e ficou lá, balançando-se em cadencia, forte e airoso, gritando: «tu és o Vilaça!»
O Vilaça, de guarda sol debaixo do braço, contemplava-o embevecido.
- Está uma linda criança! Faz gosto! E parece-se com o pai. Os mesmo olhos, olhos dos Maias, o cabelo encaracolado... Mas há de ser muito mais homem!
- É são, é rijo, dizia o velho risonho, anediando as barbas. E como ficou o seu rapaz, o Manuel? Quando é esse casamento? Venha você cá para dentro, Vilaça, que há muito que conversar...
Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha na chaminé de azulejo esmorecia na fina e larga luz de abril; porcelanas e pratas resplandeciam nos aparadores de pau santo; os canários pareciam doidos de alegria.
A Gertrudes, que ficara a observar, acercou-se, com as mãos cruzadas sob o avental branco, familiar, terna.
- Então, meu senhor, aqui está um regalo, ver outra vez este ingrato em Sta. Olavia!
E, com um clarão de simpatia na face, alva e redonda como uma velha lua, ornada já de um buço branco:
-Ah! Sr. Vilaça, isto agora é outra coisa! Até os canários cantam! E também eu cantava, se ainda pudesse.
E foi saindo, subitamente comovida, já com vontade de chorar.
O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia duma à outra ponta dos seus altos colarinhos de mordomo.
- Eu creio que prepararam o quarto azul ao Sr. Vilaça, hein? disse Afonso. No quarto em que você costumava ficar dorme agora a viscondessa...
Então o Vilaça apressou-se a perguntar pela Sr.ª viscondessa. Era uma Runa, uma prima da mulher de Afonso, que, no tempo em que os poetas de Caminha a cantavam, casara com um fidalgote galego, o Sr. visconde de Urigo-de-la-Sierra, um borracho, um brutal que lhe batia: depois, viúva e pobre, Afonso recolhera-a por dever de parentela, e para haver uma senhora em Sta. Olavia.
Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relógio, Afonso interrompeu a relação desses achaques.
- Vilaça, vá-se arranjar, depressa, que daqui a pouco é o jantar.
O administrador surpreendido olhou também o relógio, depois a mesa já posta, os seis talheres, o cesto de flores, as garrafas de Porto.
- Então V. Ex.ª agora janta de manhã? Eu pensei que era o almoço...
- Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regime. De madrugada está já na quinta; almoça ás sete; e janta à uma hora. E eu, enfim, para vigiar as maneiras do rapaz...
- E o Sr. Afonso da Maia, exclamou Vilaça, a mudar de hábitos, nessa idade! O que é ser avô, meu senhor!
- Tolice! não é isso... É que me faz bem. Olhe que me faz bem!... Mas avie-se, Vilaça, avie-se que Carlos não gosta de esperar... Talvez tenhamos o abade.
- O Custódio? Rica coisa! Então, se V. Ex.ª me dá licença...
Apenas no corredor, o mordomo, ansioso por conversar com o Sr. administrador, perguntou-lhe, desembaraçando-o do guarda sol e do chale-manta:
- Com franqueza, como nos acha por cá, pela quinta Sr. Vilaça?
- Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir por gosto a Sta. Olavia.
E, pousando familiarmente a mão no ombro do escudeiro, piscando o olho ainda húmido:
- Tudo isto é o menino. Fez reviver o patrão! O Teixeira riu respeitosamente. O menino realmente era a alegria da casa...
- Olá! Quem toca por cá? exclamou Vilaça, parando nos degraus da escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rebeca.
- É o Sr. Brown, o inglês, o preceptor do menino... Muito habilidoso, é um regalo ouvi-lo; toca ás vezes à noite na sala, o Sr. juiz de direito acompanha-o na concertina... Aqui, Sr. Vilaça, o quarto de V. S.ª...
- Muito bonito, sim senhor!
O verniz dos móveis novos brilhava na luz das duas janelas, sobre o tapete alvadio semeado de florzinhas azuis: e as bambinelas, os reposteiros de cretone, repetiam as mesmas folhagens azuladas sobre fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou o bom Vilaça.
Foi logo apalpar os cretones, esfregou o mármore da cómoda, provou a solidez das cadeiras. Eram as mobílias compradas no Porto, hein? Pois, elegantes. E, realmente, não tinham sido caras. Nem ele fazia ideia! Ficou ainda em bicos de pés a examinar duas aguarelas inglesas representando vacas de luxo, deitadas na relva, à sombra de ruínas românticas. O Teixeira, observou-lhe, com o relógio na mão:
- Olhe que V. S.ª tem só dez minutos... O menino não gosta de esperar.
Então o Vilaça decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois tirou o seu pesado colete de malha de lã; e pela camisa entreaberta via-se ainda uma flanela escarlate por causa dos reumatismos, e os bentinhos de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias da maleta; ao fundo do corredor, a rebeca atacara o Carnaval de Veneza; e através das janelas fechadas sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos campos, todo o verde de abril.
Vilaça, sem óculos, um pouco arrepiado, passava a ponta da toalha molhada pelo pescoço, por traz da orelha, e ia dizendo:
- Então, o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hein? Já se sabe, é ele quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente...
Mas o Teixeira muito grave, muito sério, desiludiu o Sr. administrador. Mimos e mais mimos, dizia s. S.ª? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se ele fosse a contar ao Sr. Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro duma tina de água fria, ás vezes a gear lá fora... E outras barbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensa-lo... Mas não, parece que era sistema inglês! Deixava-o correr, cair, trepar ás árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas coisas... E ás vezes a criancinha, com os olhos abertos, a águar! Muita, muita dureza.
E o Teixeira acrescentou:
- Enfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós aprovássemos a educação que tem levado, isso nunca aprovámos, nem eu, nem a Gertrudes.
Olhou outra vez o relógio, preso por uma fita negra sobre o colete branco, deu alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade, em quanto dizia, junto ao toucador onde o Vilaça acamava as duas longas repas sobre a calva:
- Sabe V. S.ª, apenas veio o mestre inglês, o que lhe ensinou? A remar! A remar, Sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem contar o trapésio, e as habilidades de palhaço; eu nisso nem gosto de falar... Que eu sou o primeiro a dize-lo: o Brown é boa pessoa, calado, asseado, excelente músico. Mas é o que eu tenho repetido à Gertrudes: pode ser muito bom para inglês, não é para ensinar um fidalgo português... Não é. Vá V. S.ª falar a esse respeito com a Sr.ª D. Ana Silveira...
Bateram de manso à porta, o Teixeira emudeceu. Um escudeiro entrou, fez um sinal ao mordomo, tirou-lhe do braço respeitosamente a sobrecasaca, e ficou com ela junto do toucador, onde o Vilaça, vermelho e apressado, lutava ainda com as repas rebeldes.
O Teixeira, da porta, disse com o relógio na mão:
- É o jantar. Tem V. S.ª dois minutos, Sr. Vilaça.
E o administrador daí a um momento abalava também, abotoando ainda o casaco pelas escadas.
Os senhores já estavam todos na sala. Junto do fogão, onde as achas consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o Times. Carlos, a cavalo nos joelhos do avô, contava-lhe uma grande história de rapazes e de bulhas; e ao pé o bom abade Custódio, com o lenço de rapé esquecido nas mãos, escutava, de boca aberta, num riso paternal e terno.
- Olhe quem ali vem, abade, disse-lhe Afonso.
O abade voltou-se, e deu uma grande palmada na coxa:
- Esta é nova! Então é o nosso Vilaça? E não me tinham dito nada! Venham de lá esses ossos, homem!...
Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido com aqueles longos abraços que juntavam as duas cabeças dos velhos - uma com as repas achatadas sobre a calva, outra com uma grande coroa aberta numa mata de cabelo branco. E como eles, de mãos dadas, continuavam a admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos anos, Afonso disse:
- Vilaça! a Sr.ª viscondessa...
O administrador porém procurou-a debalde, com os olhos abertos pela sala. Carlos ria, batendo as mãos: - e Vilaça descobriu-a enfim a um canto, entre o aparador e a janela, sentada numa cadeirinha baixa, vestida de preto, tímida e queda, com os braços rechonchudos pousados sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e mole, branco como papel, as roscas do pescoço, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; não achou uma palavra para dizer ao Vilaça, e estendeu-lhe a mão papuda e pálida, com um dedo embrulhado num pedaço de seda negra. Depois ficou a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar, os olhos no regaço, como exausta daquele esforço.
Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa, o Teixeira esperava, perfilado por traz do alto espaldar da cadeira de Afonso.
Mas Carlos cavalgava ainda o avô, querendo acabar outra história. Era o Manuel, trazia uma pedra na mão... Ele primeiro pensara ir ás boas; mas os dois rapazes começaram a rir... De maneira que os correu a todos...
- E maiores que tu?
- Três rapagões, vovô, pode perguntar à tia Pedra... Ela viu, que estava na eira. Um deles trazia uma foice...
- Está bom, senhor, está bom, ficamos inteirados... Vá, desmonte, que está a sopa a esfriar. Upa! upa!
E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarca feliz, veio sentar-se ao alto da mesa, sorrindo e dizendo:
- Já se vai fazendo pesado, já não está para colo...
Mas reparou então no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentação do procurador.
- O Sr. Brown, o amigo Vilaça... Peço perdão, descuidei-me, foi culpa daquele cavalheiro lá ao fundo da mesa, o Sr. D. Carlos de mata-sete!
O preceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu toda a volta à mesa, rígido e teso, para vir sacudir o Vilaça num tremendo shake-hands; depois, sem uma palavra, reocupou o seu lugar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidáveis bigodes, e foi então que disse ao Vilaça, com o seu forte acento inglês:
- Muito belo dia... glorioso!
- Tempo de rosas, respondeu o Vilaça, cumprimentando, intimidado diante daquele atleta.
Naturalmente, nesse dia, falou-se da jornada de Lisboa, do bom serviço da mala-posta, do caminho de ferro que se ia abrir... O Vilaça já viera no comboio até ao Carregado.
- De causar horror, hein? perguntou o abade, suspendendo a colher que ia levar à boca.
O excelente homem nunca saíra de Resende; e todo o largo mundo, que ficava para além da penumbra da sua sacristia e das árvores do seu passal, lhe dava o terror duma Babel. Sobre tudo essa estrada de ferro, de que tanto se falava...
- Faz arrepiar um bocado, afirmou com experiência Vilaça. Digam o que disserem, faz arrepiar!
Mas o abade assustava-se sobre tudo com as inevitáveis desgraças dessas máquinas!
O Vilaça então lembrou os desastres da mala-posta. No de Alcobaça, quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irmãs de caridade! Enfim de todos os modos havia perigos. Podia-se quebrar uma perna a passear no quarto...
O abade gostava do progresso... Achava até necessário o progresso. Mas parecia-lhe que se queria fazer tudo à lufa-lufa... O país não estava para essas invenções; o que precisava eram boas estradinhas...
- E economia! disse o Vilaça, puxando para si os pimentões.
- Bucelas? murmurou-lhe sobre o ombro o escudeiro.
O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe à luz a cor rica, provou-o com a ponta do lábio, e piscando o olho para Afonso:
- É do nosso!
- Do velho, disse Afonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom néctar?
- Magnificente! exclamou o perceptor com uma energia fogosa.
Então Carlos, estendendo o braço por cima da mesa, reclamou também Bucelas. E a sua razão era haver festa por ter chegado o Vilaça. O avô não consentiu; o menino teria o seu cálice de Colares, como de costume, e um só. Carlos cruzou os braços sobre o guardanapo que lhe pendia do pescoço, espantado de tanta injustiça! Então nem para festejar o Vilaça poderia apanhar uma gotinha de Bucelas? Aí estava uma linda maneira de receber os hospedes na quinta... A Gertrudes dissera-lhe que como viera o Sr. administrador, havia de pôr à noite para o chá o fato novo de veludo. Agora observavam-lhe que não era festa, nem caso para Bucelas... Então não entendia.
O avô, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente um carão severo.
- Parece-me que o senhor está palrando de mais. As pessoas grandes é que palram à mesa.
Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito mansamente:
- Está bom, vovô, não te zangues. Esperarei para quando for grande...
Houve um sorriso em volta da mesa. A própria viscondessa, deleitada, agitou preguiçosamente o leque: o abade, com a sua boa face banhada em êxtase para o menino, apertava as mãos cabeludas contra o peito, tanto aquilo lhe parecia engraçado: e Afonso tossia por traz do guardanapo, como limpando as barbas - a esconder o riso, a admiração que lhe brilhava nos olhos.
Tanta vivacidade surpreendeu também Vilaça. Quis ouvir mais o menino, e pousando o seu talher:
- E diga-me, Carlinhos, já vai adiantado nos seus estudos?
O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as mãos pelo cós das flanelas, e respondeu com um tom superior:
- Já faço ladear a Brigida.
Então o avô, sem se conter, largou a rir, caído para o espaldar da cadeira:
- Essa é boa! Eh! Eh! Já faz ladear a Brigida! E é verdade, Vilaça, já a faz ladear... Pergunte ao Brown; não é verdade, Brown? E a éguasita é uma piorrita, mas fina...
- Oh vovô, gritou Carlos já excitado, dize ao Vilaça, anda. Não é verdade que eu era capaz de governar o dog-cart?
Afonso reassumiu um ar severo.
- Não o nego... Talvez o governasse, se lho consentissem. Mas faça-me favor de se não gabar das suas façanhas, porque um bom cavaleiro deve ser modesto... E sobre tudo não enterrar assim as mãos pela barriga abaixo...
O bom Vilaça, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma observação. Não se podia de certo ter melhor prenda que montar a cavalo com as regras... Mas ele queria dizer se o Carlinhos já entrava com o seu Fedro, o seu Tito Liviosinho...
- Vilaça, Vilaça, advertiu o abade, de garfo no ar e um sorriso de santa malícia, não se deve falar em latim aqui ao nosso nobre amigo... Não admite, acha que é antigo... Ele, antigo é...
- Ora sirva-se desse fricassé, ande abade, disse Afonso, que eu sei que é o seu fraco, e deixe lá o latim...
O abade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaços de ave, ia murmurando:
- Deve-se começar pelo latinzinho, deve-se começar por lá... É a base; é a basezinha!
- Não! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro forrça! Forrça! Músculo...
E repetiu, duas vezes, agitando os formidáveis punhos:
- Prrimeiro musculo, musculo!...
Afonso apoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo de erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma criança numa língua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e outros negócios duma nação extinta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras coisas do Universo em que vive...
- Mas enfim os clássicos, arriscou timidamente o abade.
- Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo duma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...
O abade coçava a cabeça, com o ar arrepiado.
- A instruçãosinha é necessária, disse ele. Você não acha, Vilaça? Que V. Ex.ª, Sr. Afonso da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas enfim a instruçãosinha...
- A instrução para uma criança não é recitar Titire, tu patulae recubans... É saber factos, noções, coisas úteis, coisas praticas...
Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, num sinal ao Vilaça, mostrou-lhe o neto que palrava inglês com o Brown. Eram de certo feitos de força, uma história de briga com rapazes que ele lhe estava a contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor aprovava, retorcendo os bigodes. E à mesa os senhores com os garfos suspensos, por traz os escudeiros de pé e guardanapo no braço, todos, num silêncio reverente, admiravam o menino a falar inglês.
- Grande prenda, grande prenda, murmurou Vilaça, inclinando-se para a Viscondessa.
A excelente senhora corou, através dum sorriso. Parecia assim mais gorda, toda acaçapada na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a cada gole de Bucelas, refrescava-se languidamente com o seu grande leque negro e lentejoulado.
Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Afonso fez uma saúde ao Vilaça. Todos os copos se ergueram num rumor de amizade. Carlos quis gritar Hurrah! O avô, com um gesto repreensivo, imobilizou-o; e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse com uma grande convicção:
- Oh avô, eu gosto do Vilaça. O Vilaça é nosso amigo.
- Muito, e há muitos anos, meu senhor! exclamou o velho procurador, tão comovido que mal podia erguer o cálice na mão.
O jantar findava. Fora, o sol deixara o terraço e a quinta verdejava na grande doçura do ar tranquilo, sob o azul ferrete. Na chaminé só restava uma cinza branca: os lilases das jarras exalavam um aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado de um fio de limão: os criados, de coletes brancos, moviam o serviço donde se escapava algum som argentino: e toda a alva toalha adamascada desaparecia sob a confusão da sobremesa onde os tons dourados do vinho do Porto brilhavam entre as compoteiras de cristal. A Viscondessa afogueada abanava-se. Padre Custódio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coçada luzia nas pregas das mangas.
Então Afonso, sorrindo ternamente, fez a ultima saúde.
- Viva V. S.ª, Sr. Carlos de Mata-sete!
- Sr. Vovô! dizia o pequeno escorropichando o copo. A cabecinha de cabelos negros, a velha face de barbas de neve, saudavam-se das extremidades da mesa - em quanto todos sorriam, no enternecimento daquela cerimónia. Depois o abade, de palito na boca, murmurou as graças. A Viscondessa, cerrando os olhos, juntou também as mãos. E Vilaça que tinha crenças religiosas não gostou de ver Carlos, sem se importar com as graças, saltar da cadeira, vir atirar-se ao pescoço do avô, falar-lhe ao ouvido.
- Não senhor! não senhor! dizia o velho.
Mas o rapaz, abraçando-o mais forte, dava-lhe grandes razões, num murmúrio de mimo doce como um beijo, que ia pondo na face do velho uma fraqueza indulgente.
- É por ser festa, disse ele enfim vencido. Mas veja lá, veja lá...
O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Vilaça pelos braços, fê-lo redemoinhar, e foi cantando num ritmo seu:
- Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Terezinha, inha, inha, inha!
- É a noiva, disse o avô, erguendo-se da mesa. Já tem amores, é a pequena das Silveiras... O café para o terraço, Teixeira.
O dia fora convidava, adorável, dum azul suave, muito puro e muito alto, sem uma nuvem. Defronte do terraço os gerânios vermelhos estavam já abertos; as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, duma delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro; vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado ao perfume adocicado das flores do campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina faiscava de leve aquele sol tímido de primavera tardia, que ao longe envolvia os verdes da quinta, adormecida a essa hora de sesta numa luz fresca e loura.
