segunda-feira, 30 de março de 2009

O AUTO DA BARCA DO INFERNO (GIL VICENTE)

Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da
sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu
mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste
nome.
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente
auto, se figura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um
rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto
estão, scilicet, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno: os quais
batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um
arrais infernal e um companheiro.
O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva
um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno
ante que o Fidalgo venha.
Diabo — À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré! — Ora venha o carro a
ré!
Companheiro — Feito, feito!
Bem está!
Vai tu muitieramá,
e atesa aquele palanco
e despeja aquele banco,
para a gente que virá.
À barca, à barca, hu-u!
Asinha, que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
louvores a Belzebu!
— Ora, sus! que fazes tu?
Despeja todo esse leito!
Companheiro — Em boa hora! Feito, feito!
Diabo — Abaixa aramá esse cu!
Faze aquela poja lesta e alija aquela driça.
Companheiro — Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!
Diabo — Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
— Ó poderoso dom Anrique, cá vindes vós?... Que cousa é esta?...Vem o
Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:
Fildalgo — Esta barca onde vai ora, que assim está apercebida?
Diabo — Vai para a ilha perdida, e há-de partir logo ess'ora.
Fildalgo — Para lá vai a senhora?
Diabo — Senhor, a vosso serviço.
Fildalgo — Parece-me isso cortiço...
Diabo — Porque a vedes lá de fora.
Fildalgo — Porém, a que terra passais?
Diabo — Para o inferno, senhor.
Fildalgo — Terra é bem sem-sabor.
Diabo — Quê?... E também cá zombais?
Fildalgo — E passageiros achais para tal habitação?
Diabo — Vejo-vos eu em feição para ir ao nosso cais...
Fildalgo — Parece-te a ti assim!...
Diabo — Em que esperas ter guarida?
Fildalgo — Que leixo na outra vida quem reze sempre por mim.
Diabo — Quem reze sempre por ti?!..
Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...
E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarnecer
por que rezam lá por ti?!...
Embarca — ou embarcai...
que haveis de ir à derradeira!
Mandai meter a cadeira,
que assim passou vosso pai.
Fildalgo — Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai?!
Diabo — Vai ou vem! Embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes, assim cá vos contentai.
Pois que já a morte passastes, haveis de passar o rio.
Fildalgo — Não há aqui outro navio?
Diabo — Não, senhor, que este fretastes, e primeiro que expirastes me destes
logo sinal.
Fildalgo — Que sinal foi esse tal?
Diabo — Do que vós vos contentastes.
Fildalgo — A estoutra barca me vou.
Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou!...
(Pardeus, aviado estou!
Cant'a isto é já pior...)
Oue jericocins, salvador!
Cuidam cá que são eu grou?
Anjo — Que quereis?
Fildalgo — Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta
em que navegais.
Anjo — Esta é; que demandais?
Fildalgo — Que me leixeis embarcar.
Sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais.
Anjo — Não se embarca tirania neste batel divinal.
Fildalgo — Não sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria...
Anjo — Para vossa fantasia mui estreita é esta barca.
Fildalgo — Para senhor de tal marca nom há aqui mais cortesia?
Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!
Anjo — Não vindes vós de maneira para entrar neste navio.
Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrará e o rabo caberá e todo vosso
senhorio.
Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria, cuidando na tirania do pobre
povo queixoso.
E porque, de generoso, desprezastes os pequenos, achar-vos-eis tanto
menos quanto mais fostes fumoso.
Diabo — À barca, à barca, senhores!
Oh! que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata e valentes remadores!
Diz, cantando:
Vós me veniredes a la mano,
a la mano me veniredes.
Fildalgo — Ao Inferno, todavia!
Inferno há i para mi?
Oh triste! Enquanto vivi não cuidei que o i havia:
Tive que era fantasia!
Folgava ser adorado, confiei em meu estado e não vi que me perdia.
Venha essa prancha! Veremos esta barca de tristura.
Diabo — Embarque vossa doçura, que cá nos entenderemos...
Tomarês um par de remos, veremos como remais, e, chegando ao nosso
cais, todos bem vos serviremos.
