sábado, 4 de abril de 2009

A HORA DA ESTRELA (CLARICE LISPECTOR)

A HORA DA ESTRELA Clarice Lispector
A Hora da Estrela
Editora: Francisco Alves
Correção: Doralice
APRESENTAÇÃO
Escrever estrelas (ora, direis)
Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a
sua produção literária. Em alguns, parecia se defender
do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena,
ao ver recusadas as histórias que mandava para um
jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma
"contava os fatos necessários a uma história", nenhuma
relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta,
que poderia tornar mais "atraente" o seu texto se
usasse, "por exemplo, algumas das coisas que emolduram
uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem".
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora
difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido,
ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: "Tem
gente que cose para fora, eu coso para dentro". Ela se
afastou dos "escritores que por opção e engajamento
defendem valores morais, políticos e sociais, outros
cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de
exaltar valores, geralmente impostos por poderes
políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao
escritor", em nome de uma outra forma de questionar a
realidade e nela intervir, através da literatura.
Talvez sem o saber, Clarice estava optando por um tipo
de escrita característica do escritor moderno, para
quem, no dizer do crítico francês Roland Barthes,
escrever é "fazer-se o centro do processo de palavra,
é efetuar a escritura afetando- se a si próprio, é
fazer coincidir a ação e a afeição (...)".
Por esta via, formula-se uma outra qualidade de
experiência
envolvida na escrita, uma nova perspectiva pela qual
a linguagem é concebida: mais importante do que
relatar um fato, será praticar o autoconhecimento e o
alargamento do conhecimento do mundo através do
exercício da linguagem.
A hora da estrela leva esta proposta às últimas
conseqüências e por isso a sua leitura torna-se tão
instigante. É certo que aqui reencontramos a agudeza
na investigação da natureza e psicologia humanas e o
gosto pela minúcia, patente no trato dado à palavra,
tão peculiares a Clarice Lispector. Mas se lermos o
livro como hora e vez, inserindo-o no conjunto de sua
obra, constataremos que existe algo de novo para além
do insólito prefácio, em forma de dedicatória, da
frouxidão do enredo, da mescla de linguagem sutil com
um tom desnudo e cru ou, ainda, da intimidade com que
o choque social é apresentado. É que aqui a Autora
aborda de frente o embate entre o escritor moderno, ou
melhor, do escritor brasileiro moderno, e a condição
indigente da população brasileira.
Isto sem deixar de lado - afinal de contas, traz a
assinatura de Clarice Lispector - a reflexão sobre a
mulher.
A discussão se arma a partir de estórias que se
entrecruzam, como num acorde musical: a da vida de
Macabéa, imigrante nordestina que vive desajustada no
Rio de Janeiro; a do Autor do livro que, embora sem
rosto definido, se dá a conhecer nos comentários que
faz; e ainda a estória do próprio ato de escrever. Em
verdade, esta última estória promove o grande elo
entre todas. Escrever o livro, escrever Macabéa e,
sobretudo, escrever a si mesmo, eis o grande desafio.
Dessa proposta cria a dramaticidade da narrativa, pois
a escrita envolve múltiplas e complexas relações:
entre escritor e seu texto, entre escritor e seu
público, entre escritor e esta personagem tão distante
de seu universo. A linguagem, moeda de comunicação
entre os homens, ganha foros de personagem. E
personagem em crise. Emergem indagações: a palavra que
se usa expressa o que se é verdadeiramente? é a
linguagem que funda a realidade? a palavra distancia
ou aproxima pessoas? dispor da palavra é um dom ou uma
maldição?
que palavra cabe ao artista contemporâneo? que palavra
se adequa ao escritor terceiromundista para falar de
um Brasil miserável? que papel se espera do artista?
Assim posto, o enredo, fugaz em aparência, revela
algumas de suas linhas de sustentação. Está em jogo a
linguagem - seu poder de conhecimento, de comunicação
e de convencimento - e, com ela, debatem-se a
existência humana e os laços sociais. O patente
isolamento das pessoas parece conduzir a uma reflexão
sobre a condição do ser humano, agravada por um tipo
de organização social que segrega os indivíduos entre
si. E o artista constata este exílio do homem na
própria terra, mas não tem respostas prontas que o
justifiquem. Esta inquietação o move, faz com que
escreva e tente descobrir na escrita a sua própria
identidade e a sua própria humanidade, cara a cara com
as de uma outra qualquer pessoa. Em A hora da estrela
este empreendimento assume uma ousadia e uma
profundidade inusitadas. O escritor solta as amarras e
vai até o fundo do poço: as origens do ser e as
contradições da sociedade em que vive. Para tal,
tomando por base a linguagem, ele se dispõe a três
tipos de abordagem: filosófica, social e estética.
Pela perspectiva filosófica a os limites e alcances do
conhecimento o mundo me diante á palavra e a
consciência, através das quais o ser humano se
distingue dos outros seres pela perspectiva social,
investiga os impasses criados pela separação dos
indivíduos em diferentes grupos, dando destaque à
inserção do escritor e do nordestino na sociedade
brasileira; pela perspectiva estética, sonda o gesto
criador e o trabalho na busca da expressão que
inaugure uma apreensão original do real. Os três
aspectos, é claro, apresentam-se de forma imbricada no
livro.
Pelo ângulo filosófico, a evidência de que as origens
do ser se perdem no tempo e de que é impossível voltar
à época em que "as coisas acontecem antes de
acontecer", leva o indivíduo a um estado de
perplexidade. Ao afirmar que "Tudo no mundo começou
com um sim", o narrador revela que sabe que as coisas
se criam por um ato de vontade e de afirmação.
Sabe, portanto, do modo pelo qual algo passa a
existir. A compreensão deste algo, no entanto, esbarra
naquilo que o antecedeu e que possibilitou a expressão
de uma vontade, possibilitou haver o não e o sim, para
que, então, a escolha se fizesse. Mais importante do
que o modo pelo qual algo que não existia ganha
existência, há o problema fundamental da origem, do
começo de tudo, que se situa em uma ordem temporal
inapreensível pelo homem: "Sempre houve. Não sei o
quê, mas sei que o universo jamais começou."
Assim, a pessoa se faz intermináveis perguntas e
vive uma série de faltas. A única "verdade"
indiscutível são as existências individuais. Intui,
por certo, a identificação de todos em uma unidade
("Todos nós somos um"), mas a unificação se mostra
principalmente pela carência ("e quem não tem pobreza
de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe
faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a quem
falte o delicado essencial"). Fica apenas a
constatação de que cada ser é um fragmento ou parte de
algo. Daí projetar-se, como sentido último da
realidade, a realidade que sempre está faltando. Mais
dolorosamente ainda, existe a consciência de cada um,
advertindo sobre este vazio, e o empenho em transpôlo.
A consciência aflora como atributo humano
paradoxal: dá instrumentos para se tentar responder a
essas indagações, possibilita que se busque o sentido
da vida e também desponta como fonte de dúvidas,
assinalando a ruptura de cada ser individual com um
modo de existência originário, em que tudo era um todo
cheio de harmonia. A consciência é condição de
liberdade e, simultaneamente, aprisionamento.
Esta nostalgia de uma integração total com o Cosmos
confere uma certa tragicidade ao projeto do narrador.
Pois ao mesmo tempo em que sabe que é um ser
independente e gosta de sê-lo, anseia por uma
identificação completa com o outro, por uma
comunicação direta, sem obstáculos, o que
acabaria anulando a sua individualidade, a sua
autonomia.
A vivência de culpa, como se houvesse um erro
fundamental a ser sanado, desponta desde o primeiro
subtítulo
do livro - "A culpa é minha" - e sempre retorna. É
ela um dos sintomas deste desgarramento do homem no
mundo que, vendo cerradas as portas de acesso à
unidade originária, vai investigar, solitário, a
dinâmica de sua existência individual. A escolha de
Macabéa, anônima, "incompetente para a vida", integra
essa determinação, que inclui a busca de regressão ao
inumano ("Não se trata apenas de narrativa, é antes de
tudo vida primária que respira, respira, respira") e a
expiação de uma possível culpa.
O narrador, perpassado por toda sorte de indagações
sobre o ser e o existir, atormentado pela incompletude
e pela dualidade da natureza humana para as quais as
respostas são precárias, converte a busca em sua única
certeza. Daí decorrem pelo menos dois movimentos
centrais da narrativa.
Primeiro, como toda busca e toda pergunta são busca
de algo e pergunta para alguém, o narrador, para
saber, tem de desdobrar-se, tem de dialogar. Aquilo
que, em uma situação comunicativa banal, passa
despercebido projeta-se para o narrador como condição
essencial do ser: apreender a si mesmo inclui o
confronto com o outro.
Ao mesmo tempo, essa projeção traz implícito o
retorno para si mesmo, quando se tenta unificar em um
único sujeito individual os elementos que estão
presentes nos outros seres do Universo.
Entre estes dois movimentos há uma tensão permanente
no interior da obra. O narrador mantém com seu
interlocutor (seja ele Deus, o leitor ou Macabéa) uma
postura ambivalente de identificação e afastamento.
Enquanto artista, aproxima-se de Deus, ambos
criadores, e, ao fazê-lo, de cena forma humaniza-O e
diviniza a si mesmo. Ao mesmo tempo, no entanto, Deus
permanece enquanto figura abstrata, dominadora que
corporifica a idéia de totalidade e nisto constitui um
ente demoníaco, diante do qual o homem, condenado a se
expressar em palavras e fadado a morrer, se apequena (
" Esse vosso Deus que nos mandou inventar"). O leitor
ora é alguém com quem se solidariza, mesmo que na dor
ou desamparo, ora é
alguém de quem quer distância. E Macabéa, se é
nordestina como ele, dele se afasta pelo abismo social
que os separa.
Em meio à tensão entre homem e mundo é que surge o
debate em torno da palavra. Sendo o narrador um
escritor, o diálogo será mediado pela palavra. Só que,
tal como a consciência, a palavra ú faca de dois
gumes, pois ao mesmo tempo em que constitui um
instrumento de aproximação há o risco de a palavra do
artista "abusar de seu poder" e aniquilar a palavra de
Macabéa. Disso resultaria o fracasso dessa experiência
ficcional, o que, no caso, significaria o fracasso do
seu projeto de escrever enquanto projeto existencial.
Por tudo isso, A hora da estrela acha-se mergulhado no
desassossego da ausência de sentido de tudo e de
todos. É um livro de caça. O narrador-escritor está
diante da morte de Deus enquanto horizonte de sentido
no homem e para o homem e, ao mesmo tempo, padece da
figura poderosa do Criador. Vai ele, então, vasculhar
a sua interioridade que, no entanto, sempre lhe
escapa. Vai ele indagar o sentido da existência de
Macabéa e sua tosca manifestação de vida. Nesta
verdadeira viagem põe a nu a sua imagem de escritor e
denuncia a mentira de uma palavra transparente,
"verdadeira", usada como forma de comunicação entre os
homens e do homem consigo mesmo. Essa trajetória
aproxima Clarice Lispector de outros escritores
modernos, como Fernando Pessoa, que colocaram sob
suspeita a comunicação direta.