Os três homens sentaram-se à mesa do café. Defronte do terraço, o Brown, de boné escocês posto ao lado e grande cachimbo na boca, puxava ao alto a barra do trapésio para Carlos se balouçar. Então o bom Vilaça pediu para voltar as costas. Não gostava de ver ginásticas; bem sabia que não havia perigo; mas mesmo nos cavalinhos, as cabriolas, os arcos, atordoavam-no; saía sempre com o estômago embrulhado...
- E parece-me imprudente, sobre o jantar...
- Qual! é só balouçar-se... Olhe para aquilo!
Mas Vilaça não se moveu, com a face sobre a chávena.
O abade, esse, admirava, de lábios entreabertos, e o pires cheio de café esquecido na mão.
- Olhe para aquilo Vilaça, repetiu Afonso. Não lhe faz mal, homem!
O bom Vilaça voltou-se, com esforço. O pequeno muito alto no ar, com as pernas retesadas contra a barra do trapézio, as mãos ás cordas, descia sobre o terraço, cavando o espaço largamente, com os cabelos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno sol; todo ele sorria; a sua blusa, os calções enfunavam-se à aragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito negros e muito abertos.
- Não está mais na minha mão, não gosto, disse o Vilaça. Acho imprudente!
Então Afonso bateu as palmas, o abade gritou bravo, bravo. Vilaça voltou-se para aplaudir, mas Carlos tinha já desaparecido; o trapézio parava, em oscilações lentas; e o Brown, retomando o Times que pusera ao lado sobre o pedestal dum busto, foi descendo para a quinta envolvido numa nuvem de fumo do cachimbo.
- Bela coisa, a ginástica! exclamou Afonso da Maia, acendendo com satisfação outro charuto.
Vilaça já ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abade, depois de dar um sorvo ao café, de lamber os beiços, soltou a sua bela frase, arranjada em máxima:
- Esta educação faz atletas mas não faz cristãos. Já o tenho dito...
- Já o tem dito abade, já! exclamou Afonso alegremente. Diz-mo todas as semanas... Quer você saber, Vilaça? O nosso Custódio mata-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!...
Custódio ficou um momento a olhar Afonso, com uma face desconsolada e a caixa de rapé aberta na mão; a irreligião daquele velho fidalgo, senhor de quasi toda a freguesia, era uma das suas dores:
- A cartilha, sim meu senhor, ainda que V. Ex.ª o diga assim com esse modo escarnica... A cartilha. Mas já não quero falar na cartilha... Há outras coisas. E se o digo tantas vezes, Sr. Afonso da Maia, é pelo amor que tenho ao menino.
E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao café, quando Custódio jantava na quinta.
O bom homem achava horroroso que naquela idade um tão lindo moço, herdeiro duma casa tão grande, com futuras responsabilidades na sociedade, não soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao Vilaça a história da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do escrivão, tendo passado diante do portão da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga de crianças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o acto de contricção. E que respondeu o menino? Que nunca em tal ouvira falar! Estas coisas entristeciam. E o Sr. Afonso da Maia achava-lhe graça, ria-se! Ora ali estava o amigo Vilaça que podia dizer se era caso para jubilar. Não, o Sr. Afonso da Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas duma coisa não o podia convencer, a ele pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que houvesse felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do catecismo.
E Afonso da Maia respondia com bom humor:
- Então que lhe ensinava você, abade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que se não deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os inferiores, por que isso é contra os mandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno, hein? É isso?...
- Há mais alguma coisa...
- Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer, por ser um pecado que ofende a Deus, já ele sabe que se não deve praticar, por que é indigno dum cavalheiro e dum homem de bem...
- Mas, meu senhor...
- Ouça abade. Toda a diferença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo ás caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu...
E acrescentou, erguendo-se e sorrindo:
- Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abade, é quando vem, depois de semanas de chuva, um dia destes, ir respirar pelos campos e não estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! e se o Vilaça não está muito cansado, vamos dar aí um giro pelas fazendas...
O abade suspirou como um santo que vê a negra impiedade dos tempos e Belzebut arrebatando as melhores rezes do rebanho; depois olhou a chávena e sorveu com delícias o resto do seu café.
Quando Afonso da Maia, Vilaça e o abade recolheram do seu passeio pela freguesia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado já as Silveiras, senhoras ricas da quinta da Lagoaça.
D. Ana Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da família, e era em pontos de doutrina e de etiqueta uma grande autoridade em Resende. A viúva, D. Eugénia, limitava-se a ser uma excelente e pachorrenta senhora, de agradável nutrição, trigueirota e pestanuda; tinha dois filhos, a Terezinha, a noiva de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabelos negros como tinta, e o morgadinho, o Euzebiosinho, uma maravilha muito falada naqueles sítios.
Quasi desde o berço este notável menino revelara um edificante amor por alfarrábios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado num cobertor, folheando in-fólios, com o crâniosinho calvo de sábio curvado sobre as letras garrafais de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal propósito que permanecia horas imóvel numa cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca apetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o pasmo da mamã e da titi, passava dias a traçar algarismos, com a linguasinha de fora.
Assim na família tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia, a tia Anica instalava-o logo à mesa, ao pé do candeeiro, a admirar as pinturas dum enorme e rico volume, os Costumes de todos os povos do Universo. Já lá estava essa noite, vestido como sempre de escocês, com o plaid de flamejante xadrez vermelho e negro posto a tiracolo e preso ao ombro por uma dragona; para que conservasse o ar nobre dum Stuart, dum valoroso cavaleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o bonet onde se arqueava com heroismo uma rutilante pena de galo; e nada havia mais melancólico que a sua facesinha trombuda, a que o excesso
de lombrigas dava uma moleza e uma amarelidão de manteiga, os seus olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a ciência lhas tivesse já consumido, pasmando com sisudez para as camponesas da Sicília, e para os guerreiros ferozes do Montenegro apoiados a escopetas, em píncaros de serranias.
Diante do canapé das senhoras lá se achava também o fiel amigo, o Dr. delegado, grave e digno homem, que havia cinco anos andava ponderando e meditando o casamento com a Silveira viúva, sem se decidir - contentando-se em comprar todos os anos mais meia dúzia de lençóis, ou uma peça mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras eram discutidas em casa das Silveiras, à braseira: e as alusões recatadas, mas inevitáveis, ás duas fronhasinhas, ao tamanho dos lençóis, aos cobertores de papa para os aconchegas de janeiro - em lugar de inflamar o magistrado, inquietavam-no. Nos dias seguintes aparecia preocupado - como se a perspectiva da santa consumação do matrimónio lhe desse o arrepio de uma façanha a empreender, o ter de agarrar um touro, ou nadar nos cachões do Douro. Então, por qualquer razão especiosa, adiava-se o casamento até ao S. Miguel seguinte. E aliviado, tranquilo, o respeitável Dr. continuava a acompanhar as Silveiras a chás, festas de igreja ou pêsames, vestido de preto, afável, serviçal, sorrindo a D. Eugénia, não desejando mais prazeres que os dessa convivência paternal.
Apenas Afonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o Dr. juiz de direito e a senhora não podiam vir, por que o magistrado tivera a dor; e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer dezassete anos que morrera o mano Manuel...
- Bem, disse Afonso, bem. A dor, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos nós um voltaretesinho de quatro. Que diz o nosso Dr. delegado?
O excelente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que «estava ás ordens.»
- Então ao dever, ao dever! exclamou logo o abade, esfregando as mãos, no ardor já da partida.
Os parceiros dirigiram-se à saleta do jogo - que um reposteiro de damasco separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos círculos de luz que caíam dos abat-jour os baralhos abertos em leque. daí a um momento o Dr. delegado voltou, risonho, dizendo que «os deixara para um roquesinho de três»; e retomou o seu lugar ao lado de D. Eugénia, cruzando os pés debaixo da cadeira e as mãos em cima do ventre. As senhoras estavam falando da dor do Dr. juiz de direito. Costumava dar-lhe todos os três meses: e era condenável a sua teima em não querer consultar médicos. Quanto mais que ele andava acabado, ressequindo, amarelando - e a D. Augusta, a mulher, a nutrir à larga, a ganhar cores!... A Viscondessa, enterrada em toda a sua gordura ao canto do canapé, com o leque aberto sobre o peito, contou que em Espanha vira um caso igual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa; e ao principio fora o contrario; até sobre isso se tinham feito uns versos...
- Humores, disse com melancolia o Dr. delegado.
Depois falou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco, coitadinho, na flor de idade! E que perfeição de rapaz! E que rapaz de juizo! D. Ana Silveira não se esquecera, como todos os anos, de lhe acender uma lamparina por alma, e de lhe rezar três padre-nossos. A viscondessa pareceu toda aflita por se não ter lembrado... E ela que tinha o propósito feito!
- Pois estive para to mandar dizer! exclamou D. Ana. E as Brancos que tanto o agradecem, filha!
- Ainda está a tempo, observou o magistrado.
D. Eugénia deu uma malha indolente no crochet de que nunca se separava, e murmurou com um suspiro:
- Cada um tem os seus mortos.
E no silêncio que se fez, saiu do canto do canapé outro suspiro, o da viscondessa, que de certo se recordara do fidalgo de Urigo de la Sierra, e murmurava:
- Cada um tem os seus mortos...
E o digno Dr. delegado terminou por dizer igualmente, depois de passar reflectidamente a mão pela calva:
- Cada um tem os seus mortos!
Uma sonolência ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles, as chamas das velas erguiam-se altas e tristes. Euzebiosinho voltava com cautela e arte as estampas dos Costumes de todos os Povos. E na saleta de jogo, através do reposteiro aberto, sentia-se a voz já arrenegada do abade, rosnando com um rancor tranquilo, «passo, que é o que tenho feito toda a santa noite!»
Nesse momento Carlos arremetia pela sala dentro arrastando a sua noiva, a Teresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas vozes reanimou o canapé dormente.
Os noivos tinham chegado duma pitoresca e perigosa viagem, e Carlos parecia descontente de sua mulher; comportara-se duma maneira atroz; quando ele ia governando a mala-posta, ela quisera empoleirar-se ao pé dele na almofada... Ora senhoras não viajam na almofada.
- E ele atirou-me ao chão, titi!
- Não é verdade! De mais a mais é mentirosa! Foi como quando chegámos à estalagem... Ela quis-se deitar, e eu não quis... A gente, quando se apeia de viagem, a primeira coisa que faz é tratar do gado... E os cavalos vinham a escorrer...
A voz de D. Ana interrompeu, muito severa:
- Está bom, está bom, basta de tolices! Já cavalaram bastante. Senta-te aí ao pé da Sr.ª Viscondessa, Tereza... Olhe essa travessa do cabelo... Que despropósito!
Sempre detestara ver a sobrinha, uma menina delicada de dez anos, brincar assim com o Carlinhos. Aquele belo e impetuoso rapaz, sem doutrina e sem propósito, aterrava-a; e pela sua imaginação de solteirona passavam sem cessar ideias, suspeitas de ultrages que ele poderia fazer à menina. Em casa, ao agasalha-la antes de vir para Sta. Olavia, recomendava-lhe com força que não fosse com o Carlos para os recantos escuros! que o não deixasse mexer-lhe nos vestidos!... A menina, que tinha os olhos muito langorosos, dizia: «Sim, titi.» Mas, apenas na quinta, gostava de abraçar o seu maridinho. Se eram casados, por que não haviam de fazer nené, ou ter uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas o violento rapaz só queria guerras, quatro cadeiras lançadas a galope, viagens a terras de nomes bárbaros que o Brown lhe ensinava. Ela, despeitada, vendo o seu coração mal compreendido, chamava-lhe arrieiro; ele ameaçava boxa-la, à inglesa; - e separavam-se sempre arrenegados.
Mas quando ela se acomodou ao lado da Viscondessa, gravesinha e com as mãos no regaço - Carlos veio logo estirar-se ao pé dela, meio deitado para as costas do canapé, bamboleando as pernas.
- Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito seca D. Ana.
- Estou cansado, governei quatro cavalos, replicou ele, insolente e sem a olhar.
De repente porém, dum salto, precipitou-se sobre o Euzebiosinho. Queria-o levar à África, a combater os selvagens: e puxava-o já pelo seu belo plaid de cavaleiro de Escócia, quando a mamã acudiu aterrada.
- Não, com o Euzebiosinho não, filho! Não tem saúde para essas cavaladas... Carlinhos, olhe que eu chamo o avô!
Mas o Euzebiosinho, a um repelão mais forte, rolara no chão, soltando gritos medonhos. Foi um alvoroço, um levantamento. A mãe, tremula, agachada junto dele, punha-o de pé sobre as perninhas moles, limpando-lhe as grossas lágrimas, já com o lenço, já com beijos, quasi a chorar também. O delegado, consternado, apanhara o bonet escocês, e cofiava melancolicamente a bela pena de galo. E a Viscondessa apertava ás mãos ambas o enorme seio, como se as palpitações a sufocassem.
O Euzebiosinho foi então preciosamente colocado ao lado da titi; e a severa senhora, com um fulgor de cólera na face magra, apertando o leque fechado como uma arma, preparava-se a repelir o Carlinhos que, de mãos atrás das costas e aos pulos em roda do canapé, ria, arreganhando para o Euzebiosinho um lábio feroz. Mas nesse momento davam nove horas, e a desempenada figura do Brown apareceu à porta.
Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detrás da Viscondessa, gritando:
- Ainda é muito cedo, Brown, hoje é festa, não me vou deitar!
Então Afonso da Maia, que se não movera aos uivos lacinantes do Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade:
- Carlos, tenha a bondade de marchar já para a cama.
- Oh vovô, é festa, que está cá o Vilaça!
Afonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma palavra, agarrou o rapaz pelo braço, e arrastou-o pelo corredor - em quanto ele, de calcanhares fincados no soalho, resistia, protestando com desespero:
- É festa, vovô... É uma maldade!... O Vilaça pode-se escandalizar... Oh vovô, eu não tenho sono!
Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censuraram logo aquela rigidez: aí estava uma coisa incompreensível; o avô deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe então o bocadinho da soirée...
- Oh Sr. Afonso da Maia, por que não deixou estar a criança?
- É necessário método, é necessário método, balbuciou ele, entrando, todo pálido do seu rigor.
E à mesa do voltarete, apanhando as cartas com as mãos tremulas, repetia ainda:
- É necessário método. Crianças à noite dormem.
D. Ana Silveira voltando-se para o Vilaça - que cedera o seu lugar ao Dr. delegado e vinha palestrar com as senhoras - teve aquele sorriso mudo que lhe franzia os lábios, sempre que Afonso da Maia falava em «método.»
Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque, declarou, a transbordar de ironia, que, talvez por ter a inteligência curta, nunca compreendera a vantagem dos «método»... Era à inglesa, segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ela estava enganada, ou Sta. Olavia era no reino de Portugal...
E como Vilaça inclinava timidamente a cabeça, com a sua pitada nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Afonso dentro não ouvisse, desabafou. O Sr. Vilaça naturalmente não sabia, mas aquela educação do Carlinhos nunca fora aprovada pelos amigos da casa. Já a presença do Brown, um herético, um protestante, como perceptor na família dos Maias, causara desgosto em Resende. Sobretudo quando o Sr. Afonso tinha aquele santo do abade Custódio, tão estimado, homem de tanto saber... Não ensinaria à criança habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação de fidalgo, prepara-lo para fazer boa figura em Coimbra.
Nesse momento, o abade, suspeitando uma corrente de ar, erguera-se da mesa de jogo a fechar o reposteiro: então, como Afonso já não podia ouvir, D. Ana ergueu a voz:
- E olhe que o Custódio teve desgosto, Sr. Vilaça. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar o que sucedeu com a Macedo.
Vilaça já sabia.
- Ah já sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contricção...
A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao céu através do tecto.
- Horroroso! continuou D. Ana. A pobre mulher chegou lá a nossa casa embuchada... E eu fez-me impressão. Até sonhei com aquilo três noites a fio...
Calou-se um momento. Vilaça, embaraçado, acanhado, fazia girar a caixa de rapé nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor de sonolência passou na sala; D. Eugénia, com as pálpebras pesadas, fazia de vez em quando uma malha mole no crochet; e a noiva de Carlos, estirada para o canto do sofá, já dormia, com a boquinha aberta, os seus lindos cabelos negros caindo-lhe pelo pescoço.
D. Ana, depois de bocejar de leve, retomou a sua ideia:
- Sem contar que o pequeno está muito atrasado. A não ser um bocado de inglês, não sabe nada... Nem tem prenda nenhuma!
- Mas é muito esperto, minha rica senhora! acudiu Vilaça.
- É possível, respondeu secamente a inteligente Silveira.
E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado dela, quieto como se fosse de gesso:
- Oh filho, dize tu aqui ao Sr. Vilaça aqueles lindos versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Euzébio, filho, sê bonito...
Mas o menino, molengão e tristonho, não se descolava das saias da titi: teve ela de o pôr de pé, ampara-lo, para que o tenro prodígio não aluísse sobre as perninhas flácidas; e a mamã prometeu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...
Isto decidiu-o: abriu a boca, e como duma torneira lassa veio de lá escorrendo, num fio de voz, um recitativo lento e babujado:
É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu...
Disse-a toda - sem se mexer, com as mãozinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopeia, ia cerrando as pálpebras.
- Muito bem, muito bem! exclamou o Vilaça, impressionado, quando o Euzebiosinho findou coberto de suor. Que memória! Que memória! É um prodígio!...
Os criados entravam com o chá. Os parceiros tinham findado a partida; e o bom Custódio, de pé, com a sua chávena na mão, queixava-se amargamente da maneira porque aqueles senhores o tinham esfolado.
Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras retiraram-se ás nove e meia. O serviçal Dr. delegado dava o braço a D. Eugénia; um criado da quinta alumiava adiante com o lampião; e o moço das Silveiras levava ao colo o Euzebiosinho que parecia um fardo escuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabeça.
Depois da ceia Vilaça acompanhou ainda um momento Afonso da Maia à livraria, onde, antes de recolher, ele tomava sempre à inglesa o seu cognac e soda.