Fildalgo — Esperar-me-ês vós aqui, tornarei à outra vida ver minha dama querida
que se quer matar por mi.
Dia, Que se quer matar por ti?!...
Fildalgo — Isto bem certo o sei eu.
Diabo — Ó namorado sandeu, o maior que nunca vi!...
Fildalgo — Como pod'rá isso ser, que m'escrevia mil dias?
Diabo — Quantas mentiras que lias, e tu... morto de prazer!...
Fildalgo — Para que é escarnecer, quem nom havia mais no bem?
Diabo — Assim vivas tu, amém, como te tinha querer!
Fildalgo — Isto quanto ao que eu conheço...
Diabo — Pois estando tu expirando, se estava ela requebrando com outro de menos
preço.
Fildalgo — Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher.
Diabo — E ela, por não te ver, despenhar-se-á dum cabeço!
Quanto ela hoje rezou, entre seus gritos e gritas, foi dar graças infinitas
quem a desassombrou.
Fildalgo — Cant'a ela, bem chorou!
Diabo — Nom há i choro de alegria?..
Fildalgo — E as lástimas que dizia?
Diabo — Sua mãe lhas ensinou...
Entrai, meu senhor, entrai:
Ei la prancha! Ponde o pé...
Fildalgo — Entremos, pois que assim é.
Diabo — Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai.
Em tanto virá mais gente.
Fildalgo — Ó barca, como és ardente!
Maldito quem em ti vai!
Diz o Diabo ao Moço da cadeira:
Diabo — Nom entras cá! Vai-te d'i!
A cadeira é cá sobeja; cousa que esteve na igreja nom se há-de embarcar
aqui.
Cá lhe darão de marfim, marchetada de dolores, com tais modos de lavores,
que estará fora de si...
À barca, à barca, boa gente,
que queremos dar à vela!
Chegar ela! Chegar ela!
Muitos e de boamente!
Oh! que barca tão valente!
Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:
Onzeneiro — Para onde caminhais?
Diabo — Oh! que má hora venhais, onzeneiro, meu parente!
Como tardastes vós tanto?
Onzeneiro — Mais quisera eu lá tardar...
Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto.
Diabo — Ora mui muito m'espanto nom vos livrar o dinheiro!...
Onzeneiro — Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto...
Diabo — Ora entrai, entrai aqui!
Onzeneiro — Não hei eu i d'embarcar!
Diabo — Oh! que gentil recear, e que cousas para mi!...
Onzeneiro — Ainda agora faleci, leixa-me buscar batel!
Diabo — Pesar de Jam Pimentel!
Porque não irás aqui?...
Onzeneiro — E para onde é a viagem?
Diabo — Para onde tu hás de ir.
Onzeneiro — Havemos logo de partir?
Diabo — Não cures de mais linguagem.
Onzeneiro — Mas para onde é a passagem?
Diabo — Para a infernal comarca.
Onzeneiro — Diz! Nom vou eu tal barca.
Estoutra tem avante
Vai-se à barca do Anjo, e diz:
Hou da barca! Houlá! Hou!
Haveis logo de partir?
Anjo — E onde queres tu ir?
Onzeneiro — Eu para o Paraíso vou.
Anjo — Pois cant'eu mui fora estou de te levar para lá.
Essoutra te levará; vai para quem te enganou!
Onzeneiro — Porquê?
Anjo — Porque esse bolsão tomará todo o navio.
Onzeneiro — Juro a Deus que vai vazio!
Anjo — Não já no teu coração.
Onzeneiro — Lá me fica, de rondão, minha fazenda e alhea.
Anjo — Ó onzena, como és feia e filha de maldição!
Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:
Onzeneiro Houlá! Hou! Demo barqueiro!
Sabês vós no que me fundo?
Quero lá tornar ao mundo
e trazer o meu dinheiro.
que aquele outro marinheiro,
porque me vê vir sem nada,
dá-me tanta borregada
como arrais lá do Barreiro.
Diabo — Entra, entra, e remarás!
Nom percamos mais maré!
Onzeneiro — Todavia...
Diabo — Per força é!