A perspectiva social vai assim se definindo. A
reflexão sobre o projeto ficcional em A hora da
estrela será o meio pelo qual denuncia as máscaras
sociais que encobrem a crise fundamental do indivíduo,
alienado de si em rígidos papéis sociais. Escrever o
livro é forma de autoconhecimento ("Como que estou
escrevendo na hora mesma em que sou lido"), levado às
últimas conseqüências quando elege como heroína alguém
tão inexpressivo como Macabéa. Escrever implica em
desnudar-se e aceitar a dor envolvida neste processo;
escrever Macabéa significa enfrentar o desamparo na
palavra que
tenta ajustar-se à essência da natureza do ser que
constrói na forma de personagem.
O narrador-escritor coloca desde o início o seu
drama ao afirmar: "sou meu desconhecido". Para
responder a esta falta de sentido põe à mostra a sua
condição de artista. Desmistifica o seu lugar de
pessoa eleita,
"Antecedentes meus do escrever? sou um homem que tem
mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de
mim de algum modo um desonesto."
ironiza a dificuldade de inserção do escritor na
sociedade,
"Sim, não tenho classe social, marginalizado que
sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a
média com desconfiança de que eu possa desequilibrála,
a classe baixa nunca vem a mim,"
desmascara o preconceito contra a escritora mulher,
"Aliás - descubro eu agora - também eu não faço a
menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria.
Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque
escritora mulher pode lacrimejar piegas: '
e põe em cheque até mesmo a importância de seu
trabalho diante da manifestação de vida:
"(Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo)".
A ironia empregada pelo narrador nos leva, no
entanto, a um outro aspecto, que a existência mesma do
livro confirma: o crédito atribuído à ficção como via
de acesso à compreensão do mundo. Outras passagens do
livro também mostram que existe um outro modo de
narrar, mais difícil, por certo, mas que permite
provocar um novo olhar sobre a vida.
" O seu método de trabalho configura-se como um
verdadeiro ritual de iniciação ("Estou esquentando o
corpo para iniciar, esfregando as mãos uma na outra
para ter coragem"), que consiste em eliminar o
supérfluo porque só assim poderá captar "as fracas
aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra
ela". A sua atitude diante de Macabéa tem continuidade
na atitude diante da linguagem. Para falar da moça
terá de "não fazer a barba durante dias e adquirir
olheiras escuras por dormir pouco", vestir-se "com
roupa velha rasgada" tudo para se no nível da
nordestina". Ao travestir-se não pretende ocultar-se
em disfarce, mas fazer de si um terreno propício para
que a voz e a presença de Macabéa ganhem existência
sem traição, mesmo sabendo que corre o risco de uma
perda de comunicação nos moldes canonizados.
Vê-se, portanto, que o narrador-escritor tece um
paralelo entre uma certa postura física, espiritual e
ética e a postura diante de seu instrumento de
trabalho, a palavra, que "não pode ser enfeitada e
artisticamente vã, tem que ser apenas ela". Para tal,
opõe a palavra sem sentido, alienada ou ilusória, que
ele descarta, e a palavra-expressão, nomeadora: "Mas
ao escrever - que o nome real seja dado às coisas.
Cada coisa é uma palavra".
A hora da estrela consiste em uma verdadeira
peregrinação da escuta e da fala, ao longo da qual o
escritor tenta construir, a partir do limo de uma
pessoa-formiga (Macabéa) e de sua própria pessoagigante-
de-consciência, uma estrela-pessoa e uma
estrela-palavra. Assim, uma pessoa rala e muda é
recolhida pelo olhar arguto de um escritor
desorientado que, conduzido pela palavra e
desconfiando dela, dá uma forma e um destino a si
próprio e à moça nordestina. Essa busca faz com que
fixe duas metas aparentemente contraditórias: a
simplicidade em uma história que se quer "exterior e
explícita, sim, mas que contém segredos" e a
aproximação entre palavra e silêncio.
O narrador-escritor, tal como o poeta francês
Baudelaire vagando pelas ruas de Paris, vã no deserto
da cidade do Rio de Janeiro a decadência do ser humano
através de Macabéa, representante das "milhares de
moças espalhadas por cortiços" que "não notam sequer
que são facilmente substituíveis (...)". Como
Baudelaire, ainda, sente-se atraído por esse mundo
sórdido e precário. O artista será aquele que vê por
detrás das máscaras, que se inclui nessa sociedade
cruel e aniquiladora e que se compraz na denúncia. Os
alvos favoritos serão os leitores, Deus e todo o
ambiente agressivo em que se vive e do qual
normalmente se desvia o olhar. Nessa perambulação
constata que algo poderia ter vingado, mas não
vingou, o que é dito no livro, por duas vezes, de uma
maneira que nos faz lembrar o verso conhecido de
Manuel Bandeira, em seu Pneumotórax:
"Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu
desespero, E agora só queria ter o que eu tivesse sido
e não fui." (p. 36),
"A gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no
passado e só a imaginação maléfica a trazia para o
presente, saudade do que poderia ter sido e não foi
(p. 48).
Na primeira vez, refere-se ao escritor; na segunda,
a Macabéa. Por aí pode-se inferir que essa vivência
não está restrita a uma realidade particular, e sim
coletiva. Com uma perspectiva mais ampla até, porque
tem como pano de fundo o encontro do mundo e seu Deus.
A ousadia do desmascaramento se reflete também na
meticulosidade com que o grotesco e a feiúra de
Macabéa são tratados. O escritor a descreve "de ombros
curvos como os de uma cerzideira", com "o corpo
cariado". Era "uma acaso, um feto jogado na lata de
lixo embrulhado em um jornal".
O interesse pelo feio e pelo grotesco é mais um dado
de ligação desta obra com a tradição da modernidade,
que não trata o feio apenas como elemento c8mico, de
inferioridade moral, mas eleva-o ao plano dos valores
metafísicos. Coisa incompleta e
discordante, o feio afirma o fragmentário da vida.
Macabéa, " matéria orgânica é exemplo concreto da
existência ara o Nada, sobretudo porque expõe, apenas
com maior evidência, uma ausência de sentido que
atinge a todos. O escritor tenta penetrar nessa feiúra
extrema no intuito de recobrar o que ela ainda guarda
de estrela, de idealidade. O grotesco vem exprimir o
encontro violento do divino com o diabólico. O autor
procura "danadamente achar nessa existência pelo menos
um topázio de esplendor"(grifo nosso), algum brilho
que irá avivar o contraste, e insuficiência do real.
Macabéa, em tudo e por tudo, é o oposto do herói
épico. Sua trajetória e vida aponta para a
inviabilidade dos grandes feitos na sociedade moderna.
Retomando um conceito do crítico alemão Walter
Benjamin, pode-se afirmar que ela sequer teve uma
experiência de vida que a memória um dia pudesse ou
soubesse resgatar. No máximo um canto de galo faz com
que só lembre da terra da infância, mas este também é
um território espúrio. Proveniente de um meio rude,
órfã de pai e mãe, criada a pancadas pela tia, Macabéa
não teve propriamente uma história pessoal. Felicidade
para ela é um conceito oco. De índole passiva, tornase
presa fácil dos mitos e produtos da indústria
cultural. Admira as grandes estrelas do cinema e
sente-se fascinada pelos anúncios publicitários. As
notícias descosidas da Rádio Relógio integram este
contexto alienante, dentro do qual o cotidiano se faz
em um tempo meramente físico, desprovido de uma ação
subjetiva que com ele interaja numa proposta de
transformação. Inexiste passado; inexiste projeto
futuro.
O quotidiano de Macabéa confirma, em cada detalhe, a
sua inabilidade e seu despreparo para o enfrentamento
mais elementar diante das dificuldades inerentes à
vida. Pouco habilitada para o trabalho; fracassa
também no amor. A sua única conquista amorosa, o
desajeitado Olimpo, foge-lhe das mãos como água.
Quando já parece esgotada a denúncia de sua
fragilidade, mais um pormenor desponta como se, boneca
animada, Macabéa estimulasse as forças negativas do
mundo, acentuando o seu lugar de vítima, até o
desenlace trágico do atropelamento. A estória de
Macabéa se resume à sobrevivência quase inumana, pois,
para tudo o que se sente e deseja, não dispõe de
palavras para expressar.
Assim; o testemunho mais veemente de sua falta de
posse sobre si mesma e sobre o mundo é a maneira como
lida com a palavra. Ou ela se priva da palavra e
permanece em um silêncio que não é opção, mas maneira
precária de ser (em oposição ao silêncio enquanto
momento de linguagem, de que fala Sartre); ou ela fala
em dissonância. Sempre se expressa inadequadamente ou
mostra interesse por palavras e conceitos reveladores
de sua condição existencial e social mas que,
descontextualizados, não a levam ao autoconhecimento,
e que lhe vale a magia secreta que termos como
designar, mimetismo, efeméride, renda per capita,
conde se somente despertam nela uma curiosidade
infantil? O próprio nome adverte ara um contrasenso,
pois ela em nada se aproxima da índole heróica dos
macabeus, povo guerreiro na história dos hebreus.
A perspectiva estética vem a propósito de evitar o
falseamento da realidade. O narrador-escritor escolhe
uma nova maneira de olhar e uma nova postura diante do
narrar, indicadas no livro como distração e flash
fotográfico. Em ambos destaca-se a idéia do relance,
de uma súbita visão que desarma, permitindo que se
apreenda algo que resiste a ser descoberto, As
analogias entre palavra e sonho, pedra e silêncio vão
na mesma direção.
Os sonhos deixam fluir "a penumbra atormentada" -
atormentada porque toca na verdade, que "é sempre um
contato interior e inexplicável". A aventura paradoxal
dessa ficção consiste em pôr às claras algo que se
caracteriza pela obscuridade. Para conseguir a
integração entre palavra e sentido trata a primeira
como um corpo a ser trabalhado e põe à frente o seu
próprio corpo a captar os sinais ocultos do ser: "Eu
não sou um intelectual escrevo com o corpo"".
Esta solidificação dos fatos se faz por uma leitura da
história do Nordeste sem identidade em Macabéa è pela
articulação entre sua obra e a história literária
brasileira. Abdica de ser modernoso, satiriza a
"história com começo, meio e gran finale seguido de
silêncio e de chuva caindo", estabelece um diálogo com
a literatura de cordel, em que o Nordeste se fala, e a
literatura que fala o Nordeste.