O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo, estava adormecido tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas, um resto de lume na chaminé, e o globo do candeeiro pondo a sua claridade serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os repuchos cantavam alto no silêncio da noite.
Enquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona de Afonso, numa mesa baixa, os cristais e as garrafas de soda, Vilaça, com as mãos nos bolsos, de pé e pensativo, olhava a brasa da acha que morria na cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar, como ao acaso:
- Aquele rapazito é esperto...
- Quem? O Euzebiosinho? disse Afonso, que se acomodava junto ao fogão, enchendo alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver cá, Vilaça! O Carlos não gosta dele, e tivemos aí um desgosto horroroso... Foi já há meses. Havia uma procissão e o Euzebiosinho ia de anjo... As Silveiras, excelentes mulheres, coitadas, mandaram-no cá para o mostrar à viscondessa, já vestido de anjo. Pois senhores, distraímo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se dele, leva-o para o sótão, e, meu caro Vilaça... Em primeiro lugar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o pior não foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos aparece o Euzebiosinho aos berros pela titi, todo desfrizado, sem uma asa, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um barbante, a coroa de rosas enterrada até ao pescoço, e os galões de ouro, os tules, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!... Enfim, um anjo depenado e sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.
Bebeu metade da sua soda, e passando a mão pelas barbas, acrescentou, com uma satisfação profunda:
- É levado do diabo, Vilaça!
O administrador, sentado agora à borda de uma cadeira, esboçou uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Afonso, com as mãos nos joelhos, como esquecido e vago. Ia abrir os lábios, hesitou ainda, tossiu de leve; e continuou a seguir pensativamente as faíscas que erravam sobre as achas.
Afonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara a falar do Silveirinha. Tinha três ou quatro meses mais que Carlos, mas estava enfezado, estiolado, por uma educação à portuguesa: daquela idade ainda dormia no choco com as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava couraçado de rolos de flanelas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do Catecismo de Perseverança. Ele por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá, «que o sol é que anda em volta da terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá as ordens ao sol, para onde há-de ir e onde há-de parar etc., etc.» E assim lhe estavam arranjando uma almasinha de bacharel...
Vilaça teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente decidido, ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras:
- V. Ex.ª sabe que apareceu a Monforte?
Afonso, sem mover a cabeça, reclinado para as costas da poltrona, perguntou tranquilamente, envolvido no fumo do cachimbo:
- Em Lisboa?
- Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que escreve, e que era muito de Arroios... Esteve até em casa dela.
E ficaram calados. Havia anos que entre eles se não pronunciara o nome de Maria Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia, a preocupação ardente de Afonso da Maia fora tirar-lhe a filha que ela levara. Mas a esse tempo ninguém sabia onde Maria se refugiara com o seu príncipe: nem pela influência das legações, nem pagando regiamente a polícia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se pôde descobrir a «toca da fera» como dizia então o Vilaça. Ambos decerto tinham mudado de nome; e, dadas essas naturezas boémias, quem sabe se não errariam agora pela América, pela índia, em regiões mais exóticas? Depois, pouco a pouco, Afonso da Maia descorçoado com aqueles esforços vãos, todo ocupado do neto que crescia belo e forte ao seu lado, no enternecimento continuo que ele lhe dava foi esquecendo a Monforte e a sua outra neta, tão distante, tão vaga, a quem ignorava as feições, de quem mal sabia o nome. E agora de repente a Monforte aparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! e aquela criança que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mãe...
Erguera-se, passeava na livraria, pesado e lento, com a cabeça baixa. Junto à mesa, ao pé do candeeiro, o Vilaça ia percorrendo um a um os papéis da sua carteira.
- E está em Paris com o italiano? perguntou Afonso do fundo sombrio do aposento.
O Vilaça ergueu a cabeça de sobre a carteira, e disse:
- Não senhor, está com quem lhe paga.
E como Afonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, Vilaça, dando-lhe um papel dobrado, acrescentou:
- Todas estas coisas são muito graves, Sr. Afonso da Maia, e eu não quis fiar-me só na minha memória. Por isso pedi ao Alencar, que é um excelente rapaz, que me escrevesse numa carta tudo o que me contou. Assim temos um documento. Eu não sei mais do que aí está escrito. Pode V. Ex.ª ler...
Afonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma história simples, que o Alencar, o poeta das Vozes da Aurora, o estilista de Elvira, ornara de flores e de galões dourados como uma capela em dia de festa.
Uma noite, ao sair da Maison d'Or, ele vira a Monforte saltar dum coupé com dois homens de gravata branca; tinham-se logo reconhecido: e um momento ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo do candeeiro do gás, no trotoir. Foi ela que, muito decidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar, pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a adresse, o nome por que devia perguntar: Mme. de l'Estorade. E no seu boudoir, na manhã seguinte a Monforte falou largamente de si: vivera três anos em Viena de Áustria com Tancredo, e com o papá que se lhes fora reunir - e que lá continuava de certo, como em Arroios, refugiando-se pelos cantos das salas, pagando as toiletes da filha, e dando palmadinhas ternas no ombro do amante como outrora no ombro do marido. Depois tinham estado em Mónaco; e aí, dizia o Alencar, «num drama sombrio de paixão que ela me fez entrever» o napolitano fora morto em duelo. O papá morrera também nesse ano, deixando apenas da sua fortuna uns magros contos de réis, e a mobília da casa em Viena: o velho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de Tancredo ao bacarat. Passara então um tempo em Londres: e daí viera habitar Paris, com Mr. de l'Estorade, um jogador, um espadachim, que acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse nome de l'Estorade, que lhe era a ele de ora em diante inútil porque passava a adoptar outro mais sonoro de Vicomte de Mandervile. Enfim, pobre, formosa, doida, excessiva, lançara-se na existência daquelas mulheres de quem, dizia o Alencar, «a pálida Margarida Gautier, a gentil Dama das Camélias é o tipo sublime, o símbolo poético, a quem muito será perdoado porque muito amaram.» E o poeta terminava: «ela está ainda no esplendor da beleza, mas as rugas virão, e então que avistará em redor de si? As rosas secas e ensanguentadas da sua coroa de esposa. Saí daquele boudoir perfumado, com a alma dilacerada, meu Vilaça! Pensava no meu pobre Pedro, que lá jaz sob o raio de luar, entre as raizes dos ciprestes. E, desiludido desta cruel vida, vim pedir ao absinto, no boulevard, uma hora de esquecimento.»
Afonso da Maia deu um repelão à carta, menos enojado das torpezas da história, que daqueles lirismos relambidos.
E recomeçou a passear, enquanto o Vilaça recolhia religiosamente o documento que tinha relido muitas vezes, na admiração do sentimento, do estilo, do ideal daquela pagina.
- E a pequena? perguntou Afonso.
- Isso não sei. O Alencar não lhe falaria na filha, nem ele mesmo sabe que ela a levou. Ninguém o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou desapercebido no grande escândalo. Mas enquanto a mim, a pequena morreu. Senão, siga V. Ex.ª o meu raciocínio... Se a menina fosse viva, a mãe podia reclamar a legitima que cabe à criança... Ela sabe a casa que V. Ex.ª tem; há de haver dias, e são frequentes na vida dessas mulheres, em que lhe falte uma libra... Com o pretexto da educação da menina, ou de alimentos, já nos tinha importunado... Escrúpulos não tem ela. Se o não faz é que a filha morreu. Não lhe parece a V. Ex.ª?
- Talvez, disse Afonso.
E acrescentou, parando diante de Vilaça - que olhava outra vez a brasa morta tirando estalinhos dos dedos:
- Talvez... Suponhamos que morreram ambas, e não se fale mais nisso.
Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que Vilaça passou em Sta. Olavia não se proferiu mais o nome de Maria Monforte.
Mas, na véspera da partida do administrador para Lisboa, Afonso subiu ao quarto dele, a entregar-lhe as amêndoas da Páscoa que Carlos mandava a Vilaça Junior, um alfinete de peito com uma magnífica safira - e disse-lhe em quanto o outro, sensibilizado, balbuciava os agradecimentos:
- Agora outra coisa, Vilaça. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu primo Noronha, ao André que vive em Paris como você sabe, pedir-lhe que procure essa criatura, e que lhe ofereça dez ou quinze contos de réis, se ela me quiser entregar a filha... No caso, está claro, que esteja viva... E quero que você saiba desse Alencar a morada da mulher em Paris.
O Vilaça não respondeu, ocupado a meter entre as camisas, bem no fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou diante de Afonso, a coçar reflectidamente o queixo.
- Então que lhe parece, Vilaça?
- Parece-me arriscado.
E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus treze anos. Estava uma mulher, com o seu temperamento formado, o carácter feito, talvez os seus hábitos... Nem falaria o português. As saudades da mãe haviam de ser terríveis... Enfim, o Sr. Afonso da Maia trazia uma estranha para casa...
- Você tem razão, Vilaça. Mas a mulher é uma prostituta, e a pequena é do meu sangue.
Nesse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vovô, precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma romã. - O Brown tinha achado uma corujazinha pequena! Queria que o vovô viesse ver, andara a busca-lo por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito pequena, muito feia, toda pelada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia o ninho...
- Vem depressa, ó vovô! Depressa, que é necessário ir pô-la no ninho, por causa da coruja velha que se pode afligir... O Brown está-lhe a dar azeite. Oh Vilaça vem ver! Ó vovô, pelo amor de Deus! Tem uma cara tão engraçada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha pode dar pela falta!...
E impaciente com a lentidão risonha do vovô, tanta indiferença pela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.
- Que bom coração! exclamou o Vilaça comovido. A pensar nas saudades da coruja... A mãe dele é que não tem saudades! Sempre o disse, é uma fera!
Afonso encolheu tristemente os ombros. Iam já no corredor quando ele, parando um momento, baixando a voz:
- Tem-me esquecido de lhe contar, Vilaça, o Carlos sabe que o pai que se matou...
Vilaça arredondou os olhos de espanto. Era verdade. Uma manhã entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe: - ó vovô, o papá matou-se com uma pistola! - Naturalmente algum criado que lho contara...
- E vossa excelência?
- Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me pediu, nessas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou. Quis ser enterrado em Sta. Olavia, aí está. Não queria que o filho jamais soubesse da fuga da mãe; e por mim, de certo, nunca o saberá. Quis que dois retratos que havia dela em Arroios fossem destruidos; como você sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas não me pediu que ocultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que num momento de loucura, o papá tinha dado um tiro em si...
- E ele?
- E ele, replicou Afonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-me toda uma manhã para lhe dar também uma pistola... E aí está o resultado dessa revelação: é que tive de mandar vir do Porto uma pistola de vento...
Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avô, os dois apressaram-se a ir admirar a corujazinha.
Vilaça ao outro dia partiu para Lisboa.
Passadas duas semanas, Afonso recebia uma carta do administrador, trazendo-lhe, com a adresse da Monforte, uma revelação imprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes da sua visita a Mme. de l'Estorade, contara-lhe que no boudoir dela havia um adorável retrato de criança, de olhos negros, cabelo de azeviche, e uma palidez de nácar. Esta pintura ferira-o, não só por ser dum grande pintor inglês, mas por ter, pendente sob o caixilho como um voto funerário, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. Não havia outro quadro no boudoir: e ele perguntara à Monforte se era um retrato ou uma fantasia. Ela respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. «Estão assim dissipadas todas as dúvidas, acrescentava o Vilaça. O pobre anjinho está numa pátria melhor. E para ela, bem melhor!»
Afonso, todavia, escreveu a André de Noronha. A resposta tardou. Quando o primo André procurara Mme.de l'Estorade, havia semanas que ela partira para Alemanha, depois de vender mobília e cavalos. E no Club Imperial, a que ele pertencia, um amigo que conhecia bem Mme. de l'Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catani, acrobata do Circo de Inverno nos campos Elíseos, homem de formas magníficas, um Apolo de feira, que todas as cocotes se disputavam e que a Monforte empolgara. Naturalmente corria agora a Alemanha com a companhia de cavalinhos.
Afonso da Maia, enojado, remeteu esta carta ao Vilaça sem um comentário. E o honrado homem respondeu: «Tem V. Ex.ª razão, é atroz: e mais vale supor que todos morreram, e não gastar mais cera com tão ruins defuntos...» E depois num post-scriptum acrescentava: «Parece certo abrir-se em breve o caminho de ferro até ao Porto: em tal caso, com permissão de V. Ex.ª, aí irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias de hospitalidade.»
Esta carta foi recebida em Sta. Olavia um domingo, ao jantar. Afonso lera alto o P.S. Todos se alegraram-na esperança de ver o bom Vilaça em breve
na quinta; e falou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima.
Mas, terça feira à noite, chegava um telegrama de Manuel Vilaça anunciando que o pai morrera, nessa manhã, duma apoplexia: dois dias depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoço que, de repente, Vilaça se sentira muito sufocado e com tonturas: ainda tivera forças de ir ao quarto respirar um pouco de éter: mas ao voltar à sala cambaleava, queixava-se de ver tudo amarelo, e caiu de bruços, como um fardo, sobre o canapé. O seu pensamento, que se extinguia para sempre, ainda nesse momento se ocupou da casa que há trinta anos administrava: balbuciou, a respeito duma venda de cortiça, recomendações que o filho já não pôde perceber: depois deu um grande ai; e só tornou a abrir os olhos, para murmurar no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: Saudades ao patrão!
Afonso da Maia ficou profundamente afectado, e em Sta. Olavia, mesmo entre os criados, a morte de Vilaça foi como um luto doméstico. Uma dessas tardes, o velho, muito melancólico, estava na livraria com um jornal esquecido nas mãos, os olhos cerrados - quando Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas num papel, veio passar-lhe um braço pelo pescoço, e como compreendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o Vilaça não voltaria a vê-los à quinta.
- Não filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a ver.
O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho, olhava o tapete, e, como recordando-se, murmurou tristemente:
- O Vilaça, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vovô, para onde o levaram?
- Para o cemitério, filho, para debaixo da terra.
Então Carlos desprendeu-se devagar do abraço do avô, e muito sério, com os olhos nele:
- Ó vovô! porque não lhe mandas fazer uma capelinha bonita, toda de pedra, com uma figura, como tem o papá?
O velho achegou-o ao peito, beijou-o, comovido:
- Tens razão, filho. Tens mais coração que eu!
Assim o bom Vilaça teve no cemitério dos Prazeres o seu jazigo - que fora a alta ambição da sua existência modesta.
Outros anos tranquilos passaram sobre Santa Olavia.
Depois uma manhã de julho, em Coimbra, Manuel Vilaça (agora administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Afonso se hospedara com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho, suando, berrando:
- Neminè! Neminè!
Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha acompanhado os senhores de Santa Olavia correu à porta, abraçou-se quasi chorando no menino, agora mais alto que ele, e muito formoso na sua batina nova.
Em cima no quarto, Manuel Vilaça, soprando ainda, limpando as bagas de suor, exclamava:
- Ficou tudo espantado, Sr. Afonso da Maia! Os lentes até estavam comovidos. Ih Jesus! que talento! Vem a ser um grande homem, é o que todo o mundo disse... E que faculdade vai ele seguir, meu senhor?
Afonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso:
- Não sei, Vilaça... Talvez nos formemos ambos em Direito.
Carlos assomou à porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro escudeiro - que trazia champagne numa salva.
- Então venha cá, seu maroto, disse Afonso muito branco, com os braços abertos. Bom exame, hein?... Eu...
Mas não pôde prosseguir: as lágrimas, duas a duas, corriam-lhe pela barba branca.
Capítulo IV
Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o Dr. Trigueiros houvera sempre naquele menino realmente uma «vocação para Esculápio».
A «vocação» revelara-se bruscamente um dia que ele descobriu no sótão, entre rimas de velhos alfarrábios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas; tinha passado dias a recorta-las, pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil «com o recheio à mostra». Uma noite mesmo rompera pela sala em triunfo, a mostrar ás Silveiras, ao Euzébio, a pavorosa litografia de um feto de seis meses no útero materno. D. Ana recuou, com um grito, colando o leque à face: e o Dr. delegado, escarlate também, arrebatou prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o que escandalizou mais as senhoras foi a indulgência de Afonso.
- Então que tem, então que tem? dizia ele sorrindo.
- Que tem, Sr. Afonso da Maia!? exclamou D. Ana. São indecências!
- Não há nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente é a ignorância... Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de saber como é esta pobre máquina por dentro, não há nada mais louvável...
D. Ana abanava-se, sufocada. Consentir tais horrores nas mãos da criança!... Carlos começou a aparecer-lhe como um libertino «que já sabia coisas»; e não consentiu mais que a Terezinha brincasse só com ele pelos corredores de Santa Olavia.
As pessoas sérias porém, o Dr. juiz de direito, o próprio abade, lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concordavam que aquilo mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina.
- Se pega, dizia então com um gesto profético o Dr. Trigueiros, temos dali coisa grande!
E parecia pegar.
Em Coimbra, estudante do Liceu, Carlos deixava os seus compêndios de lógica e retórica para se ocupar de anatomia: numas ferias, ao abrir das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras dum casaco o riso duma caveira: e se algum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar a beira do catre, fazendo diagnósticos que o bom Dr. Trigueiros escutava respeitoso e pensativo. Diante do avô já chamava mesmo ao menino «o seu talentoso colega».
Esta inesperada carreira de Carlos (pensara-se sempre que ele tomaria capelo em Direito) era pouco aprovada entre os fiéis amigos de Santa
Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo tão formoso, tão bom cavaleiro, viesse a estragar a vida receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das sangrias. O Dr. juiz de direito confessou mesmo um dia a sua descrença de que o Sr. Carlos da Maia quisesse «ser médico a sério».
- Ora essa! exclamou Afonso. E porque não há de ser médico a sério? Se escolhe uma profissão é para a exercer com sinceridade e com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio, muito menos para amador; educo-o para ser útil ao seu país...
- Todavia, arriscou o Dr. juiz de direito com um sorriso fino, não lhe parece a V. Exc.ª que há outras coisas, importantes também, e mais próprias talvez, em que seu neto se poderia tornar útil?...