Que te pês, cá entrarás!
Irás servir Satanás, pois que sempre te ajudou.
Onzeneiro — Oh! Triste, quem me cegou?
Diabo — Cal'te, que cá chorarás.
Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando
o barrete:
Onzeneiro — Santa Joana de Valdês!
Cá é vossa senhoria?
Fildalgo — Dá ò demo a cortesia!
Diabo — Ouvis? Falai vós cortês!
Vós, fidalgo, cuidareis
que estais na vossa pousada?
Dar-vos-ei tanta pancada
com um remo que renegueis!
Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:
Parvo — Hou daquesta!
Diabo — Quem é?
Parvo — Eu soo.
É esta a naviarra nossa?
Diabo — De quem?
Parvo — Dos tolos.
Diabo — Vossa.
Entra!
Parvo — De pulo ou de voo?
Hou! Pesar de meu avô!
Soma, vim adoecer e fui má hora morrer, e nela, para mi só.
Diabo — De que morreste?
Parvo — De quê?
Samicas de caganeira.
Diabo — De quê?
Parvo — De caga merdeira!
Má rabugem que te dê!
Diabo — Entra! Põe aqui o pé!
Parvo — Houlá! Nom tombe o zambuco!
Diabo — Entra, tolaço eunuco, que se nos vai a maré!
Parvo — Aguardai, aguardai, houlá!
E onde havemos nós d'ir ter?
Diabo — Ao porto de Lucifer.
Parvo — Ha-á-a...
Diabo — Ó Inferno! Entra cá!
Parvo — Ò Inferno?... Era má...
Hiu! Hiu! Barca do cornudo.
Pêro Vinagre, beiçudo, rachador d'Alverca, huhá!
Sapateiro da Candosa!
Antrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa e há-de parir um sapo chantado no guardanapo!
Neto de cagarrinhosa!
Furta cebolas! Hiu! Hiu!
Excomungado nas erguejas!
Burrela, cornudo sejas!
Toma o pão que te caiu!
A mulher que te fugiu
per'a Ilha da Madeira!
Cornudo atá mangueira,
toma o pão que te caiu!
Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!
Dê-dê! Pica naquela!
Hump! Hump! Caga na vela!
Hio, cabeça de grulha!
Perna de cigarra velha,
caganita de coelha,
pelourinho da Pampulha!
Mija n'agulha, mija n'agulha!
Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz:
Parvo — Hou da barca!
Anjo — Que me queres?
Parvo — Queres-me passar além?
Anjo — Quem és tu?
Parvo — Samica alguém.
Anjo — Tu passarás, se quiseres; porque em todos teus fazeres per malícia nom
erraste.
Tua simpleza t'abaste para gozar dos prazeres.
Espera entanto per i:
veremos se vem alguém,
merecedor de tal bem,
que deva de entrar aqui.
Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel
infernal, e diz:
Sapateiro — Hou da barca!
Diabo — Quem vem i?
Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado?...
Sapateiro — Mandaram-me vir assim...
E para onde é a viagem?
Diabo — Para o lago dos danados.
Sapateiro — Os que morrem confessados onde têm sua passagem?
Diabo — Nom cures de mais linguagem!
Esta é a tua barca, esta!
Sapateiro — Renegaria eu da festa e da puta da barcagem!
Como poderá isso ser, confessado e comungado?!...
Diabo — Tu morreste excomungado:
Nom o quiseste dizer.
Esperavas de viver, calaste dous mil enganos...
Tu roubaste bem trint'anos o povo com teu mester.
Embarca, era má para ti, que há já muito que t'espero!
Sapateiro — Pois digo-te que nom quero!
Diabo — Que te pês, hás de ir, si, si!
Sapateiro — Quantas missas eu ouvi, nom me hão elas de prestar?
Diabo — Ouvir missa, então roubar, é caminho per'aqui.
Sapateiro — E as ofertas que darão?
E as horas dos finados?
Diabo — E os dinheiros mal levados, que foi da satisfação?
Sapateiro — Ah! Nom praza ò cordovão, nem à puta da badana, se é esta boa
traquitana em que se vê Jan Antão!