Por este último confronto, escolhe o nordestino que
mudou de espaço, desenraizou-se, perdeu o respaldo de
seu grupo, bloco estigmatizado e mudo na vida da
grande metr6pole. Comovido, o narrador se desvincula
do padrão de interpretação "realista", deixando vazar
a sua ternura e seu desespero por suas personagens
nordestinas, Macabéa e Olimpo. Reescreve, assim, a
famosa frase de Euclides da Cunha - "O sertanejo é,
antes de tudo, um forte" - para "O sertanejo é antes
de tudo um paciente. Eu o perdão". Se o interesse pela
figura do nordestino se mantém, ela exige, no entanto,
uma nova dicção: a da palavra-pedra, da linhagem do
poeta pernambucano João Cabral de Mello Neto. A
"palavra tem que parecer com a palavra", pois o
escritor se apaixonou "por fatos sem literatura -
fatos são pedras duras(...)". Como para Cabral, há um
aprendizado com a pedra, uma adesão à dureza dos
objetos que serve para restituir a natureza própria
das coisas e chamar a atenção para o processo de
nomeação.
O leitor é levado a apreender as coisas por dentro e
o narrador, tentando traduzi-las assim, chega ao
paradoxo de converter o silêncio em seu alvo-limite,
pois seria a forma mais direta e concreta de atingir a
plenitude do sentido das coisas: o silêncio
neutralizaria os ruídos que impedem uma visão mais
autêntica do fatos. O silêncio assusta Macabéa porque
nele há a "iminência da palavra fatal", pode
desencadear o contato com o mistério e despertar para
um modo diferente de existência. Assim como o murmúrio
e a reza, o silêncio desloca o homem do esquecimento
de si próprio e faz com que viva o "oco da alma", O
silêncio provoca a angústia de se descobrir como
simples estar-no-mundo, entregue a si mesmo,
desamparado da firmeza que o senso comum lhe oferece.
O silêncio constitui a manifestação extremada da
linguagem esvaziada, mas que emite novas
significações.
Como desdobramento da relação entre palavra e
silêncio articula-se uma outra, entre palavra e
música. A referência à música impregna todo o texto,
pontuando-o de fio a pavio. Isso mesmo: sublinhando o
seu fio, a sua tessitura; marcando-lhe o alvo, limite,
ponto de explosão.
Ela está presente desde o prefácio, ao qual,
terminada a leitura, somos impelidos a voltar para
melhor entender a relação que mantém com a narrativa
como um todo, a significação da música e outras
questões relativas à proposta ficcional do livro.
"A intrigante Dedicatória do Autor (Na verdade
Clarice Lispector) nos apresenta um ser duplo. Uma das
faces, externa, masculina neutra, sugere uma categoria
ou função; a outra face, mal escondida nos parênteses,
é a de Clarice Lispector, pessoa individualizada. Ao
colocar entre ambas a expressão "na verdade" , somos
tentados a confrontar as duas imagem. Mas este ser não
pode ser visto como um ou outro lado. É fruto da
articulação de ambos. Este ser múltiplo chama a
atenção para a situação da ficção enquanto jogo de
máscaras, onde o foco irradiador de verdade é posto
sob suspeita e a própria idéia de verdade aflora como
ponto de reflexão. Logo se percebe que há uma proposta
lúdica, cabendo-nos aceitar o jogo de dissimulação
inerente à ficção. Nesta, a verdade não está em um ou
outro lugar, a começar pela autoria do livro. Para
tudo haverá uma gama bem grande de opções. Se uma
verdade existe, ela se dá na multiplicidade de
versões que um fato, estória ou pessoa podem fazer
evocar. A ficção é este jogo. Na literatura, jogo
feito com linguagem.
Esta observação se enriquece quando contextualizada,
Trata-se da dedicatória do livro, lugar reservado à
expressão da afetividade, ante-sala do texto, em que
se estabelece um diálogo entre aquele que oferta e
aquele que recebe o livro.
O autor começa chamando a obra de "esta coisa aí"
parece, o que parece indicar uma tentativa de
afastamento entre ele e a obra realizada, com relação
à qual estaria criando um distanciamento ácido. Esta
interpretação se choca, entretanto, com o gesto de
dedicar e, sobretudo, com os destinatários, "o antigo
Schumann e sua doce Clara que hoje são ossos, ai de
nós". Nota-se o lamento diante da morte física daquele
músico e de sua esposa, apenas redimida pela
continuidade da obra que deixou, mas que não deixa de
existir enquanto fato.
Em seguida o verbo dedicar transforma-se em dedicarse,
provocando uma mudança de sentido, pois confere à
ação uma dimensão temporal ininterrupta, reavivando o
sentido religioso que há em dedicar-se, o empenho de
continuidade, de ligação profunda, para a qual a
música desempenha um papel fundamental. Opera-se um
trânsito do eu para consigo mesmo, cuja trilha
consiste no contato com a interioridade e a
anterioridade.
A forma de expressar tanto a interioridade física
(sangue, ossos) quanto a imaginaria (gnomos, anões
etc.) recobre um rico campo simbólico. A dimensão
imaginária configura-se através de entes da mitologia:
os gnomos, pequenos gênios que, para o Talmud e a
Cabala, presidem a Terra dos tesouros; os anões que,
em versão da tradição popular germâmica, surgiram do
sangue e dos ossos de um gigante e, peritos no
trabalho de forja, conhecem o futuro; as sílfides,
gênios do ar; e as ninfas, que conhecem e dominam a
natureza. Percebe-se, pois, que o escritor dedica-se
ao culto de figuras lendárias identificadas entre si
pela força vital.
A interioridade física vem representada por partes
do corpo que assinalam o confronto entre vida (sangue)
e morte (ossos), traduzindo a reserva vital a ser
buscada pelo indivíduo. O escritor está nos
comunicando que se dedica a estados fronteiriços,
capazes de proporcionar um encontro com a experiência
originária. Ter acesso a estes estados desencadeia um
verdadeiro abalo císmico, pois atinge-se uma região
recôndita do ser com tal veemência que somente imagens
paradoxais podem traduzi-la em palavras: "vibração de
cores neutras", "zonas assustadoramente inesperadas".
Esta sintonia concentra todos os tempos: "todos esses
profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim
mesmo".
Este elo vem expresso, conforme vimos, através dos
verbos dedicar e dedicar-se que etimologicamente
significam, o primeiro deles, dizer para e o segundo,
dizer através de si para. Há um encontro no dizer, na
palavra tocando os sentidos e abalando a inteligência.
A. arte musical, com sua linguagem abstrata, somada à
linguagem simbólica das cores, traduz a revolução
deste indivíduo
que, habitando o núcleo de seu ser, explode: "A
ponto de eu neste instante explodir em: eu". Explodir:
irromper, vociferar. Sim, porque o que ele descobre o
leva a sensações humanamente insuportáveis. Neste
momento afigura-se o apelo ao outro, como resultado de
um doloroso sentimento de incompletude e solidão.
Aquele nós do começo, convocado para partilhar a dor
da morte de Schumann, volta a ser chamado para, numa
solidariedade abismal, suprir uma lacuna, Todas as
pessoas são seres ambulantes. Chegado a este estágio,
o escritor não mais dedica ou dedica-se, mas medita -
exercita-se, repete um papel, reflete: "Meditar não
precisa de ter resultados: a meditação pode ter como
fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o
nada."
Eis o porquê da presença da música, forma de
comunicação que prescinde da palavra, porque os
sentimentos a sobrepujam. Mais particularmente a
música romântica e toda a música clássica (no sentido
de erudita) que pretenda o efeito artístico apregoado
pelos músicos românticos, conforme se pode conferir
nos depoimentos deixados por Jean Paul a respeito de
Schumann.
O escritor de - A hora da estrela afirma: "A minha
vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente
interior, e não há uma palavra que a signifique". A
história do livro transcorre "em estado de
emergência". A sua vida (do escritor e da obra) de
onde de um movimento - "trata-se de livro inacabado"
, que exige a participação do outro para continuá-la.
Assim, A hora da estrela retoma e redimensiona
questões que marcam a literatura moderna, confrontada
com a crise do herói desorientado e da palavra
nomeadora.
Nas três formas - dedicar, dedicar-se e meditar -
denominador comum: o dizer. Nele de fato concentra-se
o grande desafio para as pessoas que queiram ter uma
relação autêntica com a vida e também o desafio para o
escritor, já que é a sua matéria-prima básica. Pois se
é verdade a afirmação inicial do livro, de que "tudo
no mundo começou com um sim", temos diante de nós um
enigma a decifrar e um desafio a empreender. O enigma
se refere ao primeiro sim (a origem do mundo); o
desafio é dizer sim
com Clarice Lispector, para continuarmos inventando
o mundo. Por isso o texto termina com uma única
palavra ocupando todo um parágrafo: "Sim". A nós, cabe
continuar este movimento estelar. Eis a grande arte de
Clarice Lispector.
Clarisse Fukelman
Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
DEDICATÓRIA DO AUTOR (Na verdade Clarice Lispector)
Pois que dedico esta coisa ai ao antigo Schumann e
sua doce Clara que são hoje ossos, ai de nós.
Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu
sangue de homem em plena idade e portanto dedico-me a
meu sangue. Dedico-me sobretudo aos gnomos, anões,
sílfides e ninfas que me habitam a vida. Dedico-me à
saudade de minha antiga pobreza, quando tudo era
mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta.
Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das
cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os
ossos. A Stravinsky que me espantou e com quem voei em
fogo. À "Morte e Transfiguração", em que Richard
Strauss me revela um destino? Sobretudo dedico-me às
vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de
Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a
Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos
eletrônicos - a todos esses que em mim atingiram zonas
assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do
presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a
ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu
que é vós pois não agüento ser apenas mim, preciso dos
outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu
enviesado, enfim que é que se há de fazer senão
meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge
com a meditação. Meditar não precisa de
ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas
ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O
que me atrapalha a vida é escrever.
E - e não esquecer que a estrutura do átomo não é
vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi.
E vós também. Não se pode dar uma prova da existência
do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar.
Acreditar chorando.
Esta história acontece em estado de emergência e de
calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque
lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que
alguém no mundo ma dê. Vós? É uma história em
tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu
também preciso. Amém para nós todos.
A Hora da Estrela
A CULPA E MINHA
OU
A HORA DA ESTRELA
OU
ELA QUE SE ARRANJE
OU
O DIREITO AO GRITO
ou
.QUANTO AO FUTURO.
OU
LAMENTO DE UM BLUE
OU
ELA NAO SABE GRITAR
OU
UMA SENSAÇÃO DE PERDA
OU
ASSOVIO NO VENTO ESCURO
OU
EU NÃO POSSO FAZER NADA
OU
REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES
OU
HISTÓRIA LACRIMOGENICA DE CORDEL
OU
SAIDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse
sim a outra molécula e nasceu a vida.
Mas antes da pré-história havia a pré-história da
pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre
houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais
começou.
Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade
através de muito trabalho.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Como começar pelo início, se
as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da
pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos?
Se esta história não existe, passará a existir. Pensar
é um ato. Sentir ó um fato. Os dois juntos - sou eu
que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A
verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A
minha vida a mais verdadeira é irreconhecível,
extremamente interior e não tem uma só palavra que a
signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e
reduz-sé ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor
de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada
funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo
uma melodia sincopada e estridente - é a minha própria
dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade.
Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada
pelas nordestinas que andam por aí aos montes.
-- Página 26
Como eu irei dizer agora, esta história será o
resultado de uma visão gradual - há dois anos e meio
venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão da
iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei.
Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou
lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo
- como a morte parece dizer sobre a vida - porque
preciso registrar os fatos antecedentes.
Escrevo neste instante com algum prévio pudor por
vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e
explícita. De onde no entanto até sangue arfante de
tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se
coagular em cubos de geléia trêmula. Será essa
história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há
veracidade nela - e é claro que a história é
verdadeira embora inventada - que cada um a reconheça
em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem
pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade
por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a
quem falte . o delicado essencial.
Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda
o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do
Rio de Janeiro, peguei no ar de relaxe o sentimento de
perdição no rosto de urna moça nordestina. Sem falar
que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das
coisas por estar vivendo.
Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é
que os senhores sabem mais do que imaginam e estão
fingindo de sonsos.
Proponho-me a que não seja complexo o que
escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos
sustentam. A história - determino com falso livre
-- Página 27
arbítrio = vai ter uns sete personagens e eu sou um
dos mais importantes deles, é claro. .Eu, Rodrigo S.
M. Relato antigo, este, pois não quero ser, modernoso
e inventar modismos à guisa de originalidade.
Assim é que experimentarei contra os meus hábitos
uma história com começo, meio e "gran finale" seguido
de silêncio e de chuva caindo.
História exterior e explícita, sim, mas que contém
segredos - a começar por um dos títulos, "Quanto ao
futuro", que é precedido por um ponto final e seguido
de outro ponto final. Não se trata de capricho meu -
no fim talvez se entenda a necessidade do delimitado.
(Mal e mal vislumbro o final que, se minha pobreza
permitir, quero que seja grandioso.) Se em vez de
ponto fosse. seguido por reticências o título ficaria
aberto a possíveis imaginações vossas, porventura até
malsãs e sem piedade. Bem, é verdade que também eu não
tenho piedade do meu personagem principal, a
nordestina: é um relato que desejo frio. Mas tenho o
direito de ser dolorosamente frio, e não vós. Por tudo
isto é que não vos dou a vez.
Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo
vida primária que respira, respira; respira. Material
poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com
seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais
do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa
moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja
de pouca arte, o de revelar-lhe a vida.
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que
vendem o corpo, única posse real, em, troca de um bom
jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a
pessoa de quem falarei mal tem corpo
-- Página 28
para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua,
não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora -
também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo
um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria
que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar
piegas.
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas
por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de
balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que
são facilmente substituíveis e que tanto existiriam
como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu
saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem
será que existe?
Estou esquentando o corpo para iniciar, esfregando
as mãos uma na outra para ter coragem. Agora me
lembrei de que houve um tempo em que para me esquentar
o espírito eu rezava: o movimento é espírito. A reza
era um meio de mudamente e escondido de todos atingirme
a mim mesmo. Quando rezava conseguia um oco de alma
- e esse oco é o tudo que posso eu jamais ter. Mais do
que isso, nada. Mas o vazio tem o valor e a semelhança
do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de
ter é o de não pedir e somente acreditar que a
silêncio que eu creio em mim é resposta a meu - a meu
mistério.
Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada
vez mais simples. Aliás o material de que disponho é
parco e singelo demais, as informações sobre os
personagens são poucas e nâo muito elucidativas,
informações essas que penosamente me vêm de mim para
mim mesmo, é trabalho de carpintaria.
Sim, mas não esquecer que para escrever não-importao-
quê o meu material básico é a palavra. Assim é que
esta história será feita de palavras que se agrupam
-- Página 29
em frases e destas se evola um sentido secreto que
ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo
escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos:
conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos
e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em
vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas
não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da
moça esse pão se tornará em ouro - e á jovem (ela tem
dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo,
morrendo de fome. Tenho então que falar simples para
captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a
humildemente - mas sem fazer estardalhaço de minha
humildade que já não seria humildade - limito-me a
contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade
toda feita contra ela. Ela, que deveria ter ficado nó
sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma:
datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o
terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada
na datilografia a copiar lentamente letra por letra -
a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à
máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim
dalilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na
linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra
linda e redonda do amado chefe a palavra "designar" de
modo como em língua falada diria: "desiguinar".
Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que
sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um
pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não
se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?
Quero antes afiançar que essa moça não se conhece
senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse
-- Página 30
a tolice de se perguntar "quem sou eu?'' cairia
estatelada e em cheio no chão. É que "quem sou eu?"
provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade?
Quem se indaga é incompleto.
A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes
sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao
sorriso porque nem ao menos a olham.
Voltando a mim: o que escreverei não pode ser
absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de
requintes. Pois o que estarei dizendo será apenas nu.
Embora tenha como pano de fundo - e agora mesmo - a,
penumbra atormentada que sempre há nos meus sonhos
quando de noite atormentado durmo. Que não se esperem,
então, estrelas no que se segue: nada cintilará,
trata-se de matéria opaca e por sua própria natureza
desprezível por todos. É que a esta história falta
melodia cantabile. O seu ritmo é às vezes
descompassado. E tem fatos. Apaixonei-me subitamente
por fatos sem literatura - fatos são pedras duras e
agir está me interessando mais do que pensar, de fatos
não há como fugir.
Pergunto-me se eu deveria caminhar à frente do tempo
e esboçar logo um final. Acontece porém que eu mesmo
ainda não sei bem como esse isto terminará. E também
porque entendo que devo caminhar passo a passo de
acordo com um prazo determinado por horas: até um
bicho lida com o tempo. E esta é também a minha mais
primeira condição: a de caminhar paulatinamente apesar
da impaciência que tenho em relação a essa moça.
Com esta história eu vou me sensibilizar, e bem sei
que cada dia é um. dia roubado da morte. Eu não, sou
um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é
uma névoa úmida. As palavras são sons
-- Página 31
transfundidos de sombras que se entrecruzam
desiguais, estalactites, renda, música transfigurada
de órgão. Mal ouso clamar palavras a essa rede
vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como
contratom o , baixo grosso da dor Alegro com brio.
Teritareí tirar duro do carvão. Sei que estou adiando
a história e que brinco de bola sem a bola. O fato é
um ato? Juro que este livro é feito sem palavras. É
uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este
livro é uma pergunta.
Mas desconfio que toda essa conversa é feita apenas
para adiar a pobreza da história, pois estou com medo.
Antes de ter surgido na .minha vida essa datilógrafa,
eu era um homem até mesmo um pouco contente, apesar do
mau êxito na minha literatura. As coisas estavam de
algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins
porque o que amadurece plenamente pode ,apodrecer.
Transgredir, porém, os meus próprios limites me
fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever
sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer
que seja o que quer dizer "realidade". O que narrarei
será meloso? Tem tendência mas então agora mesmo seco
e endureço tudo. E pelo menos o que escrevo não pede
favor a ninguém e não implora socorro: agüenta-se na
sua chamada dor com uma dignidade de barão.
É. Parece que estou mudando de modo de escrever. Mas
acontece que só escrevo o que quero, não sou um
profissional - e preciso falar dessa nordestina senão
sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é
escrever sobre ela. Escrevo em traços vivos e ríspidos
de pintura. Estarei lidando com fatos como se fossem
as irremediáveis pedras de que falei. Embora
-- Página 32
queira que para me animar sinos badalem enquanto
adivinho a realidade. E que anjos esvoacem em vespas
transparentes em torno de minha cabeça quente porque
esta quer enfim se transformar em objeto-coisa, é mais
fácil.
Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra?
Mas que ao escrever - que o nome real seja dado às
coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a
tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou
inventar.
Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o
espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz
conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina
mas por motivo grave de "força maior", como se diz nos
requerimentos oficiais, por "força de lei".
Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem
de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias
soltas, pois eu também sou ó escuro da noite.
Embora não agüente bem ouvir um assovio no escuro, e
passos. Escuridão? lembro-me de uma namorada: era
moça-mulher e que escuridão dentro de seu corpo. Nunca
a esqueci: jamais se esquece a pessoa com quem se
dormiu. O acontecimento fica tatuado em marca de fogo
na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem
com horror.
Quero neste instante falar da nordestina. É o
seguinte: ela como uma cadela vadia era teleguiada
exclusivamente por si mesma. Pois reduzira-se a si.
Também eu, de fracasso em fracasso, me reduzi a mim
mas pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus.
Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a
jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no
--Página 33
presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje -
e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o
estado das coisas neste momento.
E eis que fiquei agora receoso quando pus palavras
sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo?
Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi
inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do
escrever? sou um homem que tem mais dinheiro do que os
que passam fome, o que faz de mim de algum modo um
desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas
quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho
classe social, marginalizado que sou. A classe alta me
tem como um monstro esquisito, a média com
desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe
baixa nunca vem a mim.
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar
rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços
espelhados.
Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome
da moça. Sem falar que a história me desespera por ser
simples demais. O que me proponho contar parece fácil
e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito
difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase
apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros
enlameados apalpar o invisível na própria lama.
De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com
uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira
que na certa está tão viva quanto eu.
Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que
vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da
esvoaçada magreza: E se for triste a minha narrativa?
Depois na certa escreverei algo alegre,
-- Página 34
embora alegre por quê? Porque também sou um homem de
hosanas e um dia, quem sabe, cantarei loas que não as
dificuldades da nordestina.
Por enquanto quero andar nu ou em farrapos, quero
experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que
dizem ter a hóstia. Comer a hóstia será sentir o
insosso do mundo e banhar-se no não. Isso será coragem
minha, a de abandonar sentimentos antigos já
confortáveis.
Agora não é confortável: para falar da moça tenho
que não fazer a barba, durante dias e adquirir
olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura
exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me
com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no
nível da nordestina. Sabendo no entanto que talvez eu
tivesse que me apresentar de modo mais convincente às
sociedades que muito reclamam de quem está neste
instante mesmo batendo à máquina.
Tudo isso, sim, a história é história. Mas sabendo
antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da
palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra.
Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo.
E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente
vã, tem que ser apenas ela. Bem, é verdade que também
queria alcançar uma sensação fina e que esse finíssimo
não se quebrasse em linha perpétua. Ao mesmo tempo
que quero também alcançar o trombone mais grosso e
baixo, grave e terra, tão a troco de nada que por
nervosismo de escrever eu tivesse um acesso
incontrolável de riso vindo do peito. E quero aceitar
minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que
existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque
parece. Existir não é lógico.
-- Página 35
A ação desta história terá como resultado minha
transfiguração em outrem e minha materialização enfim
em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que
eu me enovelarei em macio cipó.
Mas voltemos a hoje. Porque, como se sabe, hoje é
hoje. Não estão me entendendo e eu ouço escuro que
estão rindo de mim em risos rápidos e ríspidos de
velhos. E ouço passos cadenciados na rua: Tenho um
arrepio de medo. Ainda bem que o que eu vou escrever
já deve estar na certa de algum modo escrito em mim.
Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta
branca. Essa idéia de borboleta branca vem de que, se
a moça vier a se casar, casar-se-á magra e leve, e,
como virgem, de branco. Ou não se casará? O fato é que
tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me
sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma
oculta linha fatal.
Sou obrigado a procurar uma verdade que me
ultrapassa. Por que escrevo sobre uma jovem que nem
pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um
recolhimento e também porque na pobreza de corpo e
espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o
sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão
pouco sou.
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e
não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo
porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto
mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre
novidade que é escrever, eu me morreria
-- Página 36
simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou
para sair discretamente pela saída da porta dos
fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e
o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu
tivesse sido e não fui.
Pareço conhecer nos menores detalhes essa
nordestina, pois se vivo com ela. E como muito
adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele
qual melado pegajoso ou lama negra. Quando eu era
menino li a história de um velho que estava com medo
de atravessar um rio. E foi quando apareceu um homem
jovem que também queria passar para a outra
margem. O velho aproveitou e disse:
- Me leva também? Eu bem montado nos teus ombros?
O moço consentiu e passada a travessia avisoulhe:
- Já chegamos, agora pode descer.
Mas aí o velho respondeu muito sonso e sabido:
- Ah, essa não! É tão bom estar aqui montado como
estou que nunca mais vou sair de você!
Pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros.
Logo eu que constato que a pobreza é feia e promíscua.
Por isso não sei se minha história vai ser - ser o
quê? Não sei de nada, ainda não me animei a escrevêla.
Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? Também não
sei. Não estou tentando criar em vós uma expectativa
aflita e voraz: é que realmente não sei o que me
espera, tenho um personagem buliçoso
-- Página 37
nas mãos e que me escapa a cada instante querendo
que eu o recupere.
Esqueci de dizer que tudo o que estou agora
escrevendo é acompanhado pelo ruflar enfático de um
tambor batido por um soldado. No instante mesmo em que
eu começar a história - de súbito cessará o tambor.
Vejo a nordestina se olhando ao espelho e - um ruflar
de tambor - no espelho aparece o meu rosto cansado e
barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. Não há dúvida
que ela é uma pessoa física. E adianto um fato: tratase
de moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha.
Vergonha por pudor ou por ser feia? Pergunto-me também
como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos. É
que de repente o figurativo me fascinou: crio a ação
humana e estremeço. Também quero o figurativo assim
como um pintor que só pintasse cores abstratas
quisesse mostrar que o fazia por gosto, e não por não
saber desenhar. Para desenhar a moça tenho que me
domar e para poder captar sua alma tenha que me
alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco
gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei
e de onde tenho a velocidade de querer ver o mundo
Também tive que me abster de sexo e de futebol. Sem
falar que não entro em contacto com ninguém. Voltarei
algum dia à minha vida anterior?
Duvido muito. Vejo agora que esqueci de dizer que por
enquanto nada leio para não contaminar com luxos a
simplicidade de minha linguagem. Pois como eu disse a
palavra tem que se parecer com a palavra, instrumento
meu. Ou não sou um escritor? Na verdade sou mais ator
porque, com apenas um modo
-- Página 38
de pontuar, faço malabarismos de entonação, obrigo o
respirar alheio a me acompanhar o texto.
Também esqueci de dizer que o registro que em breve
vai ter que começar - pois já não agüento a pressão
dos fatos - o registro que em breve vai ter que
começar é escrito sob o patrocínio do refrigerante
mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada,
refrigerante esse espalhado por todos os países. Aliás
foi ele quem patrocinou o último terremoto em
Guatemala. Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de
unhas, de sabão Aristolino e plástico mastigado. Tudo
isso não impede que todos o amem com servilidade e
subserviência. Também porque - e vou dizer agora uma
coisa difícil que só eu entendo - porque essa bebida
que tem coca é hoje. Ela é um meio da pessoa
atualizar-se e pisar na hora presente.
Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem
alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive,
inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na
verdade - para que mais que isso? O seu viver é ralo.
Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E
procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de
concreto em benefício da moça. Moça essa - e vejo que
já estou quase na história - moça essa que dormia de
combinação de brim com manchas bastante suspeitas de
sangue pálido. Para adormecer nas frígidas noites de
inverno enroscava-se em si mesma, recebendo-se e
dando-se o próprio parco calor. Dormia de boca aberta
por causa do nariz entupido, dormia exausta, dormia
até o nunca.
-- Página 39
Devo acrescentar um algo que importa muito para a
apreensão da narrativa: é que esta é acompanhada do
princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de
dentes, coisa de dentina exposta. Afianço também que a
história será igualmente acompanhada pelo violino
plangente tocado por um homem magro bem na esquina. A
sua cara é estreita e amarela como se ele já tivesse
morrido: E talvez tenha.
Tudo isso eu disse tão longamente por medo de ter
prometido demais e dar apenas o simples e o pouco.
Pois esta história é quase nada. O jeito é começar de
repente assim como eu me lanço de repente na água
gélida do mar, modo de enfrentar com uma coragem
suicida o intenso frio. Vou agora começar pelo meio
dizendo que -
- que ela era incompetente. Incompetente para a vida.
Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava
conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em
si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o
mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser
difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter
nada a ver com a moça, terei que me escrever todo
através dela por entre espantos meus. Os fatos são
sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o
sussurro o que me impressiona).
Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que
(explosão) nada argumentou em seu próprio favor quando
o chefe da firma de representante de roldanas avisoulhe
com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia
provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa),
com brutalidade que só ia manter no emprego Glória,
sua colega, porque quanto a ela, errava demais na
datilografia, além de sujar invariavelmente o papel.
Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se
-- Página 40
deve por respeito responder alguma coisa e falou
.cerimoniosa a seu escondidamente amado chefe:
- Me desculpe o aborrecimento.
O Senhor Raimundo Silveira - que a essa altura já
lhe havia virado as costas - voltou-se um pouco
surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma
coisa na cara quase sorridente da datilógrafa o fez
dizer com menos grosseria na voz, embora a
contragosto:
- Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até
de demorar um pouco.
Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar
sozinha porque estava toda atordoada. Olhou-se
maquinalmente ao espelho que encimava a pia
imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto
combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho ;
baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira
por acaso a sua existência física? Logo depois passou
a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho
ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço
de nariz de papelão. ï Olhou-se e
levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem.
(Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples:
a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso
mesmo: não tinha. Se der para me entenderem, está bem.
Se não, também está bem. Mas por que trato dessa moça
quando o que mais desejo é trigo puramente maduro e
ouro no estio?)
Quando era pequena sua tia para castigá-la com á o
medo dissera-lhe que homem-vampiro - aquele que chupa
sangue da pessoa mordendo-lhe o tenro da garganta -
não tinha reflexo no espelho. Até que não seria de
todo ruim ser vampiro pois bem que lhe iria algum
rosado de sangue no amarelado
-- Página 41
do rosto, ela que não parecia ter sangue a menos que
viesse um dia a derramá-lo.
A moça tinha ombros curvos como os de uma
cerzideira. Aprendera em pequena á cerzir. Ela se
realizaria muito mais se se desse ao delicado labor de
restaurar fios, quem sabe se de seda. Ou de luxo:
cetim bem brilhoso, um beijo de almas. Cerzideirinha
mosquito. Carregar em costas de formiga um grão de
açúcar. Ela era de leve como uma idiota, só que não o
era. Não sabia que era infeliz. É porque ela
acreditava. Em quê? Em vós, mas (não é preciso
acreditar m alguém ou em alguma coisa - basta -
acreditar. Isso lhe dava às vezes estado de graça.
Nunca perdera a fé.
(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco
desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos
reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos
e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou
melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que
tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage?
Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente..)
Viu ainda dois olhos enormes, redondos, saltados e
interrogativos - tinha olhar de quem tem uma asa
ferida - distúrbio talvez da tiróide, olhos que
perguntavam. A quem interrogava ela? a Deus? Ela não
pensava em Deus, Deus náo pensava nela. Deus é de quem
conseguir pegá-lo. Na distração aparece - Deus. Não
fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era
lá tola de perguntar? E de receber um "não" na cara?
Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia
alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia
perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela
mesma parecia se ter
-- Página 42
respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo
outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se
apresente e a diga, estou há anos esperando.
Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo
azul. Para que tanto Deus. Por que não um pouco para
os homens:
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia
uma filha de um não-sei-o-quê com ar de se desculpar
por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou
de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se
"panos", diziam que vinham do fígado. Disfarçava os
panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio
caiada era melhor que o pardacento. Ela toda era um
pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava
saia e blusa, de noite dormia de combinação. Uma
colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu
cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por
isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela
era iridescente, embora a pele do rosto entre as
manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não
importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era
café frio.
E assim se passava o tempo para a moça esta. Assoava
o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa
delicada que se chama encanto. Só eu a vejo
encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. E
só eu é que posso dizer assim: "que é que você me pede
chorando que eu não lhe dê cantando"? Essa moça não
sabia que ela era o que era, assim como um cachorro
não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A
única coisa que queria era viver. Não sabia para que,
não se indagava.
Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em
viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz
-- Página 43
Então era. Antes de nascer ela era uma idéia? Antes
de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia
morrer? Mas que fina talhada de melancia.
Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o
que estou denunciando. Agora (explosão) em
rapidíssimos traços desenharei a vida pregressa da
moça até o momento do espelho do banheiro.
Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão -
os maus antecedentes de que falei. Com dois anos de
idade Ihe haviam morrido os pais de febres ruins no
sertão de Alagoas, lá onde o diabo perdera as botas.
Muito 'depois fora para Maceió com a tia beata, única
parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de
coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos
no alto da cabeça porque o cocuruto de uma cabeça
devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. Dava-lhe
sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos
por falta de cálcio. Batia mas não era somente porque
ao bater gozava de grande prazer sensual - a tia que
não se casara por nojo - é que também considerava de
dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma
dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro
aceso esperando homem. Embora a menina não tivesse
dado mostras de no futuro vir a ser vagabunda de rua.
Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não
parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe
nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo
de sol. As pancadas ela esquecia pois esperando-se um
pouco a dor termina por passar; Mas o que doía mais
era ser privada da sobremesa de todos os dias:
goiabada com queijo, a única paixão
-- Página 44
na sua vida. Pois não era que esse castigo se
tornara o predileto da tia sabida? A menina não
perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo
se precisa saber e não saber fazia parte importante de
sua vida.
Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto
porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina
cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome;
nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como ninguém
lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um
dia como se antes tivesse estudado de cor a
representação do papel de estrela. Pois na hora da
morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é
o instante de glória de cada um e é quando como no
canto coral se ouvem agudos sibilantes.
Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um
bicho. Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma
boca para comer. Então a menina inventou que só lhe
cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão.
Do contacto com à tia ficara-lhe a cabeça baixa. Mas a
sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca
mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as
divindades lhe eram estranhas.