- Não vejo, replicou Afonso da Maia. Num país em que a ocupação geral é estar doente, o maior serviço patriótico é incontestavelmente saber curar.
- V. Exc.ª tem resposta para tudo, murmurou respeitosamente o magistrado.
E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida «a sério», pratica e útil, as escadas de doentes galgadas à pressa no fogo de uma vasta clínica, as existências que se salvam com um golpe de bisturi, as noites veladas à beira de um leito, entre o terror de uma família, dando grandes batalhas à morte. Como em pequeno o tinham encantado as formas pitorescas das vísceras - atraiam-no agora estes lados militantes e heróicos da ciência.
Matriculou-se realmente com entusiasmo. Para esses longos anos de quieto estudo o avô preparara-lhe uma linda casa em Celas, isolada, com graças de cotage inglês, ornada de persianas verdes, toda fresca entre as árvores. Um amigo de Carlos (um certo João da Ega) pôs-lhe o nome de «Paços de Celas», por causa de luxos então raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquim, panóplias de armas, e um escudeiro de libré.
Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos democratas; quando se soube porém que o dono destes confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava também o país uma choldra ignóbil - os mais rígidos revolucionários começaram a vir aos Paços de Celas tão familiarmente como ao quarto do Trovão, o poeta boémio, o duro socialista, que tinha apenas por mobília uma enxerga e uma Bíblia.
Ao fim de alguns meses, Carlos, simpático a todos, conciliara Dandis e Filósofos: e trazia muitas vezes no seu break, lado a lado, o Serra Torres, um monstro que já era adido honorário em Berlim e todas as noites punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava a Morte de Satanás, encolhido no seu gabão de Aveiro, com o seu grande barrete de lontra.
Os Paços de Celas, sob a sua aparência preguiçosa e campestre, tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma ginástica científica. Uma velha cozinha fora convertida em sala de armas - porque naquele grupo a esgrima passava como uma necessidade social. Á noite, na sala de jantar, moços sérios faziam um whist sério: e no salão, sob o lustre de cristal, com o Figaro, o Times e as Revistas de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando Chopin ou Mozart, os literatos estirados pelas poltronas - havia ruidosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flamejava no fumo do tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões metafísicas, as próprias certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais requintado com a presença do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo croquetes.
Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seus expositores de medicina. A Literatura e a Arte, sob todas as formas, absorveram-no deliciosamente. Publicou sonetos no Instituto - e um artigo sobre o Partenon: tentou, num atelier improvisado, a pintura a óleo: e compôs contos arqueológicos, sob a influência da Salambô. Além disso todas as tardes passeava os seus dois cavalos. No segundo ano levaria um R se não fosse tão conhecido e rico. Tremeu, pensando no desgosto do avô: moderou a dissipação intelectual, acantoou-se mais na ciência que escolhera: imediatamente lhe deram um acessit. Mas tinha nas veias o veneno do diletantismo: e estava destinado, como dizia João da Ega, a ser um desses médicos literários que inventam doenças de que a humanidade papalva se presta logo a morrer!
O avô, ás vezes, vinha passar uma, duas semanas a Celas. Nos primeiros tempos a sua presença, agradável aos cavalheiros da partilha de whist, desorganizou o cavaco literário. Os rapazes mal ousavam estender o braço para o copo da cerveja; e os vossa excelência isto, vossa excelência aquilo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porém, vendo-o aparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se na poltrona com ares simpático de patriarca boémio, discutir arte e literatura, contar anedotas do seu tempo de Inglaterra e de Itália, começaram a considera-lo como um camarada de barbas brancas. Diante dele já se falava de mulheres e de estroinices. Aquele velho fidalgo, tão rico, que lera Michelet e o admirava - chegou mesmo a entusiasmar os democratas. E Afonso gozava ali também horas felizes, vendo o seu Carlos centro daqueles moços de estudo, de ideal e de veia.
Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ás vezes em Paris ou Londres; mas por Natais e Páscoas vinha sempre a Santa Olavia, que o avô mais só se entretinha a embelezar com amor. As salas tinham agora soberbos panos de Arraz, paisagens de Rousseau e Daubigny, alguns móveis de luxo e de arte. Das janelas a quinta oferecia aspectos nobres de parque inglês: através dos macios tabuleiros de relva, davam curvas airosas as ruas areadas: havia mármores entre as verduras; e gordos carneiros de luxo dormiam sob os castanheiros. Mas a existência neste meio rico não era agora tão alegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida, caía em sonos congestivos logo depois do jantar; o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurizes, ambos no entrudo: e já se não via também à mesa a bondosa face do abade, que lá jazia sob uma cruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o ano. O Dr. juiz de direito com a sua concertina passara para a Relação do Porto; D. Ana Silveira, muito doente, nunca saía; a Terezinha fizera-se uma rapariguinha feia, amarela como uma cidra; o Euzebiosinho, molengão e tristonho, já sem vestígios sequer do seu primeiro amor aos alfarrábios e ás letras, ia casar na Régua. Só o Dr. delegado, esquecido naquela comarca, estava o mesmo, mais calvo talvez, sempre afável, amando sempre a pachorrenta Eugénia. E quasi todas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua égua branca ao portão para vir cavaquear com o colega.
As ferias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seu íntimo, o grande João da Ega, a quem Afonso da Maia se afeiçoara muito, por ele e pela sua originalidade, e por ser sobrinho de André da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitas vezes outrora, hospede também em Santa Olavia.
Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente - ora reprovado, ora perdendo o ano. Sua mãe, rica, viúva e beata, retirada numa quinta ao pé de Celorico de Basto com uma filha, beata, viúva e rica também, tinha apenas uma noção vaga do que o Joãozinho fizera, todo esse tempo, em Coimbra. O capelão afirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o papá e como o titi: e esta promessa bastava à boa senhora, que se ocupava sobretudo da sua doença de entranhas e dos confortos desse padre Serafim. Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da quinta, que ele escandalizava com a sua irreligião e as suas facécias heréticas.
João da Ega, com efeito, era considerado não só em Celorico, mas também na Academia que ele espantava pela audácia e pelos ditos, como o maior ateu, o maior demagogo, que jamais aparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por sistema exagerou o seu ódio à Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes-médias, o amor livre das ficções do matrimónio, a repartição das terras, o culto de Satanás. O esforço da inteligência neste sentido terminou por lhe influênciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pêlos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito - tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satânico. Desde a sua entrada na Universidade renovara as tradições da antiga Boémia: trazia os rasgões da batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão; à noite, na Ponte, com o braço erguido, atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas de quinze anos, filhas de empregados, com quem ás vezes ia passar a soirée, levando-lhes cartuchinhos de doce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o apetecido nas famílias.
Carlos escarnecia estes idílios futricas; mas também ele terminou por se enredar num episódio romântico com a mulher dum empregado do governo civil, uma lisboetasinha, que o seduziu pela graça dum corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ela o que a fantasiara fora o luxo, o groom, a égua inglesa de Carlos. Trocaram-se cartas; e ele viveu semanas banhado na poesia áspera e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente a rapariga tinha o nome bárbara de Hermengarda; e os amigos de Carlos, descoberto o segredo, chamavam-lhe já Eurico o presbítero, dirigiam para Celas missivas pelo correio com este nome odioso.
Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do governo civil passou junto dele com o filhinho pela mão. Pela primeira vez via tão de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adorável, muito gordo, parecendo mais roliço por aquele dia de janeiro sob os agasalhos de lã azul, tremelicando nas pobres perninhas roxas de frio, e rindo na clara luz - rindo todo ele, pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pai amparava-o; e o encanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos. Era no momento em que ele lia Michelet - e enchia-lhe a alma a veneração literária da santidade domestica. Sentiu-se canalha em andar ali de cima do seu dog-cart, a preparar friamente a vergonha, e as lágrimas daquele pobre pai tão inofensivo no seu paletó coçado! Nunca mais respondeu ás cartas em que Hermengarda lhe chamava seu ideal. Decerto a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do governo civil, daí por diante, dardejava sobre ele olhares sangrentos.
Mas a grande «topada sentimental de Carlos», como disse o Ega, foi quando ele, ao fim dumas ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga espanhola, e a instalou numa casa ao pé de Celas. Chamava-se Encarnacion. Carlos alugou-lhe ao mês uma vitória com um cavalo branco e Encarnacion fanatisou Coimbra como a aparição duma Dama das Camélias, uma flor de luxo das civilizações superiores. Pela Calçada, pela estrada da Beira, os rapazes paravam, pálidos de emoção, quando ela passava, reclinada na vitória, mostrando o sapato de cetim, um pouco da meia de seda, lânguida e desdenhosa, com um cãosinho branco no regaço.
Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnacion foi chamada Lírio de Israel, Pomba da Arca, e Nuvem da Manhã. Um estudante de teologia, rude e sebento transmontano, quis casar com ela. Apesar das instâncias de Carlos, Encarnacion recusou; e o teólogo começou a rondar Celas, com um navalhão, para «beber o sangue» ao Maia. Carlos teve de lhe dar bengaladas.
Mas a criatura, desvanecida, tornou-se intolerável, falando sem cessar doutras paixões que inspirara em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe dera o conde de tal, o marquês sicrano, da grande posição da sua família ainda aparentada com os Medina-Coeli: os seus sapatos de cetim verde eram tão antipáticos como a sua voz estrídula: e quando tentava elevar-se ás conversações que ouvia, rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero - sendo muito conservadora como todas as prostitutas. João da Ega odiava-a. E Craveiro declarou que não voltava aos Paços de Celas enquanto por lá aparecesse aquele montão de carne, pago ao arrátel, como a de vaca.
Enfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de quarto de Carlos surpreendeu-a com um Juca que fazia de dama no Teatro Académico. Aí estava, enfim, um pretexto! E, convenientemente paga, a parenta dos Medina-Coeli, o Lírio de Israel, a admiradora dos Bourbons, foi recambiada a Lisboa e à rua de S. Roque, seu elemento natural.
Em agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em Celas. Afonso viera de Santa Olavia, Vilaça de Lisboa; toda a tarde no quintal, de entre as acácias e as bela-sombras, subiram ao ar molhos de foguetes; e João da Ega, que levara o seu ultimo R no seu ultimo ano, não descansou, em mangas de camisa, pendurando lanternas venezianas pelos ramos, no trapésio e em roda do poço, para a iluminação da noite. Ao jantar, a que assistiam lentes, Vilaça, enfiado e tremulo, fez um speech; ia citar o nosso imortal Castilho quando sob as janelas rompeu, a grande ruído de tambor e pratos, o Hino Académico. Era uma serenata. - Ega, vermelho, de batina desabotoada, a luneta para traz das costas, correu à sacada, a perorar:
- Aí temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, começando a sua gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma - ou acabar de a matar, segundo as circunstâncias! A que parte remota destes reinos não chegou já a fama do seu génio, do seu dog-cart, do sebáceo acessit que lhe enodoa o passado, e deste vinho do Porto, contemporâneo dos heróis de 20, que eu, homem de revolução e homem de carraspana, eu, João da Ega, Johanes ab Ega...
O grupo escuro em baixo desatou aos vivas. A filarmónica, outros estudantes, invadiram os Paços. Até tarde, sob as árvores do quintal, na sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correram com salvas de doce, não cessou de estalar o champagne. E Vilaça, limpando a testa, o pescoço, abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si mesmo também:
- Grande coisa, ter um curso!
E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um ano passou. chegara esse outono de 1875: e o avô instalado enfim no Ramalhete esperava por ele ansiosamente. A ultima carta de Carlos viera de Inglaterra, onde andava, dizia ele, a estudar a admirável organização dos hospitais de crianças. Assim era: mas passeava também por Brighton, apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idílio errante pelos lagos da Escócia, com uma senhora holandesa, separada de seu marido, venerável magistrado da Haia, uma Mme. Rughel, soberba criatura de cabelos de ouro fulvo, grande e branca como uma ninfa de Rubens.
Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas sucessivas de livros, outras de instrumentos e aparelhos, toda uma biblioteca e todo um laboratório - que trazia o Vilaça, manhãs inteiras, aturdido pelos armazéns da alfândega.
- O meu rapaz vem com grandes ideias de trabalho, dizia Afonso aos amigos.
Havia catorze meses que ele o não via, o «seu rapaz», a não ser numa fotografia mandada de Milão, em que todos o acharam magro e triste. E o coração batia-lhe forte, na linda manhã de outono, quando do terraço do Ramalhete, de binóculo na mão, viu assomar vagarosamente, por traz do alto prédio fronteiro, um grande paquete do Royal Mail que lhe trazia o seu neto.
Á noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o Vilaça - não se fartavam de admirar «o bem que a viagem fizera a Carlos». Que diferença da fotografia! Que forte, que saudável!
Era decerto um formoso e magnífico moço, alto, bem feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis dos cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistiveis olhos do pai, de um negro liquido, ternos como os dele e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada no queixo - o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma fisionomia de belo cavaleiro da Renascença. E o avô, cujo olhar risonho e húmido transbordava de emoção, todo se orgulhava de o ver, de o ouvir, numa larga veia, falando da viagem, dos belos dias de Roma, do seu mau humor na Prússia, da originalidade de Moscovo, das paisagens da Holanda...
- E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silêncio em que Carlos estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu fazer?
- Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. Descansar primeiro e depois passar a ser uma gloria nacional!
Ao outro dia, com efeito, Afonso veio encontra-lo na sala de bilhar - onde tinham sido colocados os caixotes - a despregar, a desempacotar, em mangas de camisa e assobiando com entusiasmo. Pelo chão, pelos sofás, alastrava-se toda uma literatura em rimas de volumes graves; e aqui e além, por entre a palha, através das lonas descosidas, a luz faiscava num cristal, ou reluziam os vernizes, os metais polidos de aparelhos. Afonso pasmava em silêncio para aquele pomposo aparato do saber.
- E onde vais tu acomodar este museu?
Carlos pensara em arranjar um vasto laboratório ali perto no bairro, com fornos para trabalhos químicos, uma sala disposta para estudos anatómicos e fisiológicos, a sua biblioteca, os seus aparelhos, uma concentração metódica de todos os instrumentos de estudo...
Os olhos do avô iluminavam-se ouvindo este plano grandioso.
- E que não te prendam questões de dinheiro, Carlos! Nós fizemos nestes últimos anos de Santa Olavia algumas economias...
- Boas e grandes palavras, avô! Repita-as ao Vilaça.
As semanas foram passando nestes planos de instalação. Carlos trazia realmente resoluções sinceras de trabalho: a ciência como mera ornamentação interior do espírito, mais inútil para os outros que as próprias tapeçarias do seu quarto, parecia-lhe apenas um luxo de solitário: desejava ser útil. Mas as suas ambições flutuavam, intensas e vagas; ora pensava numa larga clínica; ora na composição maciça de um livro iniciador; algumas vezes em experiências fisiológicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou supunha sentir, o tumulto de uma força, sem lhe discernir a linha de aplicação. «Alguma coisa de brilhante,» como ele dizia: e isto para ele, homem de luxo e homem de estudo, significava um conjunto de representação social e de actividade científica; o remexer profundo de ideias entre as influências delicadas da riqueza; os elevados vagares da filosofia entremeados com requintes de sport e de gosto; um Claude Bernard que fosse também um Morny... No fundo era um diletante.
Vilaça fora consultado sobre a localidade própria para o laboratório; e o procurador, muito lisongeado, jurou uma diligência incansável. Primeira coisa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clínica?...
Carlos não decidira fazer exclusivamente clínica: mas desejava de certo dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como pratica. Então Vilaça sugeriu que o consultório estivesse separado do laboratório.
- E a minha razão é esta: a vista de aparelhos, máquinas, coisas, faz esmorecer os doentes...
- Tem você razão, Vilaça! exclamou Afonso. Já meu pai dizia: poupe-se ao boi a vista do malho.
- Separados, separados, meu senhor, afirmou o procurador num tom profundo.
Carlos concordou. E Vilaça bem depressa descobriu, para o laboratório, um antigo armazém, vasto e retirado, ao fundo de um pátio, junto ao largo das Necessidades.
- E o consultório, meu senhor, não é aqui, nem acolá; é no Rossio, ali em pleno Rossio!
Esta ideia do Vilaça não era desinteressada. Grande entusiasta da Fusão, membro do Centro progressista, Vilaça Junior aspirava a ser vereador da câmara, e mesmo em dias de satisfação superior (como quando o seu aniversario natalício vinha anunciado no Ilustrado, ou quando no Centro citava com aplauso a Bélgica) parecia-lhe que tantas aptidões mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultório gratuito, no Rossio, o consultório do Dr. Maia, «do seu Maia» reluziu-lhe logo vagamente como um elemento de influência. E tanto se agitou, que daí a dois dias tinha lá alugado um primeiro andar de esquina.
Carlos mobilou-o com luxo. Numa antecâmara, guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar, à francesa, um criado de libré. A sala de espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Rouen, quadros de muita cor, e ricas poltronas cercando a jardineira coberta de colecções do Charivari, de vistas estereoscópicas, de álbuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente o ar triste de consultório até um piano mostrava o seu teclado branco.
O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em veludo verde-negro, com estantes de pau preto. Alguns amigos que começavam a cercar Carlos, Taveira, seu contemporâneo e agora vizinho do Ramalhete, o Cruges, o marquês de Souzelas, com quem percorrera a Itália - vieram ver estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominável; Taveira absorveu-se nas fotografias de actrizes; e a única aprovação franca veio do marquês, que depois de contemplar o divã do gabinete, verdadeiro móvel de serralho, vasto, voluptuoso, fofo, experimentou-lhe a doçura das molas e disse, piscando o olho a Carlos:
- A calhar.
Não pareciam acreditar nestes preparativos. E todavia eram sinceros. Carlos até fizera anunciar o consultório nos jornais; quando viu porem o seu nome em letras grossas, entre o de uma engomadeira à Boa Hora e um reclamo de casa de hospedes, - encarregou Vilaça de retirar o anuncio.