Ora juro a Deus que é graça!
Vai-se à barca do Anjo, e diz:
Hou da santa caravela, poderês levar-me nela?
Anjo — A carrega t'embaraça.
Sapateiro — Nom há mercê que me Deus faça?
Isto sequer irá.
Anjo — Essa barca que lá está
Leva quem rouba de praça.
Oh! almas embaraçadas!
Sapateiro — Ora eu me maravilho haverdes por grão peguilho quatro forminhas
cagadas que podem bem ir chantadas num cantinho desse leito!
Anjo — Se tu viveras direito,
Elas foram cá escusadas.
Sapateiro — Assim que determinais que vá cozer ò Inferno?
Anjo — Escrito estás no caderno das ementas infernais.
Torna-se à barca dos danados, e diz:
Sapateiro — Hou barqueiros! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo e levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!
Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na
outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de
dançar, dizendo:
Frade — Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã:
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!
Diabo — Que é isso, padre?! Que vai lá?
Frade — Deo gratias! Som cortesão.
Diabo — Sabês também o tordião?
Frade — Porque não? Como ora sei!
Diabo — Pois entrai! Eu tangerei e faremos um serão.
Essa dama é ela vossa?
Frade — Por minha la tenho eu, e sempre a tive de meu,
Diabo — Fizestes bem, que é formosa!
E não vos punham lá grosa no vosso convento santo?
Frade — E eles fazem outro tanto!
Diabo — Que cousa tão preciosa...
Entrai, padre reverendo!
Frade — Para onde levais gente?
Diabo — Para aquele fogo ardente que nom temestes vivendo.
Frade — Juro a Deus que nom t'entendo!
E este hábito não me vai?
Diabo — Gentil padre mundanal, a Belzebu vos encomendo!
Frade — Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesus Cristo, que eu nom posso entender isto!
Eu hei de ser condenado?!...
Um padre tão namorado e tanto dado à virtude?
Assim Deus me dê saúde, que eu estou maravilhado!
Diabo — Não curês de mais detença.
Embarcai e partiremos: tomareis um par de ramos.
Frade — Nom ficou isso n'avença.
Diabo — Pois dada está já a sentença!
Frade — Pardeus! Essa seria ela!
Não vai em tal caravela minha senhora Florença.
Como? Por ser namorado e folgar com uma mulher se há um frade de
perder, com tanto salmo rezado?!...
Diabo — Ora estás bem aviado!
Frade — Mais estás bem corrigido!
Diabo — Devoto padre marido, haveis de ser cá pingado...
Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capelo; e apareceu o casco, e diz o
Frade — Mantenha Deus esta c'oroa!
Diabo — ó padre Frei Capacete!
Cuidei que tínheis barrete...
Frade — Sabê que fui da pessoa!
Esta espada é roloa e este broquel, rolão.
Diabo — Dê Vossa Reverenda lição d'esgrima, que é cousa boa!
Começou o frade a dar lição d'esgrima com a espada e broquel, que eram
d'esgrimir, e diz desta maneira:
Frade — Deo gratias! Demos caçada!
Para sempre contra sus!
Um fendente! Ora sus!
Esta é a primeira levada.
Alto! Levantai a espada!
Talho largo, e um revés!
E logo colher os pés,
que todo o al no é nada!
Quando o recolher se tarda
o ferir nom é prudente.
Ora, sus! Mui largamente,
cortai na segunda guarda!
—Guarde-me Deus d'espingarda
mais de homem denodado.
Aqui estou tão bem guardado
como a palha n'albarda.
Saio com meia espada...
Hou lá! Guardai as queixadas!
Diabo — Oh que valentes levadas!
Frade — Ainda isto nom é nada...
Demos outra vez caçada!
Contra sus e um fendente,
e, cortando largamente,
eis aqui sexta feitada.
Daqui saio com uma guia
e um revés da primeira:
esta é a quinta verdadeira.
— Oh! quantos daqui feria!...
Padre que tal aprendia
no Inferno há de haver pingos?!...
Ah! Nom praza a São Domingos
com tanta descortesia!
Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:
Frade — Vamos à barca da Glória!
Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo
desta maneira:
Frade — Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã;
rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã.
Huhá!
Deo gratias! Há lugar cá
para minha reverenda?
E a senhora Florença
polo meu entrará lá!
Parvo — Andar, muitieramá!
Furtaste esse trinchão, frade?
Frade — Senhora, dá-me à vontade que este feito mal está.
Vamos onde havemos d'ir!
Não praza a Deus coa a ribeira!
Eu não vejo aqui maneira
senão, enfim, concrudir.
Diabo — Haveis, padre, de vir.
Frade — Agasalhai-me lá Florença, e compra-se esta sentença: ordenemos de
partir.
Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira, per nome Brízida
Vaz, a qual chegando à barca infernal, diz desta maneira:
Brízida — Hou lá da barca, hou lá!
Diabo — Quem chama?
Brízida — Brízida Vaz.
Diabo — E aguarda-me, rapaz?
Como nom vem ela já?
Companheiro — Diz que nom há-de vir cá sem Joana de Valdês.
Diabo — Entrai vós, e remarês.
Brízida — Nom quero eu entrar lá.
Diabo — Que saboroso arrecear!
Brízida — No é essa barca que eu cato.
Diabo — E trazês vós muito fato?
Brízida — O que me convém levar.
Día. Que é o que havês d'embarcar?
Brízida — Seiscentos virgos postiços e três arcas de feitiços que nom podem mais
levar.
Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assim em jóias de vestir,
guarda-roupa d'encobrir,
enfim - casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d'encobrir.
A mor carrega que é:
essas moças que vendia.
Daquestra mercadoria
trago eu muita, à bofé!
Diabo — Ora ponde aqui o pé...
Brízida — Hui! E eu vou para o Paraíso!
Diabo — E quem te dixe a ti isso?
Brízida — Lá hei de ir desta maré.
Eu sô uma martela tal!...
Açoutes tenho levados
e tormentos suportados
que ninguém me foi igual.
Se fosse ò fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.
Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:
Barqueiro mano, meus olhos, prancha a Brízida Vaz.
Anjo:— Eu não sei quem te cá traz...
Brízida —Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,
a que criava as meninas
para os cônegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perninhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.
Santa Úrsula nom converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas polo meu
que nenhuma se perdeu.
E prouve Àquele do Céu
que todas acharam dono.
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponto se me perdeu!
Anjo — Ora vai lá embarcar, não estás importunando.
Brízida — Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar.
Anjo — Não cures de importunar, que não podes vir aqui.
Brízida — E que má hora eu servi, pois não me há de aproveitar!...
Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:
Brízida — Hou barqueiros da má hora, que é da prancha, que eis me vou?
E já há muito que aqui estou, e pareço mal cá de fora.
Diabo — Ora entrai, minha senhora, e sereis bem recebida; se vivestes santa vida,
vós o sentirês agora...
Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às
costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:
Judeu — Que vai cá? Hou marinheiro!
Diabo — Oh! que má hora vieste!...
Judeu — Cuj'é esta barca que preste?
Diabo — Esta barca é do barqueiro.
Judeu.— Passai-me por meu dinheiro.
Diabo — E o bode há cá de vir?
Judeu — Pois também o bode há-de vir.
Diabo — Que escusado passageiro!
Judeu — Sem bode, como irei lá?
Diabo — Nem eu nom passo cabrões.
Judeu — Eis aqui quatro tostões e mais se vos pagará.
Por vida do Semifará que me passeis o cabrão!
Querês mais outro tostão?
Diabo — Nem tu nom hás de vir cá.
Judeu — Porque nom irá o judeu onde vai Brízida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
Diabo — E o fidalgo, quem lhe deu...
Judeu — O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel, castigai este sandeu!
Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!
Parvo — Furtaste a chiba cabrão?
Parecês-me vós a mim gafanhoto d'Almeirim chacinado em um seirão.
Diabo — Judeu, lá te passarão, porque vão mais despejados.
Parvo — E ele mijou nos finados n'ergueja de São Gião!
E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E aperta o salvador,
e mija na caravela!
Diabo — Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, irês à toa, que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!
Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno,
com sua vara na mão, diz:
Corregedor — Hou da barca!
Diabo — Que quereis?
Corregedor — Está aqui o senhor juiz?
Diabo — Oh amador de perdiz. gentil carrega trazeis!
Corregedor — No meu ar conhecereis que nom é ela do meu jeito.
Diabo — Como vai lá o direito?
Corregedor — Nestes feitos o vereis.
Diabo —Ora, pois, entrai. Veremos que diz i nesse papel...
Corregedor E onde vai o batel?
Diabo — No Inferno vos poeremos.
Corregedor Como? À terra dos demos há-de ir um corregedor?
Diabo — Santo descorregedor, embarcai, e remaremos!
Ora, entrai, pois que viestes!
Corregedor — Non est de regulae juris, não!
Diabo — Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nascestes
para nosso companheiro.
—Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes!
Corregedor — Oh! Renego da viagem e de quem me há-de levar!
Há 'qui meirinho do mar?
Diabo — Não há tal costumagem.
Corregedor — Nom entendo esta barcagem, nem hoc nom potest esse.
Diabo —Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem...
Entrai, entrai, corregedor!
Corregedor —Hou! Videtis qui petatis —Super jure magestatis tem vosso mando
vigor?
Diabo — Quando éreis ouvidor nonne accepistis rapina?
Pois ireis pela bolina onde nossa mercê for...
Oh! que isca esse papel para um fogo que eu sei!
Corregedor — Domine, memento mei!
Diabo — Non es tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel quia Judicastis malitia.
Corregedor — Sempre ego justitia fecit, e bem por nível.
Diabo — E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava?
Corregedor — Isso eu não o tomava eram lá percalços seus.
Nom som pecatus meus, peccavit uxore mea.
Diabo — Et vobis quoque cum ea, não temuistis Deus.
A largo modo adquiristis
sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?
Corregedor — Vós, arrais, nonne legistis que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos, sed aliquid tradidistis...
Diabo —Ora entrai, nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães e vereis os escrivães como estão tão prosperados.
Corregedor — E na terra dos danados estão os Evangelistas?
Diabo — Os mestres das burlas vistas lá estão bem fraguados.
Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal chegou um
Procurador, carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:
Corregedor — Ó senhor Procurador!
Procurador Bejo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz esse arrais? Que diz?
Diabo — Que serês bom remador.
Entrai, bacharel doutor, e ireis dando na bomba.
Procurador — E este barqueiro zomba...
Jogatais de zombador?
Essa gente que aí está para onde a levais?
Diabo — Para as penas infernais.
Procurador — Diz! Nom vou eu para lá!
Outro navio está cá, muito melhor assombrado.
Diabo — Ora estás bem aviado!
Entra, muitieramá!
Corregedor — Confessaste-vos, doutor?
Procurador — Bacharel som. Dou-me à Demo!
Não cuidei que era extremo, nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
Corregedor — Eu mui bem me confessei, mas tudo quanto roubei encobri ao
confessor...
Porque, se o nom tornais,
não vos querem absolver,
e é mui mau de volver
depois que o apanhais.
Diabo — Pois porque nom embarcais?
Procurador — Quia speramus in Deo.
Diabo — Imbarquemini in barco meo...
Para que esperatis mais?
Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:
Corregedor — Ó arrais dos gloriosos, passai-nos neste batel!
Anjo — Oh! pragas para papel, para as almas odiosos!
Como vindes preciosos, sendo filhos da ciência!
Corregedor — Oh! habeatis clemência e passai-nos como vossos!
Parvo — Hou, homens dos breviairos, rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum
e mijais nos campanairos!
Corregedor — Oh! não nos sejais contrários, pois nom temos outra ponte!
Parvo — Belequinis ubi sunt?
Ego latinus macairos.
Anjo — A justiça divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados
nesse batel infernal.
Corregedor — Oh! nom praza a São Marçal! coa ribeira, nem co rio!
Cuidam lá que é desvario haver cá tamanho mal!
Procurador — Que ribeira é esta tal!
Parvo — Parecês-me vós a mi como cagado nebri, mandado no Sardoal.