Pois que vida é assim: aperta-se o botão e a vida
acende. Só que ela não sabia qual era o botão de
acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade
técnica onde ela era um parafuso dispensável. Mas uma
coisa descobriu inquieta: já não sabia mais ter tido
pai e mãe, tinha esquecido o sabor. E, se pensava
melhor, dir-se-ia que havia brotado da terra do sertão
em cogumelo logo mofado. Ela falava; sim, mas era
extremamente muda. Uma palavra dela
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eu às vezes consigo mas ela me foge por entre os
dedos.
Apesar da morte da tia, tinha certeza de que com ela
ia ser diferente, pois nunca ia morrer. (É paixão
minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço
esquálido igual a ela.)
O definível está me cansando um pouco. Prefiro a
verdade que há no prenúncio. Quando eu me livrar dessa
história, voltarei ao domínio mais irresponsável de
apenas ter leves prenúncios. Eu não inventei essa
moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência. Ela
não era nem de longe débil mental, era à mercê e
crente como uma idiota. A moça que pelo menos comida
não mendigava, havia toda uma subclasse de gente mais
perdida e com fome. Só eu a amo.
Depois - ignora-se por quê - tinham vindo para o
Rio, o inacreditável Rio de Janeiro, a tia lhe
arranjara emprego, finalmente morrera e ela, agora
sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com
mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas.
O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera
rua do Acre entre as prostitutas que serviam a
marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó,
não longe do cais do porto. O cais imundo dava-lhe
saudade do futuro. (O que é que há? Pois estou como
que ouvindo acordes de piano alegre - será isto o
símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro
esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e
farei tudo para que esta se torne real.)
Rua do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da rua
do Acre. Lá é que não piso pois tenho terror
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sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda.
Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de
madrugada um galo cantar a vida e ela se lembrava
nostálgica do sertão. Onde caberia um galo a cocoricar
naquelas paragens ressequidas de artigos por
atacado de exportação e importação? (Se o leitor
possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de
si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não
estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem
tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de
vossa válvula de escape e da vida massacrante da média
burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo,
mas tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima
da história seja tão antiga que podia ser uma figura
bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido
floração. Minto: ela era capim.)
Dos verões sufocantes da abafada rua do Acre ela só
sentia o suor, um suor que cheirava mal. Esse suor me
parece de má origem. Não sei se estava tuberculosa,
acho que não. No escuro da noite um homem assobiando e
passos pesados, o uivo do vira-latas abandonado.
Enquanto isso - as constelações silenciosas e o espaço
que é tempo que nada tem a ver com ela e conosco. Pois
assim se passavam os dias. O cantar de galo na aurora
sanguinolenta dava um sentido fresco à sua vida
murcha. Havia de madrugada uma passarinhada buliçosa
na rua do Acre: é que a vida brotava no chão, alegre
por entre pedras.
Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para
trabalhar, cais do porto para ir espiar no domingo, um
ou outro prolongado apito de navio cargueiro
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que não se sabe por que dava aperto no coração, um
ou outro ,delicioso embora um pouco doloroso cantar de
galo. Era do nunca que vinha o galo. Vinha do infinito
até a sua cama, dando-lhe gratidão. Sono superficial
porque estava há quase um ano resfriada. Tinha acesso
de tosse seca de madrugada: abafava-a com o
travesseiro ralo. Mas as companheiras de quarto -
Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria
apenas - não se incomodavam. Estavam cansadas demais
pelo trabalho que nem por ser anônimo era menos árduo.
Uma vendia pó-de-arroz Coty, mas que idéia. Elas
viravam para o outro lado e readormeciam. A tosse da
outra até que as embalava em sono mais profundo. O céu
é para baixo ou para cima? Pensava a nordestina.
Deitada, não sabia. Às vezes antes de dormir sentia
fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca.
O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e
engolir.
É. Eu me acostumo mas não amanso. Por Deus! eu me
dou melhor com os bichos do que com gente. Quando vejo
o meu cavalo livre e solto no prado - tenho vontade de
encostar meu rosto no seu vigoroso e aveludado pescoço
e contar-lhe a minha vida. E quando acaricio a cabeça
de meu cão - sei que ele não exige que eu faça sentido
ou me explique.
Talvez a nordestina já tivesse chegado à conclusão
de que vida incomoda bastante, alma que não cabe bem
no corpo, mesmo alma rala como a sua. Imaginavazinha,
toda supersticiosa, que se por acaso viesse alguma
vez a sentir um gosto bem bom de viver - se
desencantaria de súbito de princesa que era e se
transformaria em bicho rasteiro. Porque, por pior que
fosse sua situação, não queria ser privada
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de si, ela queria ser ela mesma. Achava que cairia em
grave castigo e até risco de morrer se tivesse gosto.
Então defendia-se da morte por intermédio de um viver
de menos, gastando pouco de sua vida para esta não
acabar. Essa economia lhe dava alguma segurança pois,
quem cai, do chão não passa. Teria ela a sensação de
que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que
não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou
eu? Assustou-se tanto que parou completamente de
pensar. Mas eu; que não chego a ser ela, sinto que
vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz,
gás e telefone.
Quanto a ela, até mesmo de vez em quando ao receber
o salário comprava uma rosa.
Tudo isso acontece no ano este que passa e só
acabarei esta história difícil quando eu ficar exausto
da luta, não sou um desertor.
As vezes lembrava-se de uma assustadora canção
desafinada de meninas brincando de roda de mãos dadas
- ela só ouvia sem participar porque a tia a queria
para varrer o chão. As meninas de cabelos ondulados
com laço de fita cor-de-rosa. "Quero uma de vossas
filhas de marré-marré-deci." "Escolhei a qual quiser
de marré." A música era um fantasma pálido como uma
rosa que é louca de beleza mas mortal: pálida e mortal
a moça era hoje o fantasma suave e terrificante de uma
infância sem bola nem boneca. Então costumava fingir
que corria pelos corredores de boneca na mão atrás de
uma bola e rindo muito. A gargalhada era
aterrorizadora porque acontecia no passado e só a
imaginação maléfica a trazia para o presente; saudade
do que poderia ter sido e não foi. (Eu bem avisei que
era literatura de cordel embora eu me recuse a ter
qualquer piedade.)
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Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim,
se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação.
Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa
jovem dou o meu grito de horror à vida. A vida que
tanto amo.
Volto à moça: o luxo que se dava era tomar um gole
frio de café antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia
ao acordar.
Ela era calada (por não ter o que dizer) mas gostava
de ruídos. Eram vida. Enquanto o silêncio da noite
assustava: parecia que estava prestes a dizer uma
palavra fatal. Durante a noite na rua do Acre era raro
passar um carro, quanto mais buzinassem; melhor para
ela. Além desses medos, como se não bastassem, tinha
medo grande de pegar doença ruim lá embaixo dela -
isso, a tia lhe ensinara. Embora os seus pequenos
óvulos tão murchos. Tão, tão. Mas vivia em tanta
mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera
de manhã. Vagamente pensava de muito longe e sem
palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser. Os
galos de que falei avisavam mais um repetido dia de
cansaço. Cantavam o cansaço. E as galinhas, que faziam
elas? Indagava-se a moça.
Os galos pelo menos cantavam. Por falar em galinha,
a moça às vezes comia num botequim um ovo duro. Mas a
tia lhe ensinara que comer ovo fazia mal para o
fígado. Sendo assim, obedientemente adoecia, sentindo
dores do lado esquerdo oposto ao fígado. Pois era
muito impressionável e acreditava em tudo o que
existia e no que não existia também. Mas não sabia
enfeitar a realidade. Para ela a realidade era demais
para ser acreditada. Aliás a palavra "realidade" não
lhe dizia nada. Nem a mim, por Deus.
-- Página 50
Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia
na catieça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que
de aparência era assexuada. Quando acordava se sentia
culpada sem saber por que, talvez porque o que é bom
devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das
dúvida se sentia de propósito culpada e rezava
mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém.
Rezava mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele e
portanto ele não existia.
Acabo de descobrir que para ela, fora Deus, também a
realidade era muito pouco. Dava-se melhor com um
irreal cotidiano, vivia em câmara leeeenta,
lebre puuuuulando no aaaar sobre os ooooouteiros,
o vago era o seu mundo terrestre, o vago era o de
dentro da natureza.
E achava bom ficar triste. Não desesperada, pois
isso nunca ficara já que era tão modesta e simples mas
aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica.
Claro que era neurótica, não há sequer necessidade de
dizer. Era uma neurose que a sustentava, meu Deus,
pelo menos isso: muletas. Vez por outra ia para a Zona
Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e
roupas acetinadas - só para se mortificar um pouco. É
que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e
sofrer um pouco é um encontro.
Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo
sem fazer nada.
O pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da
tarde: caía em meditação inquieta, o vazio do seco
domingo. Suspirava. Tinha saudade de quando era
pequena - farofa seca - e pensava que fora feliz.
Na verdade por pior a infância é sempre encantada, que
susto. Nunca se queixava de nada, sabia
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que as coisas são assim mesmo e - quem organizou a
terra dos homens? Na certa mereceria· um dia o céu dos
oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás não é
entrar no céu, é oblíquo na terra mesmo. Juro que nada
posso fazer por ela. Afianço-vos que se eu pudesse
melhoraria as coisas. Eu bem sei que dizer que a
datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de
brutalidade pior que qualquer palavrão.
(Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo.)
Devo registrar aqui uma alegria. É que a moça num
aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada
felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu
um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou
logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió,
espocarem mudos fogos de artifício. Ela quis mais
porque é mesmo uma verdade que quando se dá a mão,
essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha
com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois
não é? Não havia meio - pelo menos eu não posso - de
obter os multiplicantes brilhos em chuva chuvisco dos
fogos de artifício.
Devo dizer que ela era doida por soldado? Pois era.
Quando via um, pensava com estremecimento de prazer:
será que ele vai me matar?
Se a moça soubesse que minha alegria também vem de
minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma
alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de
sua neurose. Neurose de guerra.
E tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao
cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate
as unhas das mãos. Mas como as roía quase até o
sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e viase
o sujo preto por baixo.
-- Página 51
E quando acordava? Quando acordava não sabia mais
quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou
datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então
vestia-se de si mesma, passava o resto do dia
representando com obediência o papel de ser.
Será que eu enriqueceria este relato se usasse
alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta
história não tem nenhuma técnica, nem de estilo, ela é
ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada
deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida
parca como a da datilógrafa. Durante o dia eu faço,
como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois
um dos gestos mais despercebidos é esta história de
que não tenho culpa e que sai como sair. A datilógrafa
vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu ë
inferno. Nunca pensara em "eu sou eu". Acho que
julgava não ter direito, ela era um acaso. Um feto
jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há
milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso.
Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a
mim, só me livro de ser apenas um acaso porque
escrevo, o que é um ato que é um fato. É quando entro
em contato com forças interiores minhas, encontro
através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu
sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso
que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia
longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu?
Espanto-me com o meu encontro.
A nordestina não acreditava na morte, como eu já
disse, pensava que não - pois não é que estava viva?