Ocupava-se então mais do laboratório, que decidira instalar no armazém, ás Necessidades. Todas as manhãs, antes de almoço, ia visitar as obras. Entrava-se por um grande pátio, onde uma bela sombra cobria um poço, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam ao muro. Carlos já decidira transformar aquele espaço em fresco jardinete inglês; e a porta do casarão encantava-o, ogival e nobre, resto de fachada de ermida, fazendo um acesso venerável para o seu sanctuário de ciência. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim; sempre um vago martelar preguiçoso numa poeira alvadia; sempre as mesmas coifas de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um carpinteiro esgrouviado e triste parecia estar ali, desde séculos, aplainando uma tábua eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores que andavam alargando a clarabóia, não cessavam de assobiar, no sol de inverno, alguma lamúria de fado.
Carlos queixava-se ao Sr. Vicente, o mestre de obras, que lhe asseverava invariavelmente «como daí a dois dias havia de s. Ex.ª ver a diferença.» Era um homem de meia idade, risonho, de falar doce, muito barbeado, muito lavado, que morava ao pé do Ramalhete, e tinha no bairro fama de republicano. Carlos, por simpatia, como visinho, apertava-lhe sempre a mão: e o Sr. Vicente, considerando-o por isso um «avançado», um democrata, confiava-lhe as suas esperanças. O que ele desejava primeiro que tudo era um 93, como em França...
- O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada e roliça face do demagogo.
- Não, senhor, um navio, um simples navio...
- Um navio?
- Sim, senhor, um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse pela barra fora o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.
Carlos sorria, ás vezes argumentava com ele.
- Mas está o Sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada, como tão exactamente diz, desaparecesse pela barra fora, ficavam resolvidas todas as coisas e tudo atolado em felicidade?
Não, o Sr. Vicente não era tão «burro» que assim pensasse. Mas, suprimida a cambada, não via s. Ex.ª? Ficava o país desatravancado; e podiam então começar a governar os homens de saber e de progresso...
- Sabe V. Ex.ª qual é o nosso mal? Não é má vontade dessa gente; é muita soma de ignorância. Não sabem. Não sabem nada. Eles não são maus, mas são umas cavalgaduras!
- Bem, então essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando o relógio e despedindo-se dele com um valente shake hands, veja se me andam. Não lho peço como proprietário, é como correligionário.
- Daqui a dois dias há de V. Ex.ª ver a diferença, respondia o mestre de obras, desbarretando-se.
No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoço. Carlos encontrava quasi sempre o avô já na sala de jantar, acabando de percorrer algum jornal junto ao fogão, onde a tépida suavidade daquele fim de outono não permitia acender lume, mas verdejando todo de plantas de estufa.
Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no seu luxo maciço e sóbrio, as baixelas antigas; pelas tapeçarias ovais dos muros apainelados corriam cenas de balada, caçadores medievais soltando o falcão, uma dama entre pajens alimentando os cisnes de um lago, um cavaleiro de viseira calada seguindo ao longo dum rio; e contrastando com o tecto escuro de castanho entalhado a mesa resplandecia com as flores entre os cristais.
O reverendo Bonifácio, que desde que se tornara dignitário da igreja comia com os senhores, lá estava já, majestosamente sentado sobre a alvura nevada da toalha, à sombra de algum grande ramo. Era ali, no aroma das rosas, que o venerável gato gostava de lamber, com o seu vagar estúpido, as sopas deleite servidas num covilhete de Strasburgo, depois agachava-se, traçava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo ele uma bola entufada de pelo branco malhado de ouro, gozava de leve uma sesta macia.
Afonso, - como confessava, sorrindo e humilhado - ía-se tornando com a velhice um gourmet exigente; e acolhia, com uma concentração de crítico, as obras de arte do chef francês que tinham agora, um cavalheiro de mau génio, todo bonapartista, muito parecido com o imperador, e que se chamava Mr. Teodore. Os almoços no Ramalhete eram sempre delicados e longos; depois, ao café, ficavam ainda conversando; e passava da uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma exclamação, precipitando-se sobre o relógio, se lembrava do seu consultório. Bebia um cálice de Chartreuse, acendia à pressa um charuto:
- Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.
E o avô, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquela ocupação, enquanto ele ficava ali a vadiar toda a manhã...
- Quando esse eterno laboratório estiver acabado, talvez vá para lá passar um bocado, ocupar-me de química.
- E ser talvez um grande químico. O avô tem já a feitio.
O velho sorria.
- Esta carcaça já não dá nada, filho. Está pedindo eternidade!
- Quer alguma coisa da Baixa, de Babilónia? perguntava Carlos, abotoando à pressa as suas luvas de governar.
- Bom dia de trabalho.
- Pouco provável...
E no dog-cart, com aquela linda égua, a Tunante ou no faeton com que maravilhava Lisboa, Carlos lá partia em grande estilo para a Baixa, para «o trabalho.»
O seu gabinete, no consultório, dormia numa paz tépida entre os espessos veludos escuros, na penumbra que faziam as estores de seda verde corridas. Na sala, porém, as três janelas abertas bebiam à farta a luz; tudo ali parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braços, amáveis e convidativas; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as Canções de Gounod; mas não aparecia jamais um doente. E Carlos, - exactamente como o criado que, na ociosidade da antecâmara, dormitava sobre o Diário de Noticias, acaçapado na banqueta - acendia um cigarro Laferme, tomava uma Revista, e estendia-se no divã. A prosa porém dos artigos estava como embebida do tédio moroso do gabinete: bem depressa bocejava, deixava cair o volume.
Do Rossio, o ruído das carroças, os gritos errantes de pregões, o rolar dos Americanos, subiam, numa vibração mais clara, por aquele ar fino de novembro: uma luz macia, escorregando docemente do azul ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as copas mesquinhas das árvores de município, a gente vadiando pelos bancos: e essa susurração lenta de cidade preguiçosa, esse ar validado de clima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouco naquele abafado gabinete e resvalando pelos veludos pesados, pelo verniz dos móveis, envolver Carlos numa indolência e numa dormência... Com a cabeça na almofada, fumando, ali ficava, nessa quietação de sesta, num cismar que se ía desprendendo, vago e ténue, como o ténue e leve fumo que se eleva duma braseira meia apagada; até que com um esforço sacudia este torpor, passeava na sala, abria aqui e além pelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos de valsa, espreguiçava-se - e, com os olhos nas flores do tapete, terminava por decidir que aquelas duas horas de consultório eram estúpidas!
- Está aí o carro? ía perguntar ao criado.
Acendia bem depressa outro charuto, calçava as luvas, descia, bebia um largo sorvo de luz e ar, tomava as guias e largava, murmurando consigo:
- Dia perdido!
Foi uma dessas manhãs que preguiçando assim no sofá com a Revista dos Dois Mundos na mão, ele ouviu um rumor na antecâmara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:
- Sua Alteza Real está visível?
- Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do sofá.
E caíram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.
- Quando chegaste tu?
- Esta manhã. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos ombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o enfim no olho. Caramba! Tu vens esplêndido desses Londres, dessas civilizações superiores. Estás com um ar Renascença, um ar Valois... Não há nada como a barba toda!
Carlos ria, abraçando-o outra vez.
- E de onde vens tu, de Celorico?
- Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O fígado, o baço, uma infinidade de vísceras comprometidas. Enfim, doze anos de vinhos e águas ardentes...
Depois falaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligência, ás várzeas de Celorico, o adeus de eternidade.
- Imagina tu, Carlos, amigo, a história deliciosa que me sucede com minha mãe... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, não caiu! Fiquei na quinta, fazendo epigramas ao padre Serafim e a toda a corte do céu. Chega julho, e aparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diftéricas... A mamã salta imediatamente à conclusão que é a minha presença, a presença do ateu, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que ofendeu Nosso Senhor e atraiu o flagelo. Minha irmã concorda. Consultam o padre Serafim. O homem, que não gosta de me ver na quinta, diz que é possível que haja indignação do Senhor - e minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruíne, mas que não esteja ali chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...
- E a epidemia...
- Desapareceu logo, disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva cor de canário.
Carlos mirava aquelas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o cabelo que ele trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de cetim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dândi, vistoso, paramentado, artificial e com pó de arroz - e Carlos deixou enfim escapar a exclamação impaciente que lhe bailava nos lábios:
- Ega, que extraordinário casaco!
Por aquele sol macio e morno de um fim de outono português, o Ega, o antigo boémio de batina esfarrapada, trazia uma peliça, uma sumptuosa peliça de príncipe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de físico uma rica e fofa espessura de peles de marta.
- É uma boa peliça, hein? disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exibindo a opulência do forro. Mandei-a vir pelo Strauss... Benefícios da epidemia.
- Como podes tu suportar isso?
- É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.
Tornou a recostar-se no sofá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monóculo no olho, examinou o gabinete.
- E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto esplêndido!
Carlos falou dos seus planos, de altas ideias de trabalho, das obras do laboratório...
- Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega interrompendo-o, erguendo-se para ir apalpar o veludo dos reposteiros, mirar os torneados da secretária de pau preto.
- Não sei. O Vilaça é que deve saber...
E Ega, com as mãos enterradas nos vastos bolsos da peliça, inventariando o gabinete, fazia considerações:
- O veludo dá seriedade... E o verde escuro é a cor suprema, é a cor estética... Tem a sua expressão própria, enternece e faz pensar... Gosto deste divã. Móvel de amor...
Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho, estudando os ornatos.
- Tu és o grandioso Salomão, Carlos! O papel é bonito... E o cretonesinho agrada-me.
Apalpou-o também. Uma begónia, manchada da sua ferrugem de prata, num vaso de Rouen, interessou-o. Queria saber o preço de tudo; e diante do piano, olhando o livro de música aberto, as Canções de Gounod, teve uma surpresa enternecida:
- Homem, é curioso... Cá me aparece! A Barcarola! É deliciosa, hein?...
Dites, la jeune belle,
Ou voulez-vous aller?
La voile...
Estou um bocado rouco... Era a nossa canção na Foz!
Carlos teve outra exclamação, e cruzando os braços diante dele:
- Tu estás extraordinário, Ega! Tu és outro Ega!... A propósito da Foz... Quem é essa Madame Cohen, que estava também na Foz, de quem tu, em cartas sucessivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlim, na Haia, em Londres, me falavas como os arroubos do Cântico dos Cânticos?
Um leve rubor subiu ás faces do Ega. E limpando negligentemente o monóculo ao lenço de seda branca:
- Uma judia. Por isso usei o lirismo bíblico. É a mulher do Cohen, hás-de conhecer, um que é director do Banco Nacional... Demos-nos bastante. É simpática... Mas o marido é uma besta... Foi uma flitartion de praia. Voila tout.
Isto era dito aos bocados, passeando, puxando o lume ao charuto, e ainda corado.
- Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocês no Ramalhete? O avô Afonso? Quem vai por lá?...
No Ramalhete, o avô fazia o seu whist com os velhos parceiros. Ia o D. Diogo, o decrépito leão, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes... Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar de sangue, à espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken...
- Não conheço. Refugiado?... Polaco?...
- Não, ministro da Finlândia... Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou esta simples transacção com tantas finuras diplomáticas, tantos documentos, tantas coisas com o selo real da Finlândia, que o pobre Vilaça aturdido, para se desembaraçar, remeteu-o ao avô. O avô, desnorteado também, ofereceu-lhe as cocheiras de graça. Steinbroken considera isto um serviço feito ao rei da Finlândia, à Finlândia, vai visitar o avô, em grande estado, com o secretario da legação, o cônsul, o vice-cônsul...
- Isso é sublime!
- O avô convida-o a jantar... E como o homem é muito fino, um gentleman, entusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma autoridade no whist, o avô adopta-o. Não sai do Ramalhete.
- E de rapazes?
De rapazes, aparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no Tribunal de Contas: um Cruges, que o Ega não conhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de génio; o marquês de Souzelas...
- Não há mulheres?
- Não há quem as receba. É um covil de solteirões. A viscondessa, coitada...
- Bem sei. Um apopleté...
- Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos também o Silveirinha, chegou-nos ultimamente o Silveirinha...
- O de Resende, o cretino?
- O cretino. Enviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado físico, todo carregado de luto... Um fúnebre.
O Ega, repoltreado, com aquele ar de tranquila e sólida felicidade que Carlos já notara, disse puxando lentamente os punhos:
- É necessário reorganizar essa vida. Precisamos arranjar um cenáculo, uma boémiasinha dourada, umas soirées de inverno, com arte, com literatura... Tu conheces o Craft?
- Sim, creio que tenho ouvido falar...
Ega teve um grande gesto. Era indispensável conhecer o Craft! O Craft era simplesmente a melhor coisa que havia em Portugal...
- É um inglês, uma espécie de doido?...
Ega encolheu os ombros. Um doido!... Sim, era essa a opinião da rua dos Fanqueiros; o indígena, vendo uma originalidade tão forte como a de Craft, não podia explica-la senão pela doidice. O Craft era um rapaz extraordinário!... Agora tinha ele chegado da Suécia, de passar três meses com os estudantes de Upsala. Estava também na Foz... Uma individualidade de primeira ordem!
- É um negociante do Porto, não é?
- Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face, enojado de tanta ignorância. O Craft é filho dum clergiman da igreja inglesa do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcutá ou de Austrália, um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grande fortuna. Mas não negocia, nem sabe o que isso é. Dá largas ao seu temperamento byroneano, é o que faz. Tem viajado por todo o universo, colecciona obras de arte, bateu-se como voluntário na Abissínia e em Marrocos, enfim vive, vive na grande, na forte, na heróica acepção da palavra. É necessário conhecer o Craft. Vais-te babar por ele... Tens razão, caramba, está calor.
Desembaraçou-se da opulenta peliça, e apareceu em peitilho de camisa.
- O que! tu não trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem colete?
- Não; então não a podia aguentar... Isto é para o efeito moral, para impressionar o indígena... Mas, não há nega-lo, é pesada!
E imediatamente voltou à sua ideia: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organizava-se um Cenáculo, um Decameron de arte e diletantismo, rapazes e mulheres - três ou quatro mulheres para cortarem, com a graça dos decotes, a severidade das filosofias...
Carlos ria-se desta ideia do Ega. Três mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenaculo! Lamentável ilusão de um homem de Celorico! O marquês de Souzela tinha tentado, e para uma vez só, uma coisa bem mais simples - um jantar no campo com actrizes. Pois fora o escândalo mais engraçado e mais característico: uma não tinha criada e queria levar consigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia que, aceitando, o brasileiro lhe tirasse a mesada; uma consentiu, mas o amante, quando soube, deu-lhe uma coça. Esta não tinha vestido para ir; aquela pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalizou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos, os pulhas, complicaram medonhamente a questão; uns exigiam ser convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se intrigas, - enfim esta coisa banal, um jantar com actrizes, resultou em o Tarquínio do Ginásio levar uma facada...
- E aqui tens tu Lisboa.
- Enfim, exclamou o Ega, se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?
Desembaraçado da majestade que lhe dava a peliça o antigo Ega reaparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mefistófeles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes frases, numa luta constante com o monóculo, que lhe caía do olho, que ele procurava pelo peito, pelos ombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se também, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambeta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e à uma, malharam sobre o país...
Mas o relógio ao lado bateu quatro horas; imediatamente Ega saltou sobre a peliça, sepultou-se nela, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, saiu com um arzinho de luxo e de aventura.
- John, disse Carlos que o achava esplêndido e o ia seguindo ao patamar, onde estás tu?
- No Universal, esse santuário!
Carlos abominava o Universal, queria que ele viesse para o Ramalhete.
- Não me convém...
- Em todo o caso vais hoje lá jantar, ver o avô.
- Não posso. Estou comprometido com a besta do Cohen... Mas vou lá amanhã almoçar.
Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monóculo, gritou para cima:
- Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!
- O quê! está pronto? exclamou Carlos, espantado.
- Está esboçado, à brocha larga...
O Livro do Ega! Fora em Coimbra, nos dois últimos anos, que ele começara a falar do seu livro, contando o plano, soltando títulos de capítulos, citando pelos cafés frases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela forma e pela ideia, uma evolução literária. Em Lisboa (onde ele vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fora anunciado como um acontecimento. Bacharéis, contemporâneos ou seus condiscípulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas províncias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegara ao Brasil... E sentindo esta ansiosa expectativa em torno do seu livro - o Ega decidira-se enfim a escrevê-lo.
Devia ser uma epopeia em prosa, como ele dizia, dando, sob episódios simbólicos, a história das grandes fases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memórias dum Átomo, e tinha a forma duma autobiografia. Este átomo (o átomo do Ega, como se lhe chamava a sério em Coimbra) aparecia no primeiro capítulo, rolando ainda no vago das Nebulosas primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: enfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda mole do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substância, o átomo do Ega entrava na rude estrutura do Orango, pai da humanidade - e mais tarde vivia nos lábios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heróis, palpitava no coração dos poetas. Gota de água nos lagos de Galileia, ouvira o falar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apóstolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anéis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-no orvalhado, pétala resplandecente de um dormente e lânguido lírio. Fora omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da pena do Ega, e cansado desta jornada através do Ser, repousava - escrevendo as suas Memórias... Tal era este formidável trabalho - de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:
- É uma Bíblia!
Capítulo V
No escritório de Afonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chama morria nos carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonês, por causa da bronquite de D. Diogo e do seu horror ao ar.
Esse velho dândi, - a quem as damas de outras eras chamavam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que dormira num leito real - acabava justamente de ter um dos seus acessos de tosse, cavernosa, áspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruína, que ele abafava no lenço, com as veias inchadas, roxo até à raiz dos cabelos.
Mas passara. Com a mão ainda tremula, o decrépito leão limpou as lágrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compôs a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua água casada, e perguntou a Afonso, seu parceiro, numa voz rouca e surda:
- Paus, hein?
E de novo, sobre o pano verde, as cartas foram caindo num daqueles silêncios que se seguiam ás tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o Vilaça seu parceiro, rezingão, e com todo o sangue na face.
Um tom fino retiniu, o relógio Luís XV foi ferindo alegremente, vivamente, a meia noite; - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silêncio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candeeiros Carcel; e a luz assim coada, caindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracção cor de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silêncio o ouro dum Sèvres, uma palidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majólica.