Embarquetis in zambuquis!
Corregedor — Venha a negra prancha cá!
Vamos ver este segredo.
Procurador — Diz um texto do Degredo...
Diabo — Entrai, que cá se dirá!
E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a
Brízida Vaz, porque a conhecia:
Corregedor — Oh! esteis muitieramá, senhora Brízida Vaz!
Brízida — Já sequer estou em paz, que não me leixáveis lá.
Cada hora sentenciada:
«Justiça que manda fazer....»
Corregedor — E vós... tornar a tecer e urdir outra meada.
Brízida — Dize de, juiz d'alçada: vem lá Pêro de Lisboa?
Levá-lo-emos à toa e irá nesta barcada.
Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos malaventurados,
disse o Arrais, tanto que chegou:
Diabo — Venhais embora, enforcado!
Que diz lá Garcia Moniz?
Enforcado — Eu te direi que ele diz: que fui bem-aventurado em morrer
dependurado como o tordo na buiz, e diz que os feitos que eu fiz me fazem
canonizado.
Diabo — Entra cá, governarás até as portas do Inferno.
Enforcado — Nom é essa a nau que eu governo.
Diabo — Mando-te eu que aqui irás.
Enforcado — Oh! nom praza a Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás...
E disse que a Deus prouvera
que fora ele o enforcado;
e que fosse Deus louvado
que em bo'hora eu cá nascera;
e que o Senhor m'escolhera;
e por bem vi beleguins.
E com isto mil latins,
mui lindos, feitos de cera.
E, no passo derradeiro,
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro;
nem guardião do moesteiro
nom tinha tão santa gente
como Afonso Valente
que é agora carcereiro.
Diabo — Dava-te consolação isso, ou algum esforço?
Enforcado — Com o baraço no pescoço, mui mal presta a pregação...
E ele leva a devoção que há-de tornar a juntar...
Mas quem há-de estar no ar avorrece-lhe o sermão.
Diabo — Entra, entra no batel, que ao Inferno hás de ir!
Enforcado — O Moniz há-de mentir?
Disse-me que com São Miguel
jantaria pão e mel
tanto que fosse enforcado.
Ora, já passei meu fado,
e já feito é o burel.
Agora não sei que é isso:
não me falou em ribeira,
nem barqueiro, nem barqueira,
senão - logo ò Paraíso.
Isto muito em seu siso.
e era santo o meu baraço...
Eu não sei que aqui faço:
que é desta glória improviso?
Diabo — Falou-te no Purgatório?
Enforcado — Disse que era o Limoeiro, e ora por ele o salteiro e o pregão vitatório;
e que era mui notório que àqueles disciplinados eram horas dos finados e missas de
São Gregório.
Diabo — Quero-te desenganar: se o que disse tomaras, certo é que te salvaras.
Não o quiseste tomar...
— Alto! Todos a tirar, que está em seco o batel!
— Saí vós, Frei Babriel!
Ajudai ali a botar!
Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de
Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram em
poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assim morrem
têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os
Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assim
cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:
Cavaleiros —À barca, à barca segura, barca bem guarnecida, à barca, à barca da
vida!
Senhores que trabalhais
pela vida transitória,
memória , por Deus, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
Barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Vigiai-vos, pecadores,
que, depois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!
E passando per diante da proa do batel dos danados assim cantando, com
suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:
Diabo — Cavaleiros, vós passais e nom perguntais onde is?
1º CAVALEIRO — Vós, Satanás, presumis?
Atentai com quem falais!
2º CAVALEIRO — Vós que nos demandais?
Sequer conhecermos bem: morremos nas Partes d'Além, e não queirais
saber mais.
Diabo — Entrai cá! Que cousa é essa?
Eu nom posso entender isto!
Cavaleiros —Quem morre por Jesus Cristo não vai em tal barca como essa!
Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e,
tanto que chegam, diz o Anjo:
Anjo — Ó cavaleiros de Deus, a vós estou esperando, que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo mal, mártires da Santa Igreja, que quem morre em tal
peleja merece paz eternal.
E assim embarcam.

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