Esquecera os nomes da mãe e do pai, nunca mencionados
pela tia. (Com excesso de desenvoltura estou usando a
palavra escrita e isso estremece em
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mim que fico com medo de me afastar da Ordem e cair
no abismo povoado de gritos: o Inferno da liberdade.
Mas continuarei.)
Continuando:
Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por
uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem
baixinho para não acordar as outras, ligava
invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava "hora
certa e cultura", e nenhuma música; só pingava em som
de gotas que caem - cada gota de minuto que passava. E
sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos
entre as tais gotas de minuto para dar anúncios
comerciais - ela adorava anúncios. Era rádio perfeita
pois também entre os pingos do tempo dava curtus
ensinamenos dos quais talvez algum dia viesse precisar
saber. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos
Magno era na terra dele chamado Carolus. Verdade que
nunca achara modo de aplicar essa informação. Mas
nunca se sabe, quem espera sempre alcança. Ouvira
também a informação de que o único animal que não
cruza com filho era o cavalo.
- Isso, moço, é indecência, disse ela ara o rádio.
Outra vez ouvira: "Arrepende-te em Cristo e Ele te
dará felicidade." Então ela se arrependera. Como não
sabia bem de que, arrependia-se toda e de tudo. O
pastor também falava que a vingança é coisa infernal.
Então ela não se vingava.
Sim, quem espera sempre alcança. É?
Tinha o que se chama de vida interior e não sabia
que tinha. Vivia de si mesma como se comesse as
próprias entranhas. Quando ia ao trabalho parecia uma
doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava
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em altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de
tanta interioridade, eram vazios porque lhes faltava o
núcleo essencial de uma prévia experiência de - de
êxtase, digamos. A maior parte do tempo tinha sem o
saber o vazio que enche a alma dos santos. Ela era
santa? Ao que parece. Não sabia que meditava pois não
sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que
sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que
precisava dos outros para crer em si mesma, senão se
perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia
nela. Meditava enquanto batia à máquina e por isso
errava ainda mais.
Mas tinha prazeres. Nas frígidas noites, ela, toda
estremecente sob o lençol de brim, costumava ler à luz
de vela os anúncios que recortava dos jornais velhos
do escritório. É que fazia coleção de anúncios.
Colava-os no álbum. Havia um anúncio, o mais precioso,
que mostrava em cores o pote aberto de um creme para
pele de mulheres que simplesmente não eram ela.
Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os
olhos, ficava só imaginando com delícia: o creme era
tâo apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo
não seria boba. Que pele, que nada, ela o comeria,
isso sim, às colheradas no pote mesmo. É que lhe
faltava gordura e seu organismo estava seco que nem
saco meio vazio de torrada esfarelada. Tornara-se como
o tempo apenas matéria vivente em sua forma primária.
Talvez fosse assim para se defender da grande tentação
de ser infeliz de uma vez e ter pena de si. (Quando
penso que eu podia ter nascido ela - e por que não? -
estremeço. E parece-me covarde fuga o fato de eu não a
ser, sinto culpa como disse num dos títulos.)
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Em todo caso o futuro parecia vir a ser muito
melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não
ser o presente, sempre há um melhor para o ruim. Mas
não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma
uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça,
ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica.
Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que respiro.
Embora só tivesse nela a pequena flama
indispensável: um sopro de vida. (Estou passando por
um pequeno inferno com esta história. Queiram os
deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu
me cobriria de lepra.) (Se estou demorando um pouco em
fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque
preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também
porque se houver algum leitor para essa história quero
que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão
todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não
queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um
réu.)
Será que entrando na semente de sua vida estarei
como que violando o segredo dos faraós? Terei castigo
de morte por falar de uma vida que contém como todas
as nossas vidas um segredo inviolável?
Estou procurando danadamente achar nessa existência
pelo menos um topázio de esplendor. Até o fim talvez o
deslumbre, .ainda não sei, mas tenho esperança.
Esqueci de dizer que às vezes a datilógrafa tinha
enjôo para comer. lsso vinha desde pequena quando
soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para
sempre. Perdeu o apetite, só tinha a grande fome.
Parecia-lhe que havia cometido um crime e que comera
um anjo frito, as asas estalando entre os
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dentes. Ela acreditava em anjo e, porque acreditava,
eles existiam.
Nunca havia jantado ou almoçado num restaurante. Era
de pé mesmo no botequim da esquina. Tinha uma vaga
idéia que mulher que entra em restaurante é francesa e
desfrutável.
Havia coisas que não sabia o que significavam.
Uma era "efeméride". E não é que Seu Raimundo só
mandava copiar com sua letra linda a palavra
efemérides ou efeméricas? Achava o termo efemírides
absolutamente misterioso. Quando o copiava prestava
atenção a cada letra. Glória era estenógrafa e não só
ganhava mais como não parecia se atrapalhar com as
palavras difíceis das quais o chefe tanto gostava.
Enquanto isso a mocinha se apaixonara pela palavra
efemérides.
Outro retrato: nunca recebera presentes. Aliás não
precisava de muita coisa. Mas um dia viu algo que por
um leve instarite cobiçou: um livro que Seu Raimundo,
dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era
"Humilhados e Ofendidos". Ficou pensativa. Talvez
tivesse pela primeira vez se definido numa classe
social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão
que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que
acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não
havia luta possível, para que lutar?
Pergunto eu: conheceria ela algum dia do amor o seu
adeus? Conheceria algum dia do amor os seus desmaios?
Teria a seu modo o doce vôo? De nada sei. Que se há de
fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco
triste e um pouco só. A nordestina se perdia na
multidão. Na praça Mauá onde tomava o ônibus fazia
frio e nenhum agasalho havia contra o vento. Ah, mas
existiam os navios cargueiros
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que lhe davam saudades quem sabe de quê. Isso só às
vezes. Na verdade saía do escritório sombrio,
defrontava o ar lá de fora, crepuscular, e constatava
então que todos os dias à mesma hora fazia exatamente
a mesma hora. Irremediável era o grande relógio que
funcionava no tempo. Sim, desesperadamente para mim,
as mesmas horas. Bem, e daí? Daí, nada. Quanto a mim,
autor de uma vida, me dou mal com a repetição: a
rotina me afasta de minhas possíveis novidades.
Por falar em novidades, a moça um dia viu num botequim
um homem tão, tão, tão bonito que - que queria tê-lo
em casa. Deveria ser, como - como ter uma grande
esmeralda-esmeralda-esmeralda num estojo aberto.
Intocável. Pela aliança viu que ele era casado. Como
casar com-com-com um ser que era para-para-para ser
visto, gaguejava ela no seu pensamento. Morreria de
vergonha de comer na frente dele porque ele era bonito
além do possível equilíbrio de uma pessoa.
Pois não é que quis descansar as costas, por um dia?
Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria
que lhe doíam as costelas. Então valeu-se de uma
mentira que convence mais que a verdade: disse ao
chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque
arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira
pegou. As vezes só a mentira salva. Então, no dia
seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram
trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma
coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só
para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço.
E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de
absoluta coragem, pois a tia não a entenderia.
Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se
tornava:
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l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente
conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais
alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias.
Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café
solúvel com a dona dos quartos, e; ainda como favor,
pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se lambendo e
diante do espelho para nada perder de si mesma.
Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até
então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na
vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe
devia nada. Até deu-se ao luxo de ter tédio - um tédio
até muito distinto.
Desconfio um pouco de sua facilidade inesperada de
pedir favor. Então precisava ela de condições
especiais para ter encanto? Por que não agia sempre
assim na' vida? E até ver-se. no espelho não foi tão
assustador: estava contente. mas como doía.
- Ah mês de maio, não me largues nunca mais!
(Explosão) foi a sua íntima exclamação no dia
seguinte, 7 de maio, ela que nunca exclamava.
Provavelmente porque alguma coisa finalmente lhe era
dada. Dada por si mesma, mas dada.
Nesta manhã de dia 7, o êxtase inesperado para o seu
tamanho pequeno corpo. A luz aberta e rebrilhante das
ruas atravessava a sua opacidade. Maio, mês dos véus
de noiva flutuando em branco.
O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir
três páginas que escrevi e que a minha cozinheira,
vendo-as soltas, jogou no lixo para o meu desespero -
que os mortos me ajudem a suportar o quase
insuportável, já que de nada me valem os vivos. Nem de
longe consegui " igualar a tentativa de repetição
artificial do que originalmente eu escrevi sobre o
encontro com o seu futuro namorado. É com
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humildemente que contarei agora a história da
história. Portanto se me perguntarem como foi direi:
não sei, perdi o encontro.
Maio, mês das borboletas noivas flutuando em brancos
véus. Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio
do que ia acontecer no final da tarde desse mesmo dia:
no meio da chuva abundante encontrou (explosão) a
primeira espécie de namorado de sua vida, o coração
batendo como se ela tivesse englutido um passarinho
esvoaçante e preso. O rapaz e ela se olharam por entre
a chuva e se reconheceram como dois nordestinos,
bichos da mesma espécie que se farejam. Ele a olhara
enxugando o rosto molhado com as mãos. E a moça,
bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua
goiaba-com-queijo.
Ele...
Ele se aproximou e com a voz cantante de nordestino
que a emocionou, perguntou-lhe:
-- E se me desculpe, senhorita, posso convidar a
passear?
-- Sim, respondeu atabalhoadamente com a pressa
antes que ele mudasse de idéia.
-- E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?
-- Macabéa.
-- Maca -- o quê?
-- Bea, foi ela obrigada a completar.
-- Me desculpe mas até parece doença de pele.
-- Eu também acho esquisito mas minha mãe ele por
promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se vingasse, até
um ano de idade eu não era chamada não tinha nome, eu
preferia continuar
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a nunca ser chamada em vez de ter um nome que
ninguém tem mas parece que deu certo - parou um
instante retomando o fôlego perdido e acrescentou
desanimada e com pudor - pois como o senhor vê eu
vinguei ... pois é ...
- Também no sertão da Paraíba promessa é questão de
grande dívida de honra.
Eles não sabiam como se passeia. Andaram sob a chuva
grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de
ferragem onde estavam expostos atrás do vidro canos,
latas, parafusos grandes e pregos. E Macabéa, com medo
de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse
ao recém-namorado:
- Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Da segunda vez em que se encontraram' caía uma chuva
fininha que ensopava os ossos. Sem nem ao menos se
darem as mãos çaminhavam na chuva que na cara de
Macabéa parecia lágrimas escorrendo.
Da terceira vez em que se encontraram - pois não é
que estava chovendo? - o rapaz, irritado e perdendo o
leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe
ensinara, disse-lhe:
- Você também só sabe é mesmo chover!
- Desculpe.
Mas ela já o amava tanto que não sabia mais como se
livrar dele, estava em desespero de amor.
Numa das vezes em que se encontraram ela afinal
perguntou-lhe o nome.
- Olímpico de Jesus Moreira Chaves - mentiu ele
porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus,
sobrenome dos, que têm pai. Fora criado por um
-- Página 61
padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar
pessoas para se aproveitar delas e lhe: ensinara como
pegar mulher:
- Eu não entendo o seu nome - disse ela. - Olímpico?