- O quê! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com ele o rumor distante de bolas de bilhar.
Afonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar com interesse:
- Como vai ela? Está sossegada?
- Está muito melhor!
Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsaciana, casada com o Marcelino padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus belos cabelos, loiros, e penteados sempre em tranças soltas. Tinha estado à morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda ás vezes à noite atravessava a rua para a ir ver, tranquilizar o Marcelino, que, defronte do leito e de gabão pelos ombros, sufocava soluços de amante, escrevinhando no livro de contas.
Afonso interessara-se ansiosamente por aquela pneumonia; e agora estava realmente agradecido à Marcelina por ter sido salva por Carlos. Falava dela comovido; gabava-lhe a linda figura, o asseio alsaciano, a prosperidade que trouxera à padaria... Para a convalescença, que se aproximava, já lhe mandara até seis garrafas de Chateau-Margaux.
- Então fora de perigo, inteiramente fora de perigo? - perguntou Vilaça, com os dedos na caixa do rapé, sublinhando muito a sua solicitude.
- Sim, quasi rija - disse Carlos, que se aproximara da chaminé, esfregando as mãos, arrepiado.
É que a noite, fora, estava regelada! Desde o anoitecer geava, dum céu fino e duro, transbordando de estrelas que rebrilhavam como pontas afiadas de aço; e nenhum daqueles cavalheiros, desde que se entendia, conhecera jamais o termómetro tão baixo. Sim, Vilaça lembrava-se dum janeiro pior no inverno de 64...
- É necessário carregar no punch, hein, general! - exclamou Carlos, batendo galhofeiramente nos ombros maciços do Sequeira.
- Não me oponho, rosnou o outro, que fixava com concentração e rancor um valete de copas sobre a mesa.
Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvões: uma chuva de oiro caiu por baixo, uma chama mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo, avermelhando em redor as peles de urso onde o Reverendo Bonifácio, espapado, torrava ao calor, ronronava de gozo.
- O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os pés à chama. Tem, enfim, justificada a peliça. A propósito, algum dos senhores tem visto o Ega estes últimos dias?
Ninguém respondeu, no interesse súbito que causava a cartada. A longa mão de D. Diogo recolhia de vagar a vasa - e languidamente, no mesmo silêncio, soltou uma carta de paus.
- Ó Diogo! ó Diogo! gritou Afonso, estorcendo-se, como se o trespassasse um ferro.
Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam faíscas, colocou o seu valete; Afonso, profundamente infeliz, separou-se do rei de paus; Vilaça bateu de estalo com o ás. E imediatamente foi em redor uma discussão tremenda sobre a puchada de D. Diogo - em quanto Carlos, a quem as cartas sempre enfastiavam, se debruçava a coçar o ventre fofo do venerável Reverendo.
- Que perguntavas tu, filho? disse enfim Afonso erguendo-se, ainda irritado, a buscar tabaco para o cachimbo, sua consolação nas derrotas. O Ega? Não, ninguém o viu, não tornou a aparecer! Está também um bom ingrato, esse John...
Ao nome do Ega, Vilaça, parando de baralhar as cartas, erguera a face curiosa:
- Então sempre é certo que ele vai montar casa?
Foi Afonso que respondeu, sorrindo e acendendo o cachimbo:
- Montar casa, comprar coupé, deitar libré, dar soirées literárias, publicar um poema, o diabo!
- Ele esteve lá no escritório, dizia Vilaça recomeçando a baralhar. Esteve lá a indagar o que tinha custado o consultório, a mobília de veludo, etc. O veludo verde deu-lhe no goto... Eu, como é um amigo da casa, lá lhe prestei informações, até lhe mostrei as contas. - E respondendo a uma pergunta do Sequeira: - Sim, a mãe tem dinheiro, e creio que lhe dá o bastante. Que em quanto a mim, ele vem-se meter na política. Tem talento, fala bem, o pai já era muito regenerador... Ali há ambição.
- Ali há mulher, disse D. Diogo, colocando com peso esta decisão e acentuando-a com uma carícia lânguida à ponta frisada dos bigodes brancos. Lê-se-lhe na cara, basta ver-lhe a cara... Ali há mulher.
Carlos sorria, gabando a penetração de D. Diogo, o seu fino olho à Balzac; e Sequeira, logo, franco como velho soldado, quis saber quem era a Dulcinea. Mas o velho dândi declarou, da profundidade da sua experiência, que essas coisas nunca se sabiam, e era preferível não se saberem. Depois passando os dedos magros e lentos pela face, deixou cair de alto e com condescendência este juizo:
- Eu gosto do Ega, tem apresentação; sobretudo tem dégagè...
Tinham recebido as cartas, fez-se um silêncio na mesa. O general, vendo o seu jogo, soltou um grunhido surdo, arrebatou o cigarro do cinzeiro, e puxou-lhe uma fumaça furiosa.
- Os senhores são muito viciosos, vou ver a gente do bilhar, disse Carlos. Deixei o Steinbroken engalfinhado com o marquês, a perder já quatro mil réis. Querem o punch aqui?
Nenhum dos parceiros respondeu.
E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo silêncio de solenidade. O marquês, estirado sobre a tabela, com a perna meia no ar, o começo de calva alvejando à luz crua que caía dos abat-jours de porcelana, preparava a carambola decisiva. Cruges, que apostara por ele, deixara o divã, o cachimbo turco, e, coçando com um gesto nervoso a grenha crespa que lhe ondeava até à gola do jaquetão, vigiava a bola inquieto, com os olhinhos piscos, o nariz espetado. Do fundo da sala, destacando em preto, o Silveirinha, o Euzebiosinho de Sta. Olavia, estendia também o pescoço, afogado numa gravata de viúvo de merino negro e sem colarinho, sempre macambúzio, mais molengo que outrora, com as mãos enterradas nos bolsos - tão fúnebre que tudo nele parecia complemento do luto pesado, até o preto do cabelo chato, até o preto das lunetas de fumo. Junto ao bilhar, o parceiro do marquês, o conde Steinbroken, esperava: e apesar do susto, da emoção de homem do norte aferrado ao dinheiro, conservava-se correcto, encostado ao taco, sorrindo, sem desmanchar a sua linha britânica, - vestido como um inglês, inglês tradicional destampa, com uma sobrecasaca justa de manga um pouco curta, e largas calças de xadrez sobre sapatões de tacão raso.
- Hurrah! gritou de repente Cruges. Os dez tostõesinhos para cá, Silveirinha!
O marquês carambolara, ganhando a partida, e triunfava também:
- Você trouxe-me a sorte, Carlos!
Steinbroken depusera logo o taco, e alinhava já sobre a tabela, lentamente, uma a uma, as quatro placas perdidas.
Mas o marquês, de giz na mão, reclamava-o para outras refregas, esfaimado de ouro filandês.
- Nada mach!... Vôcê hoje `stá têrivêl! dizia o diplomata, no seu português fluente, mas de acento bárbaro.
O marquês insistia, plantado diante dele, de taco ao ombro como uma vara de campino, dominando-o com a sua maciça, desempenada estatura. E ameaçava-o de destinos medonhos numa voz possante habituada a ressoar nas lezírias; queria-o arruinar ao bilhar, força-lo a empenhar aqueles belos anéis, leva-lo ele, ministro da Finlândia e representante duma raça de reis fortes, a vender senhas à porta da Rua dos Condes!
Todos riam; e Steinbroken também, mas com um riso franzido e difícil, fixando no marquês o olhar azul-claro, claro e frio, que tinha no fundo da sua miopia a dureza dum metal. Apesar da sua simpatia pela ilustre casa de Souzela, achava estas familiaridades, estas tremendas chalaças, incompatíveis com a sua dignidade e com a dignidade da Finlândia. O marquês, porém, coração de ouro, abraçava-o já pela cinta, com expansão:
- Então se não quereis mais bilhar, um bocadinho de canto, Steinbroken amigo!
A isto o ministro acedeu, afável, preparando-se logo, dando carícias ligeiras ás suissas, e aos anéis do cabelo dum loiro de espiga desbotada.
Todos os Steinbrokens, de pais a filhos (como ele dissera a Afonso) eram bons barítonos: e isso trouxera à família não poucos proventos sociais. Pela voz cativara seu pai o velho rei Rudolfo III, que o fizera chefe das coudelarias, e o tinha noites inteiras nos seus quartos, ao piano, cantando salmos luteranos, corais escolares, sagas da Dalecarlia - em quanto o taciturno monarca cachimbava e bebia, até que saturado de emoção religiosa, saturado de cerveja preta, tombava do sofá, soluçando e babando-se. Ele mesmo, Steinbroken, levara parte da sua carreira ao piano, já como adido, já como segundo secretario. Feito chefe de missão, absteve-se: foi só quando viu o Figaro celebrar repetidamente as valsas do príncipe Artof, embaixador da Rússia em Paris, e a voz de basso do conde de Baspt, embaixador da Áustria em Londres, que ele, seguindo tão altos exemplos, arriscou, aqui e alem, em soirées mais intimas, algumas melodias filandesas. Enfim cantou no Paço. E desde então exerceu com zelo, com formalidades, com praxes, o seu cargo de «barítono plenipotenciário,» como dizia o Ega. Entre homens, e com os reposteiros corridos, Steinbroken não duvidava todavia cantarolar o que ele chamava «cançonetas brejeiras» - o Amant de Amanda, ou uma certa balada inglesa:
On te Serpentine,
Oh my Caroline...
Oh!
Este oh! como ele o expelia, gemido, bem puxado, num movimento de batuque, expressivo e todavia digno... Isto entre rapazes e com os reposteiros fechados.
Nessa noite, porém, o marquês, que o conduzia pelo braço à sala do piano, exigia uma daquelas canções da Finlândia, de tanto sentimento e que lhe faziam tão bem à alma...
- Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto, frisk, gluzk... La ra lá, lá, lá!
- A Primavera, disse o diplomata sorrindo.
Mas antes de entrar na sala, o marquês soltou o braço de Steinbroken, fez um sinal ao Silveirinha para o fundo do corredor - e aí, sob um sombrio painel de Santa Madalena no deserto penitenciando-se e mostrando nudezas ricas de ninfa lúbrica, interpelou-o quasi com aspereza:
- Vamos nós a saber. Então, decide-se ou não?
Era uma negociação que havia semanas se arrastava entre eles, a respeito duma parelha de éguas. Silveirinha nutria o desejo de montar carruagem; e o marquês procurava vender-lhe umas éguas brancas, a que ele dizia «ter tomado enguiço, apesar de serem dois nobres animais». Pedia por elas um conto e quinhentos mil réis. Silveirinha fora avisado pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era uma espiga: o marquês tinha a sua moral própria para negócios de gado, e exultaria em intrujar um pichote. Apesar de advertido, Euzébio cedendo à influência da grossa voz do marquês, da robustez do seu físico, da antiguidade do seu título, não ousava recusar. Mas hesitava; e nessa noite deu a resposta usual de forreta, coçando o queixo, cosido ao muro:
- Eu verei, marquês... Um conto e quinhentos é dinheiro...
O marquês ergueu dois braços ameaçadores como duas trancas:
- Homem, sim ou não! Que diabo... Dois animais que são duas estampas... Irra! Sim ou não!
Euzébio ajeitou as lunetas, rosnou:
- Eu verei... Ele é dinheiro. Sempre é dinheiro...
- Queria você, talvez, paga-las com feijões? Você leva-me a cometer um excesso!
O piano ressoou, em dois acordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o marquês, baboso por música, imediatamente largou a questão das éguas, recolheu em pontas de pés. Euzebiosinho ainda ficou a remoer, a coçar o queixo; enfim, ás primeiras notas de Steinbroken, veio pousar como uma sombra silenciosa entre a ombreira e o reposteiro.
Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabeleira como pousada ás costas, Cruges feria o acompanhamento, de olhos cravados no livro de Melodias Filandesas. Ao lado, empertigado, quasi oficial, com o lenço de seda na mão, a mão fincada contra o peito, Steinbroken soltava um canto festivo, num movimento de tarantela triunfante, em que passavam, como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras de que o marquês gostava, frisk, slécht, clikst, glukst. Era a Primavera - fresca e silvestre, primavera do norte em país de montanhas, quando toda uma aldeia dança em coros sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas, um sol pálido aveluda os musgos, e a brisa traz o aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de Steinbroken ruborizavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo ele se ía alçando sobre a ponta dos pés, como levado no compasso vivo; despegava então a mão do peito, alargava um gesto, as belas jóias dos seus anéis faiscavam.
O marquês, com as mãos esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto. Na face de Carlos passava um sorriso enternecido pensando em Madame Rughel, que viajara na Finlândia, e cantava ás vezes aquela Primavera nas suas horas de sentimentalismo flamengo...
Steinbroken soltou um stacato agudo, isolado como uma voz num alto, - e imediatamente, afastando-se do piano, passou o lenço sobre as fontes, sobre o pescoço, rectificou com um puxão a linha da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao Cruges num silencioso shake-hands.
- Bravo! bravo! berrava o marquês, batendo as mãos como malhos.
E outros aplausos ressoaram à porta, dos parceiros do whist, que tinham findado a partida. Quasi imediatamente os escudeiros entravam com um serviço frio de croquetes e sandwiches, oferecendo St. Emilion ou Porto; e sobre uma mesa, entre os renques de cálices, a puncheira fumegou num aroma doce e quente de cognac e limão.
- Então, meu pobre Steinbroken, exclamou Afonso, vindo-lhe bater amavelmente no ombro, ainda dá desses belos cantos a estes bandidos, que o maltratam assim ao bilhar?
- Fui essfôladito, si, essfôladito. Agradecido, nô, prefiro um copita Porto...
- Hoje fomos nós as vítimas, disse-lhe o general respirando com delícia o seu punch.
- Você tãbem, meu genêral?
- Sim, senhor, também me cascaram...
E que dizia o amigo Steinbroken ás noticias da manhã? perguntava Afonso. A queda de Mac-Mahon, a eleição de Grevy... O que o alegrava nisto, era o desaparecimento definitivo do antipático senhor de Broglie e da sua clique. A impertinência daquele académico estreito, querendo impor a opinião de dois ou três salões doutrinários à França inteira, a toda uma Democracia! Ah, o Times cantava-lhas!
- E o Punch? Não viu o Punch? Oh, delicioso!...
O ministro pousara o cálice, e esfregando cautelosamente as mãos disse numa meia voz grave a sua frase, a frase definitiva com que julgava todos os acontecimentos que aparecem em telegramas:
- É gràve... É eqsessivemente gràve...
Depois falou-se de Gambeta; e como Afonso lhe atribuía uma ditadura próxima, o diplomata tomou misteriosamente o braço de Sequeira, murmurou a palavra suprema com que definia todas as personalidades superiores, homens de estado, poetas, viajantes ou tenores.
- É um homè mûto forte. É um homè eqsessivemente forte!
- O que ele é, é um ronha! exclamou o general, escorropichando o seu cálice.
E todos três deixaram a sala, discutindo ainda a república - em quanto Cruges continuava ao piano, vagueando por Mendelsshon e por Chopin, depois de ter devorado um prato de croquetes.
O marquês e D. Diogo, sentados no mesmo sofá, um com a sua chazada de invalido, outro com um copo de St. Emilion, a que aspirava o bouquet, falavam também de Gambeta. O marquês gostava de Gambeta: fora o único que durante a guerra mostrara ventas de homem; lá que tivesse «comido» ou que «quisesse comer» como diziam, - não sabia nem lhe importava. Mas era teso! E o Sr. Grevy também lhe parecia um cidadão sério, óptimo para chefe do Estado...
Homem de sala? perguntou languidamente o velho leão.
O marquês só o vira na Assembleia, presidindo e muito digno...
D. Diogo murmurou, com um melancólico desdém na voz, no gesto, no olhar:
- O que eu queria a toda essa canalha era a saúde, marquês!
O marquês consolou-o, galhofeiro e amável. Toda essa gente, parecendo forte por se ocupar de coisas fortes, no fundo tinha asma, tinha pedra, tinha gota... E o Dioguinho era um Hércules...
- Um Hércules! O que é, é que você apaparica-se muito... A doença é um mau habito em que a gente se põe. É necessário reagir... Você devia fazer ginástica, e muita água fria por essa espinha. Você, na realidade, é de ferro!
- Enferrujadote, enferrujadote... - replicou o outro, sorrindo e desvanecido.
- Qual enferrujadote! Se eu fosse cavalo ou mulher, antes o queria a você que a esses badamecos que por aí andam meio podres... Já não há homens da sua tempera, Dioguinho!
- Já não há nada, disse o outro grave e convencido, e como o derradeiro homem nas ruínas dum mundo.
Mas era tarde, ia-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua casada. O marquês ainda se demorou, preguiçando no sofá, enchendo lentamente o cachimbo, dando um olhar àquela sala que o encantava com o seu luxo Luís XV, os seus floridos e os seus dourados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais feitas para a amplidão das anquinhas, as tapeçarias de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras, longes de parques, laços e lãs de cordeiros, sombras de idílios mortos, transparecendo numa trama de seda... Àquela hora, no adormecimento que ía pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia e o ar de um outro século: e o marquês reclamou do Cruges um minuete, uma gavota, alguma coisa que evocasse Versalhes, Maria Antonieta, o ritmo das belas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo em suspiros, preparou-se, alargou os braços - e atacou, com um pedal solene, o Hino da Carta. O marquês fugiu.
Vilaça e Euzebiosinho conversavam no corredor, sentados numa das arcas baixas de carvalho lavrado.
- A fazer política? perguntou-lhes o marquês ao passar.
Ambos sorriram; Vilaça respondeu jocosamente:
- É necessário salvar a pátria!
Euzébio pertencia também ao centro progressista, aspirava a influência eleitoral no circulo de Resende, e ali ás noites no Ramalhete faziam conciliábulos. Nesse momento porém falavam dos Maias: Vilaça não duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, vizinho de Sta. Olavia, quasi criado com Carlos, certas coisas que lhe desagradavam na casa, onde a autoridade da sua palavra parecia diminuir; assim, por exemplo, não podia aprovar o ter Carlos tomado uma frisa de assinatura.
- Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor? Para lá não pôr os pés, para passar aqui as noites... Hoje diz que há entusiasmo, e ele aí esteve. Tem ido lá, eu sei? duas ou três vezes... E para isto dá cá uns poucos de centos de mil réis. Podia fazer o mesmo com meia dúzia de libras! Não, não é governo. No fim a frisa é para o Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu não me utilizo dela; nem o amigo. É verdade, que o amigo está de luto.
Euzébio pensou, com despeito, que se podia meter para o fundo da frisa - se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter um sorriso mole:
- Indo assim, até se podem encalacrar...
Uma tal palavra, tão humilhante, aplicada aos Maias, à casa que ele administrava, escandalizou Vilaça. Encalacrar! Ora essa!
- O amigo não me compreendeu... Há despesas inúteis, sim, mas, louvado Deus, a casa pode bem com elas! É verdade que o rendimento gasta-se todo, até o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas secas; e até aqui o costume da casa foi pôr de lado, fazer bolo, fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se...
Euzébio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, os nove cavalos, o cocheiro inglês, os grooms... O procurador acudiu:
- Isso, amigo, é de razão. Uma gente destas deve ter a sua representação, as suas coisas bem montadas. Há deveres na sociedade... É como o Sr. Afonso... Gasta muito, sim, come dinheiro. Não é com ele, que lhe conheço aquele casaco há vinte anos... Mas são esmolas, são pensões, são empréstimos que nunca mais vê...
- Desperdícios...
- Não lho censuro... É o costume da casa; nunca da porta dos Maias, já meu pai dizia, saiu ninguém descontente... Mas uma frisa, de que ninguém usa! só para o Cruges, só para o Taveira!...
Teve de se calar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado até aos olhos na gola duma ulster, de onde saíam as pontas dum cachenez de seda clara. O escudeiro desembaraçou-o dos agasalhos; e ele, de casaca e colete branco, limpando o bonito bigode húmido da geada, veio apertar a mão ao caro Vilaça, ao amigo Euzébio, arrepiado, mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu chic...
- Nada, nada, dizia Vilaça todo amável, cá o nosso solzinho português sempre é melhor...
E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do marquês, de Carlos, numa das suas sabias e prolixas cavaqueiras sobre cavalos e sport.
- Então? que tal? A mulher? foi a interrogação que acolheu o Taveira.
Mas antes de dar noticia da estreia da Moreli, a dama nova, Taveira reclamou alguma coisa quente. E enterrado numa poltrona junto do fogão, com os sapatos de verniz estendidos para as brasas, respirando o aroma do punch, saboreando uma cigarrete, declarou enfim que não tinha sido um fiasco.
- Que ela, a meu ver, é uma insignificância, não tem nada, nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava tão atrapalhada, que nos fez pena. Houve indulgência, deram-se-lhe umas palmas... Quando fui ao palco, ela estava contente...
- Vamos a saber, Taveira, que tal é ela? inquiria o marquês.
- Cheia, dizia o Taveira colocando as palavras como pinceladas; alta; muito branca; bons olhos; bons dentes...
- E o pésinho? - E o marquês, já com os olhos acesos, passava de vagar a mão pela calva.
Taveira não reparara no pé. Não era amador de pés...
- Quem estava? perguntou Carlos, indolente e bocejando.
- A gente do costume... É verdade, sabes quem tomou a frisa ao lado da tua? Os Gouvarinhos. Lá apareceram hoje...
Carlos não conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe: o conde de Gouvarinho, o par do reino, um homem alto, de lunetas, poseur... E a condessa, uma senhora inglesada, de cabelo cor de cenoura, muito bem feita... Enfim, Carlos não conhecia.
Vilaça encontrava o conde no centro progressista, onde ele era uma coluna do partido. Rapaz de talento, segundo o Vilaça. O que o espantava é que ele pudesse ter assim frisa de assinatura, atrapalhado como estava: ainda não havia três meses lhe tinham protestado uma letra de oitocentos mil réis, no tribunal do comercio...
- Um asno, um caloteiro! disse o marquês com nojo.
- Passa-se lá bem, ás terças feiras... - disse Taveira, mirando a sua meia de seda.
Depois falou-se do duelo do Azevedo da Opinião com o Sá Nunes, autor de El-Rei Bolacha, a grande mágica da Rua dos Condes, e ultimamente ministro da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos jornais de pulhas e de ladrões: e havia dez intermináveis dias que estavam desafiados e que Lisboa, em pasmaceira, esperava o sangue. Cruges ouvira que Sá Nunes não se queria bater, por estar de luto por uma tia; dizia-se também que o Azevedo partira precipitadamente para o Algarve. Mas a verdade, segundo Vilaça, era que o ministro do reino, primo do Azevedo, para evitar o recontro, conservava a casa dos dois cavalheiros bloqueada pela polícia...
- Uma canalha! exclamou o marquês com um dos seus resumos brutais que varriam tudo.
- O ministro não deixa de ter razão, observou Vilaça. Isto ás vezes, em duelos, pode bem suceder uma desgraça...
Houve um curto silêncio. Carlos, que caía de sono, perguntou ao Taveira, através doutro bocejo, se vira o Ega no teatro.
- Pudera! La estava de serviço, no seu posto, na frisa dos Cohens, todo puxado...
- Então essa coisa do Ega com a mulher do Cohen, disse o marquês, parece clara...
- Transparente, diáfana! um cristal!...
Carlos, que se erguera a acender uma cigarrete para despertar, lembrou logo a grande máxima de D. Diogo: essas coisas nunca se sabiam, e era preferível não se saberem! Mas o marquês, a isto, lançou-se em considerações pesadas. Estimava que o Ega se atirasse; e via aí um facto de represália social, por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral não gostava de judeus; mas nada lhe ofendia tanto o gosto e a razão como a espécie banqueiro. Compreendia o salteador de clavina, num pinheiral; admitia o comunista, arriscando a pele sobre uma barricada. Mas os argentários, os Fulanos e Cas. faziam-no encavacar... E achava que destruir-lhes a paz domestica era acto meritório!
- Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relógio. E eu aqui, empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ás dez horas da manhã.
- Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaqueia-se?
- Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... Até contas!
Afonso da Maia já estava recolhido. Sequeira e Steinbroken tinham partido; e D. Diogo, no fundo da sua velha traquitana, lá fora também a tomar ainda gemada, a pôr ainda o emplastro, sob o olho solicito da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. E os outros não tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novo sepultado na ulster, trotou até casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim. O marquês conseguiu levar Cruges no coupé, para lhe ir fazer música a casa, no órgão, até ás três ou quatro horas, música religiosa e triste, que o fazia chorar, pensando nos seus amores e comendo frango frio com fatias de salame. E o viúvo, o Euzebiosinho, esse, batendo o queixo, tão morosa e soturnamente como se caminhasse para a sua própria sepultura, lá se dirigiu ao lupanar onde tinha uma paixão.
O laboratório de Carlos estava pronto - e muito convidativo, com o seu soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta mesa de mármore, um amplo divã de crina para o repouso depois das grandes descobertas, e em redor, por sobre peanhas e prateleiras, um rico brilho de metais e cristais; mas as semanas passavam, e todo esse belo material de experimentação, sob a luz branca da clarabóia, jazia virgem e ocioso. Só pela manhã um servente ia ganhar o seu tostão diário, dando lá uma volta preguiçosa com um espanador na mão.
Carlos realmente não tinha tempo de se ocupar do laboratório; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilegio exclusivo de saber o segredo das coisas - como ele dizia rindo ao avô. Logo pela manhã cedo ía fazer as suas duas horas de armas com o velho Randon; depois via alguns doentes no bairro onde se espalhara, com um brilho de legenda, a cura da Marcelina - e as garrafas de Bordéus que lhe mandara Afonso. Começava a ser conhecido como médico. Tinha visitas no consultório - ordinariamente bacharéis, seus contemporâneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá entravam, murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfarçada história de ternuras funestas. Salvara dum garrotilho a filha dum brasileiro, ao Aterro - e ganhara aí a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um homem da sua família. O Dr. Barbedo convidara-o a assistir a uma operação ovariotómica. E enfim (mas esta consagração não a esperava realmente Carlos tão cedo) alguns dos seus bons colegas, que até aí, vendo-o só a governar os seus cavalos ingleses, falavam do «talento do Maia» - agora percebendo-lhe estas migalhas de clientela, começavam a dizer «que o Maia era um asno.» Carlos já falava a sério da sua carreira. Escrevera, com laboriosos requintes de estilista, dois artigos para a Gazeta Medica; e pensava em fazer um livro de ideias gerais, que se devia chamar Medicina Antiga e Moderna. De resto ocupava-se sempre dos seus cavalos, do seu luxo, do seu bric-a-brac. E através de tudo isto, em virtude dessa fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de patologia, lhe fazia voltar a cabeça, se ouvia falar duma estátua ou dum poeta, atraia-o singularmente a antiga ideia do Ega, a criação duma Revista, que dirigisse o gosto, pesasse na política, regulasse a sociedade, fosse a força pensante de Lisboa...
Era porém inútil lembrar ao Ega este belo plano. Abria um olho vago, respondia:
- Ah, a Revista... Sim, está claro, pensar nisso! Havemos de falar, eu aparecerei...
Mas não aparecia no Ramalhete, nem no consultório; apenas se avistavam, ás vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que não passava no camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa de Carlos, por trás de Taveira ou do Cruges; de onde pudesse olhar de vez em quando Rachel Cohen - e ali ficava, silencioso, com a cabeça apoiada ao tabique, repousando e como saturado de felicidade...
O dia (dizia ele) tinha-o todo tomado: andava procurando casa, andava estudando mobílias... Mas era fácil encontra-lo pelo Chiado e pelo Loreto, a rondar e a farejar - ou então no fundo de tapeias de praça, batendo a meio galope, num espalhafato de aventura.
O seu dândismo requintava; arvorara, com o desplante soberbo dum Brumel, casaca de botões amarelos sobre colete de cetim branco; e Carlos entrando uma manhã cedo no Universal, deu com ele pálido de cólera, a despropositar com um criado, por causa de uns sapatos mal envernizados. Os seus companheiros constantes, agora, eram um Dâmaso Salcede, amigo do Cohen, e um primo da Rachel Cohen, mocinho imberbe, de olho esperto e duro, já com ares de emprestar a trinta por cento.
Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se ás vezes Rachel, e as opiniões discordavam. Taveira achava-a «deliciosa!» - e dizia-o rilhando o dente: ao marquês não deixava de parecer apetitosa, para uma vez, aquela carnesinha faisandée de mulher de trinta anos: Cruges chamava-lhe uma «lambisgóia relambória». Nos jornais, na secção do High-life, ela era «uma das nossas primeiras elegantes»: e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta de ouro presa por um fio de ouro, e a sua caleche azul com cavalos pretos. Era alta, muito pálida, sobre tudo ás luzes, delicada de saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lírio meio murcho: a sua maior beleza estava nos cabelos, magnificamente negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ela deixava habilmente cair numa massa meia solta sobre as costas, como num desalinho de nudez. Dizia-se que tinha literatura, e fazia frases. O seu sorriso lasso, pálido, constante, dava-lhe um ar de insignificância. O pobre Ega adorava-a.
Conhecera-a na Foz, na Assembleia; nessa noite, cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou camélia melada; dias depois já adulava o marido; e agora esse demagogo, que queria o massacre em massa das classes medias, soluçava muita vez por causa dela, horas inteiras, caído para cima da cama.
Em Lisboa, entre o Grémio o a Casa Havaneza, já se começava a falar «do arranjinho do Ega». Ele todavia procurava pôr a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas precauções tanta sinceridade como prazer romântico do mistério: e era nos sítios mais desajeitados, fora de portas, para os lados do Matadouro, que ia furtivamente encontrar a criada que lhe trazia as cartas dela... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce afectado com que espreitava as horas) transbordava a imensa vaidade daquele adultério elegante. De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante de Carlos e dos outros, nunca até aí mencionara o nome dela, nem deixara jamais escapar um lampejo de exaltação.
Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete, noite de lua calma e branca, em que caminhavam ambos calados, Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixão, soltou desabafadamente um suspiro, alargou os braços, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz:
Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l'amour c'est la vie!
Isto fugira-lhe dos lábios como um começo de confissão; Carlos ao lado não disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.
Mas Ega sentiu-se decerto ridículo, porque se calmou, refugiou-se imediatamente no puro interesse literária:
- No fim de contas, menino, digam lá o que disserem, não há senão o velho Hugo...
Carlos, consigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra Hugo, chamando-lhe «saco-roto de espiritualismo», «boca-aberta de sombra», «avôsinho lírico», injurias piores.
Mas nessa noite o grande fraseador continuou:
- Ah o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão heróico de verdades eternas... É necessário um bocado de ideal, que diabo!... De resto o ideal pode ser real...
E foi, com esta palinodia, acordando os silêncios do Aterro.
Dias depois Carlos, no consultório, acabava de despedir um doente, um Viegas, que todas as semanas vinha ali fazer a fastidiosa crónica da sua dispepsia - quando do reposteiro da sala de espera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul, luva gris-perle e um rolo de papel na mão.
- Tens que fazer, doutor?
- Não, ía a sair, janota!
- Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do Átomo... Senta-te aí. Ouve lá.
Imediatamente abancou, afastou papéis e livros, desenrolou o manuscrito, espalmou-o, deu um puxão ao colarinho - e Carlos, que se pousara à borda do divã, com a face espantada e as mãos nos joelhos, achou-se quasi sem transição transportado dos rugidos do ventre do Viegas para um rumor de populaça, num bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg.
- Mas espera lá! exclamou ele. Deixa-me respirar. Isso não é o começo do livro! Isso não é o caos...
Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou também.
- Não, não é o primeiro episódio... Não é o caos. É já no século XV... Mas num livro destes pode-se começar pelo fim... Conveio-me fazer este episódio: chama-se a Hebrea.
A Cohen! pensou Carlos.
Ega tornou a alargar o colarinho - e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finais dos períodos. Depois da sombria pintura dum bairro medieval de Heidelberg, o famoso Átomo, o Átomo do Ega, aparecia alojado no coração do esplêndido príncipe Franck, poeta, cavaleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coração de herói palpitava pela judia Ester, pérola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabino Salomão, um grande doutor da Lei, perseguido pelo ódio teológico do Geral dos Dominicanos.
Isto contava-o o Átomo num monólogo, tão recamado de imagens como um manto da Virgem está recamado de estrelas - e que era uma declaração dele, Ega, à mulher do Cohen. Depois abria-se um intermédio panteísta: rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na linguagem da luz, ou na eloquência dos perfumes, a beleza, a graça, a pureza, a alma celeste de Ester - e de Rachel... Enfim, chegava o negro drama da perseguição: a fuga da família hebraica, através de bosques de bruxas e brutas aldeias feudais; a aparição, numa encruzilhada, do príncipe Franck que vem proteger Ester, de lança alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanática, correndo a queimar o rabino e os seus livros herejes; a batalha, e o príncipe atravessado pelo chuço dum reitre, indo morrer no peito de Ester, que morre com ele num beijo. Tudo isto se precipitava como um sonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as maneiras modernas de estilo, o esforço atormentado inchando a expressão, as camadas de cor atiradas à larga para fazer ressaltar o tom de vida...
Ao findar o Átomo exclamava, com a vasta solenidade dum cheio de órgão: - «assim arrefeceu, parou, aquele coração de herói que eu habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos astros, levando comigo a essência pura desse amor imortal.»
- Então?... disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.
Carlos só pôde responder:
- Está ardente.
Depois elogiou a sério alguns lances, o coro das florestas, a leitura do Eclesiastes, de noite, entre as ruínas da torre de Oton, certas imagens dum grande voo lírico.
Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscrito, reabotoou a sobrecasaca, e já de chapéu na mão:
- Então, parece-te apresentável?...
- Vais publicar?
- Não, mas enfim... - e ficou nesta reticência, fazendo-se corado.
Carlos compreendeu tudo dias depois, encontrando na Gazeta do Chiado uma descrição «da leitura feita em casa do Exmo. Sr. Jacob Cohen, pelo nosso amigo João da Ega, de um dos mais brilhantes episódios do seu livro - As memórias dum átomo.» E o jornalista acrescentava, dando a sua impressão pessoal: «é uma pintura dos sofrimentos porque passaram, nos tempos da intolerância religiosa, aqueles que seguem a Lei de Israel. Que poder de imaginação! Que fluência de estilo! O efeito foi extraordinário, e quando o nosso amigo fechou o manuscrito ao sucumbir da protagonista - vimos lágrimas em todos os olhos da numerosa e estimável colónia hebraica!»
Oh, furor do Ega! Rompeu nessa tarde pelo consultório, pálido, desorientado...
- Estas bestas! Estas bestas destes jornalistas! Leste? Lágrimas em todos os olhos da numerosa e estimável colónia hebraica! Faz cair a coisa em ridículo... E depois a fluência de estilo. Que burros! Que idiotas!
Carlos, que cortava as folhas dum livro, consolou-o. Aquela era a maneira nacional de falar de obras de arte... Não valia a pena bramar...
- Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara àquele foliculário!
- E porque lha não quebras?
- É um amigo dos Cohens.
E foi grunhindo impropérios contra a imprensa, a passos de tigre pelo gabinete. Por fim irritado com a indiferença de Carlos:
- Que diabo estás tu aí a ler? Nature parasitaire des acidents de l'impaludisme... Que blague, a medicina! Dize-me uma coisa. Que diabo serão umas picadas que me vêem aos braços, sempre que vou a adormecer?...
- Pulgas, bichos, vermina... - murmurou Carlos com os olhos no livro.
- Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapéu.
- Vais-te, John?
- Vou, tenho que fazer! - E junto do reposteiro, ameaçando o céu com o guarda-chuva, chorando quasi de raiva: - Estes burros destes jornalistas! São a escoria da sociedade!
daí a dez minutos reapareceu, bruscamente: e já com outra voz, num tom de caso sério:
- Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos Gouvarinhos?
- Não tenho um interesse especial, respondeu Carlos, erguendo os olhos do livro, depois de um silêncio. Mas não tenho também uma repugnância especial.
- Bem, disse Ega. Eles desejam conhecer-te, sobretudo a condessa faz empenho... Gente inteligente, passa-se lá bem... Então, decidido.! Terça feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos gouvarinhar.
Carlos ficou pensando naquela proposta do Ega, na maneira como ele sublinhara o empenho da condessa. Lembrava-se agora que ela era muito intima da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos, naquela fácil vizinhança de frisa, surpreendera certos olhares dela... Mesmo, segundo o Taveira, ela realmente fazia-lhe um olhão. E Carlos achava-a picante, com os seus cabelos crespos e ruivos, o narizinho petulante, e os olhos escuros, dum grande brilho, dizendo mil coisas. Era deliciosamente bem feita - e tinha uma pele muito clara, fina e doce à vista, a que se sentia mesmo de longe o cetim.
Depois daquele dia tristonho de aguaceiros, ele resolvera passar um bom serão de trabalho, ao canto do fogão, no conforto do seu robe-de-chambre. Mas, ao café, os olhos da Gouvarinho começaram a faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe um olhão, colocando-se tentadoramente entre ele a sua noite de estudo, pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade... Tudo culpa do Ega, esse Mefistófeles de Celorico!
Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porém à boca da frisa, preparado, de colete branco e pérola negra na camisa, - em lugar dos cabelos crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um preto de doze anos, trombudo e luzidio, de grande colarinho à mamã sobre uma jaqueta de botões amarelos; ao lado outro preto, mais pequeno, com o mesmo uniforme de colégio, enterrava pela venta aberta o dedo calçado de pelica branca. Ambos eles lhe relancearam os olhos bogalhudos, cor de prata embaciada. A pessoa que os acompanhava, escondida para o fundo, parecia ter um catarro ascoroso.
Dava-se a Lucia em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens não tinham vindo - nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia penetrar ali, derramando o seu pesadume, a morna sensação da sua humidade. Nas cadeiras, vazias, havia uma mulher solitária, vestida de cetim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gás dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas, pareciam ir adormecendo também.
- Isto está lúgubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que ocupava o escuro da frisa.
Cruges, amodorroado num acesso de spleen, com o cotovelo sobre as costas da cadeira, os dedos por entre a cabeleira, todo ele embrulhado em crepes sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo dum sepulcro:
- Pesadote.
Por indolência, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquele preto de que os seus olhos se não podiam despegar, ali entronisado na poltrona de reps verde da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no rebordo onde costumava alvejar um lindo braço, - foi-lhe arrastando, a seu pesar, a imaginação para a pessoa dela; relembrou toiletes com que ela ali estivera; e nunca lhe pareceram tão picantes, como agora que os não via, os seus cabelos ruivos, cor de brasa ás luzes, dum encrespado forte, como crestados da chama interna. A carapinha do preto, essa, em lugar de risca tinha um sulco cavado à tesoura na massa de lã espessa. Quem seriam, por que estavam ali, aqueles africanos de perfil trombudo?
- Tu já reparaste nesta extraordinária carapinha, Cruges?
O outro, que se não mexera da sua atitude de estátua tumular, grunhiu da sombra um monossílabo surdo.
Carlos respeitou-lhe os nervos.
De repente, ao desafinar mais áspero dum coro, Cruges deu um salto.
- Isto só a pontapé... Que empresa esta! rugiu ele, envergando furiosamente o paletó.
Carlos foi leva-lo no coupé à rua das Flores, onde ele morava com a mãe e uma irmã; e até ao Ramalhete não cessou de lamentar consigo o seu serão de estudo perdido.
O criado de Carlos, o Baptista, (familiarmente, o Tista) esperava-o, lendo o jornal, na confortável antecâmara dos «quartos do menino», forrada de veludo cor de cereja, ornada de retratos de cavalos e panóplias de velhas armas, com divãs do mesmo veludo, e muito alumiada a essa hora por dois candeeiros de globo pousados sobre colunas de carvalho, onde se enrolavam lavores de ramos de vide.
Carlos tinha desde os onze anos este criado de quarto, que viera com o Brown para Sta. Olavia, depois de ter servido em Lisboa, na Legação inglesa, e ter acompanhado o ministro, sir Hercules Morrisson, varias vezes a Londres. Foi em Coimbra, nos Paços de Celas, que Baptista começou a ser um personagem: Afonso correspondia-se com ele de Sta. Olavia. Depois viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos paquetes, partilharam dos mesmos sandwiches no bufete das gares; Tista tornou-se um confidente. Era hoje um homem de cinquenta anos, desempenado, robusto, com um colar de barba grisalha por baixo do queixo, e o ar excessivamente gentleman. Na rua, muito direito na sua sobrecasaca, com o par de luvas amarelas espetado na mão, a sua bengala de cana da índia, os sapatos bem envernizados, tinha a considerável aparência de um alto funcionário. Mas conservava-se tão fino e tão desembaraçado, como quando em Londres aprendera a valsar e a boxar na rude balbúrdia dos salões-dançantes, ou como quando mais tarde, durante as ferias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamêgo e o ajudava a saltar o muro do quintal do Sr. escrivão de fazenda - aquele que tinha uma mulher tão garota.
Carlos foi buscar um livro ao gabinete de estudo, entrou no quarto, estendeu-se, cansado, numa poltrona. Á luz opalina dos globos, o leito entre-aberto mostrava, sob a seda dos cortinados, um luxo efeminado de bretanhas, bordados e rendas.
- Que há hoje no Jornal da Noite? perguntou ele bocejando, em quanto Baptista o descalçava.
- Eu li-o todo, meu senhor, e não me pareceu que houvesse coisa alguma. Em França continua sossego... Mas a gente nunca pode saber, porque estes jornais portugueses imprimem sempre os nomes estrangeiros errados.
- São umas bestas. O Sr. Ega hoje estava furioso com eles...
Depois, em quanto Baptista preparava com esmero um grog quente, Carlos já deitado, aconchegado, abriu preguiçosamente o livro, voltou duas folhas, fechou-o, tomou uma cigarrete, e ficou fumando com as pálpebras cerradas, numa imensa beatitude. Através das cortinas pesadas sentia-se o sudoeste que batia o arvoredo, e os aguaceiros alagando os vidros.
- Tu conheces os srs. condes de Gouvarinho, Tista?
- Conheço o Pimenta, meu senhor, que é criado de quarto do Sr. conde... Criado de quarto e serve a mesa.
- E que diz então esse Tormenta? perguntou Carlos, numa voz indolente, depois dum silêncio.
- Pimenta, meu senhor! O Manuel é Pimenta. O Sr. Gouvarinho chama-lhe Romão, por que estava acostumado ao outro criado que era Romão. E já isto não é bonito, porque cada um tem o seu nome. O Manuel é Pimenta. O Pimenta não está contente...
E Baptista, depois de colocar junto da cabeceira a salva com o grog, o açucareiro, as cigarretes, transmitiu as revelações do Pimenta. O conde de Gouvarinho, além de muito maçador e muito pequinhento, não tinha nada de cavalheiro: dera um fato de cheviot claro ao Romão (ao Pimenta), mas tão coçado e tão cheio de riscas de tinta, de limpar a pena à perna e ao ombro, que o Pimenta deitou o presente fora. O conde e a senhora não se davam bem: já no tempo do Pimenta, uma ocasião, à mesa, tinham-se pegado de tal modo que ela agarrou do copo e do prato, e esmigalhou-os no chão. E outra qualquer teria feito o mesmo; por que o Sr. conde, quando começava a repisar, a remoer, não se podia aturar. As questões eram sempre por causa de dinheiro. O Tompson velho estava farto de abrir os cordões à bolsa...
- Quem é esse Tompson velho, que nos aparece agora, a esta hora da noite? perguntou Carlos, a seu pesar interessado.
- O Tompson velho é o pai da Sr.ª condessa. A Sr.ª condessa era uma miss Tompson, dos Tompson do Porto... O Sr. Tompson não tem querido ultimamente emprestar nem mais um real ao genro: de sorte que, uma vez, já no tempo do Pimenta também, o Sr. conde, furioso, disse à senhora que ela e o pai se deviam lembrar que eram gente de comercio e que fora ele que fizera dela uma condessa; e com perdão de V. Ex.ª, a senhora condessa ali mesmo à mesa mandou o condado à tábua... Estas coisas não estão no género do Pimenta.
Carlos bebeu um gole de grog. Bailava-lhe nos lábios uma pergunta, mas hesitava. Depois reflectiu na puerilidade de tão rígidos escrúpulos, a respeito duma gente, que ao jantar, diante do escudeiro, quebrava a porcelana, mandava à tábua o título dos antepassados. E perguntou:
- Que diz o Sr. Pimenta da senhora condessa, Baptista? Ela diverte-se?
- Creio que não, meu senhor. Mas a criada de confiança dela, uma escocesa, essa é desobstinada. E não fica bem à senhora condessa ser assim tão intima com ela...
Houve um silêncio no quarto, a chuva cantou mais forte nos vidros.
- Passando a outro assunto, Baptista. Vamos a saber, há quanto tempo, não escrevo eu a madame Rughel?
Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um livro de apontamentos, aproximou-se da luz, encavalou a luneta no nariz, e verificou, com método, estas datas: - «Dia 1 de janeiro, telegrama expedido com felicitações do começo do ano a madame Rughel, Hotel d'Albe, Champs Éliseés, Paris. Dia 3, telegrama recebido de madame Rughel, reciprocando comprimentos, exprimindo amizade, anunciando partida para Hamburgo. Dia 15, carta lançada ao correio, para madame Rughel, Wiliam-Strasse, Hamburgo, Alemagne. Depois - mais nada. De modo que havia já cinco semanas que o menino não escrevia a madame Rughel...
- É necessário escrever amanhã, disse Carlos.
Baptista tomou uma nota.
Depois, entre uma fumaça lânguida, a voz de Carlos ergueu-se de novo na paz dormente do quarto:
- Madame Rughel era muito bonita, não é verdade, Baptista? É a mulher mais bonita que tu tens visto na tua vida!
O velho criado meteu o livro no bolso da casaca, e respondeu, sem hesitar, muito certo de si:
- Madame Rughel era uma senhora de muita vista. Mas a mulher mais linda em que tenho posto os olhos, se o menino dá licença, era aquela senhora do coronel de hussards que vinha ao quarto do hotel em Viena.
Carlos atirou a cigarrete para a salva - e escorregando pela roupa abaixo, todo invadido por uma onda de recordações alegres, exclamou da profundidade do seu conforto, no antigo tom de ênfase boémia dos Paços de Celas.
- O Sr. Baptista não tem gosto nenhum! Madame Rughel era uma ninfa de Rubens, senhor! Madame Rughel tinha o esplendor duma deusa da Renascença, senhor! Madame Rughel devia ter dormido no leito imperial de Carlos Quinto... - Retire-se, senhor!
Baptista entalou mais o couvre-pieds, relanceou pelo quarto um olhar solicito, e, contente da ordem em que as coisas adormeciam, saiu, levando o candeeiro. Carlos não dormia: e não pensava na coronela de hussards, nem em madame Rughel. A figura que no escuro dos cortinados lhe aparecia, num vago dourado que provinha do reflexo de seus cabelos soltos, era a Gouvarinho - a Gouvarinho que não tinha o esplendor duma deusa da Renascença como madame Rughel, nem era a mulher mais linda em que Baptista pusera os seus olhos como a coronela de hussards: mas, com o seu nariz petulante e a sua boca grande, brilhava mais e melhor que todas na imaginação de Carlos - porque ele esperara-a essa noite e ela não tinha aparecido.
Na terça-feira prometida Ega não veio buscar Carlos para se irem gouvarinhar. E foi Carlos que daí a dias, entrando como por acaso no Universal, perguntou rindo ao Ega:
- Então quando nos gouvarinhamos?
Nessa noite, em S. Carlos, num entre-acto dos Huguenotes, Ega apresentou-o ao Sr. conde de Gouvarinho, no corredor das frisas. O conde, muito amável, lembrou logo que já tivera, mais de uma vez, o prazer de passar pela porta de Sta. Olavia, quando ía ver os seus velhos amigos, os Tedins, a Entre-Rios - uma formosa vivenda também. Falaram então do Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para o conde, nada havia, no nosso Portugal, como os campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoável, pois nesses férteis vales nascera e se criara: e falou um momento de Formozelha, onde tinha casa, onde vivia idosa e doente sua mãe, a Sr.ª condessa viúva...
Ega, que afectara beber as palavras do conde, começou então uma controvérsia, sustentando como se se tratasse dos dogmas duma fé, a beleza superior do Minho, «esse paraíso idílico.» O conde sorria: via ali, como ele observou a Carlos, batendo amavelmente no ombro do Ega, a rivalidade das duas províncias. Emulação fecunda, de resto, no seu pensar...
- Aí está, por exemplo, dizia ele, o ciúme entre Lisboa e Porto. É uma verdadeira dualidade como a que existe entre a Hungria e a Áustria... Ouço por ali lamenta-la. Pois bem, eu, se fosse poder, instiga-la-ia, acirra-la-ia, se V. Exas. me permitem a expressão. Nesta luta das duas grandes cidades do reino, podem outros ver despeitos mesquinhos, eu vejo elementos de progresso. Vejo civilização!
Proferia estas coisas como do alto dum pedestal, muito acima dos homens, deixando-as providamente cair dos tesouros do seu intelecto à maneira de dons inestimáveis. A voz era lenta e rotunda; os cristais da sua luneta de ouro faiscavam vistosamente; e no bigode encerado, na pêra curta, havia ao mesmo tempo alguma coisa de doutoral e de casquilho.
Carlos dizia: «Tem V. Ex.ª razão, Sr. conde.» O Ega dizia: «Você vê essas coisas de alto, Gouvarinho». Ele cruzara as mãos por baixo das abas da casaca - e estavam todos três muito sérios.
Depois o conde abriu a porta da frisa, Ega desapareceu. E daí a um momento, Carlos, apresentado como «visinho de camarote», recebia da Sr.ª condessa um grande shake-hand, em que tilintaram uma infinidade de aros de prata e de blangles índios sobre a sua luva preta de doze botões.
A Sr.ª condessa, um pouco corada, ligeiramente nervosa, lembrou logo a Carlos que o vira no verão passado em Paris, no salão baixo do Café Inglês: até por sinal estava nessa noite um velho abominável com duas garrafas vazias diante de si, e contando alto, para uma mesa defronte, histórias horrorosas do Sr. Gambeta: um sujeito ao lado protestou; o outro não fez caso, era o velho duque de Gramont. O conde passou os dedos lentos pela testa, com um ar quasi angustioso: não se lembrava de nada disso! Queixou-se logo amargamente da sua falta de memória. Uma coisa tão indispensável em quem segue a vida publica, a memória! e ele desgraçadamente, não possuía nem um átomo. Por exemplo, lera (como todo o homem devia ler) os vinte volumes da História Universal de César Cantu; lera-os com atenção, fechado no seu gabinete, absorvendo-se na obra. Pois, senhores, escapara-lhe tudo - e ali estava sem saber história!
- V. Ex.ª tem boa memória, Sr. Maia?
- Tenho uma razoável memória.
- Inapreciável bem de que goza!
A condessa voltara-se para a plateia, coberta com o leque, com o ar constrangido, como se aquelas palavras pueris do marido a diminuíssem, a desfeiassem... Carlos então falou da ópera. Que belo escudeiro huguenote fazia o Pandoli! A condessa não aturava o Corceli, o tenor, com as suas notas ásperas e aquela obesidade que o tornava bufo. Mas também (lembrava Carlos) onde havia hoje tenores? Passara essa grande raça dos Marios, homens de beleza, de inspiração, realizando os grandes tipos líricos. Nicolini era já uma degeneração... Isto fez lembrar a Pati. A condessa adorava-a, e a sua graça de fada, e a sua voz semelhante a uma chuva de ouro!...
Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil coisas; em certos movimentos, o cabelo crespamente ondeado, tomava tons de oiro vermelho: e em torno dela errava, no calor do gás e da enchente, um aroma exagerado de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha de rendas negras, à Valois, afogando-lhe o pescoço onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arzinho de provocação e de ataque. De pé, calado, grave, o conde batia a coxa com a claque fechada.
O quarto acto começara, Carlos ergueu-se; e os seus olhos encontraram defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binóculo, observando-o, mirando a condessa e falando a Rachel, que sorria, movia o leque com um ar dolente e vago.
- Nós recebemos ás terças feiras, disse a condessa a Carlos - e o resto da frase perdeu-se num murmúrio e num sorriso.
O conde acompanhou-o fora, ao corredor.
- É sempre uma honra para mim, dizia ele caminhando ao lado de Carlos, fazer o conhecimento das pessoas que valem alguma coisa neste país... V. Ex.ª é desse número, bem raro infelizmente.
Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta e rotunda:
- Não o lisongeio. Eu nunca lisongeio... Mas a V. Ex.ª podem-se dizer estas coisas, porque pertence à elite: a desgraça de Portugal é a falta de gente. Isto é um país sem pessoal. Quer-se um bispo? Não há um bispo. Quer-se um economista? Não há um economista. Tudo assim! Veja V. Ex.ª mesmo nas profissões subalternas. Quer-se um bom estofador? Não há um bom estofador...
Um cheio de instrumentos e vozes, dum tom sublime, passando pela porta da frisa entreaberta, cortou-lhe umas ultimas palavras sobre a deficiência dos fotógrafos... Escutou, com a mão no ar:
- É o coro dos punhais, não? Ah vamos a ouvir... Ouve-se sempre isto com proveito. Há filosofia nesta música... É pena que lembre tão vivamente os tempos da intolerância religiosa, mas há ali incontestavelmente filosofia!
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O Aluno (por ele mesmo)
O aluno não copia: compara resultados.O aluno não fala: troca opinões.O aluno não dorme: se concentra.O aluno não se distrai: examina as moscas.O aluno não falta na escola: é solicitado em outros lugares.O aluno não diz besteiras: desabafa.O aluno não masca chiclete: fortalece a mandíbula.O aluno não lê revistas na sala: se informa.O aluno não destrói o colégio: decora a escola segundo seu gosto.
(BRINCADEIRINHA!!!!!!!!)
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