Macabéa fingia enorme curiosidade escondendo dele
que ela nunca entendia tudo muito bem e que isso era
assim mesmo. Mas ele, galinho de briga que era,
arrepiou-se todo com a pergunta tola e que ele não
sabia responder. Disse aborrecido:
- Eu sei mas não quero dizer!
- Não faz mal, não faz mal, não faz mal... a gente
não precisa entender o nome.
Ela sabia o que era o desejo - embora não soubesse
que sabia. Era assim: ficava faminta mas não de
comida, era um gosto meio doloroso que subia do baixoventre
e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios
sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía.
Ficava então meio nervosa e Glória lhe dava água com
açúcar.
Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa
metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de
"operário" e sim de "metalúrgico". Macabéa ficava
contente com a posição social dele porque também tinha
orgulho de ser datilógrafa, embora ganhasse menos que
o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no
mundo. "Metalúrgico e datilógrafa" formavam um casal
de classe. A tarefa de Olímpico tinha o gosto que se
sente quando se fuma um cigarro acendendo-o do lado
errado, na ponta da cortiça. O trabalho consistia em
pegar barras
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de metal que vinham desligando de cima da máquina
para colocá-las embaixo, sobre uma placa deslizante.
Nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo.
A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco
de dinheiro: dormia de graça numa guarita em obras de
demolição por camaradagem do vigia.
Macabéa disse:
- As boas maneiras são a melhor herança.
- Pois: para mim a- melhor herança é mesmo muito
dinheiro: Mas um dia vou ser muito rico disse ele que
tinha uma grandeza demoníaca: a sua força, sangrava.
Uma coisa que tinha vontade de ser era toureiro. Uma
vez fora ao cinema e estremecera da cabeça aos pés
quando vira a capa vermelha. Não tinha pena do touro.
Gostava era de ver sangue.
No Nordeste tinha juntado salários e salários para
arrancar um canino perfeito e trocá-lo por um dente de
ouro faiscante. Este dente lhe dava posição na vida.
Aliás, matar tinha feito dele homem com letra
maiúscula. Olímpico não tinha vergonha, era o que se
chamava no Nordeste de "cabra safado". Mas não sabia
que era um artista: nas horas de folga esculpia
figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as
vendia. Todos os detalhes ele punha e, sem faltar ao
respeito, esculpia tudo do Menino Jesus. Ele achava
que o que é, é mesmo, e Cristo tinha sido além de
santo um homem como ele, embora sem dente de ouro.
Os negócios públicos interessavam Olímpico. Ele
adorava ouvir discursos. Que tinha seus pensamentos,
isso lá tinha. Acocorava-se com o cigarro barato nas
mãos e pensava. Como na Paraíba ele se acocorava
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no chão, o traseiro sentado no zero, a meditar.
Ele dizia alto e sozinho:
- Sou muito inteligente, ainda vou ser deputado. E
não é que ele dava para fazer discurso? Tinha o tom
cantado e o palavreado seboso, próprio para quem abre
a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do
homem. No futuro eu não digo nesta história, não é que
ele terminou mesmo deputado? E obrigando do os outros
a chamarem-no de doutor.
Macabéa era na verdade - uma figura medieval
enquanto Olímpico de Jesus se julgava peça-chave,
dessas que abrem qualquer porta. Macabéa simplesmente
não era técnica, ela era só ela. Não, não quero ter
sentimentalismo e portanto vou cortar o coitado
implícito dessa moça. Mas tenho que anotar que Macabéa
nunca recebera uma carta em sua vida e o telefone do
escritório só chamava o chefe e Glória. Ela uma vez
pediu a Olímpico que lhe telefonasse. Ele disse:
- Telefonar para ouvir as tuas bobagens?
Quando Olímpico lhe -.dissera que terminaria
deputado pelo Estado da Paraíba,. ela ficou
boquiaberta e pensou: quando nos casarmos então serei
uma deputada? Não queria, pois deputada parecia nome
feio. (Como eu disse, essa não é uma história de
pensamentos. Depois provavelmente voltarei para as
inominadas sensações, até sensações de Deus. Mas a
história de Macabéa tem que sair senão eu estouro.)
As poucas conversas entre os namorados versavam
sobre farinha, carne-de-sol, carne-seca, rapadura,
melado. Pois esse era o passado de ambos e eles
esqueciam o amargor da infância porque esta, já que
passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia.
Pareciam por demais irmãos, coisa que - só agora estou
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percebendo - não dá para casar. Mas eu não sei se
eles sabiam disso. Casariam ou não? Ainda não sei, só
sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra
faziam no chão.
Não menti, agora vi tudo: ele não era inocente coisa
alguma uma vítima geral do mundo. Tinha, descobri
agora, dentro de si a dura semente do mal, gostava de
se vingar, este era o seu grande prazer e o que lhe
dava força de vida. Mais do que ela que não tinha anjo
da guarda.
Enfim o que fosse acontecer, aconteceria. E por
enquanto nada acontecia, os dois não sabiam inventar
acontecimentos. Sentavam-se no que é de graça: banco
de praça pública. E ali acomodados, nada os distinguia
do resto do nada. Para a grande glória de Deus.
Ele: - Pois é.
Ela: - Pois é o quê?
Ele: - Eu só disse pois é!
Ela: - Mas "pois é" o quê?
Ele: - Melhor mudar de conversa porque você não me
entende.
Ela: - Entender o quê?
Ele: - Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de
assunto e já!
Ela: - Falar então de quê?
Ele: - Por exemplo, de você.
Ela: - Eu?!
Ele: - Por que esse espanto? Você não é gente? Gente
fala de gente.
Ela: - Desculpe mas não acho que sou muito gente.
Ele: - Mas todo mundo é gente, meu Deus!
Ela: - É que não me habituei.
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Ele: - Não se habituou com quê?
Ela: - Ah, não sei explicar.
Ele: - E então?
Ela: - Então o quê?
Ele: - Olhe, eu vou embora porque você é impossível!
Ela: - É que só sei ser impossível, não sei mais
nada. Que é que eu faço para conseguir ser possível?
Ele: - Pare de falar porque você só diz besteira!
Diga o que é do teu agrado.
Ela: - Acho que não sei dizer.
Ele: - Não sabe o quê?
Ela: - Hein?
Ele: - Olhe, até estou suspirando de agonia. Vamos
não falar em nada, está bem?
Ela: - Sim, está bem, como você quiser.
Ele: - É, você não tem solução. Quanto a mim, de
tanto me chamarem, eu virei eu. No sertão da Paraíba
não há quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o
mundo todo vai saber de mim.
- É?
- Pois se eu estou dizendo! Você não acredita?
- Acredito sim, acredito, acredito, não quero
lhe ofender.
Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e
branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e
tudo. Era bom olhar para dentro. Então seu ideal se
transformara nisso: em vir a ter um poço só para ela.
Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico:
- Você sabe se a gente pode comprar um buraco?
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- Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou
que tudo que você pergunta não tem resposta?
Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim
como uma pomba fica triste.
Quando ele falava em ficar rico, uma vez ela lhe
disse:
- Não será somente visão?
- Vá para o inferno, você só sabe desconfiar. Eu só
não digo palavrões grossos porque você é moça-donzela.
- Cuidado com suas preocupações, dizem que dá ferida
no estômago.
- Preocupações coisa nenhuma, pois eu sei no certo
que vou vencer. Bem, e você tem preocupações?
- Não, não tenho nenhuma. Acho que nâo preciso
vencer na vida.
Foi a única vez em que f alou de si própria para
Olímpico de Jesus. Estava habituada a se esquecer de
si mesma. Nunca quebrava seus hábitos, tinha medo de
inventar.
- Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um
homem escreveu um livro chamado "Alice no País das
Maravilhas" e que era também um matemático? Falaram
também em "álgebra". O que é que quer dizer "álgebra"?
- Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira
mulher. Desculpe a palavra de eu ter dito fresco
porque isso é palavrão para moça direita.
- Nessa rádio eles dizem essa coisa de "cultura" e
palavras difíceis, por exemplo: o que quer dizer
"eletrônico"?
Silêncio.
- Eu sei mas não quero dizer.
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- Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do
tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic. A rádio Relógio diz
que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer
dizer cultura?
- Cultura é cultura - continuou ele emburrado. --
Você também vive me encostando na parede.
- é que muita coisa eu não entendo bem. O que quer
dizer "renda per capita"?
- Ora, é fácil, é coisa de médico.
- O que dizer rua Conde de Bonfim? O que é que
conde? É príncipe?
- Não contou que o roubara no mictório da fábrica: o
colega o tinha deixado na pia quando lavara as mãos.
Ninguém soube, ele era um verdadeiro técnico em
roubar: não usava o relógio de pulso no trabalho.
- Sabe o que mais eu aprendi? Eles disseram que se
devia ter alegria de viver. Então eu tenho. Eu também
ouvi uma música linda, eu até chorei.
- Era samba?
- Acho que era. E cantada por um homem chamado
Carusso que se diz que já morreu. A voz era tão macia
que até doía ouvir. A música chamava-se "Una Furtiva
Lacrima". Não sei por que eles não disseram lágrima.
"Una Furtiva Lacrima" fora a única coisa belíssima
na sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou
cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão
desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara
chorar. Era a primeira vez que chorava,
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não sabia que tinha tanta água nos olhos. Chorava,
assoava o nariz sem saber mais por que chorava.
Não chorava por causa da vida que levava: porque, não
tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que
com ela era "assim". Mas também creio que chorava
porque, através da música, adivinhava talvez que havia
outros modos de sentir, havia existências mais
delicadas e até com um certo luxo de alma.
Muitas coisas sabia que não sabia entender.
"Aristocracia" significaria por acaso uma graça
concedida? Provavelmente. Se é assim, que assim seja.
O mergulho na vastidão do mundo musical que não
carecia de se entender. Seu coração disparara. E junto
de Olímpico ficou de repente corajosa e arrojando-se
no desconhecido de si mesma disse:
- Eu acho que até sei cantar essa música. Lá-lá-lálá-
lá.
- Você até parece uma muda cantando. Voz de cana
rachada.
- Deve ser porque é a primeira vez que canto na
vida.
Ela achava que "lacrima" em vez de lágrima era erro
do homem da rádio. Nunca lhe ocorrera a existência de
outra língua e pensava que no Brasil se falava
brasileiro. Além dos cargueiros do mar nos domingos,
só tinha essa música. O substrato último da música era
a sua única vibração.
E o namoro continuava ralo. Ele:
- Depois que minha santa mãe morreu, nada mais me
prendia na Paraíba.
- De que é que ela morreu?
- De nada. Acabou-se a saúde dela.
Ele falava coisas grandes mas ela prestava atenção
nas coisas insignificantes como ela própria.
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Como não tinha lenço para limpar a lama e o sangue,
enxugou o rosto com a saia, dizendo:
- Você não olhe enquanto eu estiver me limpando, por
favor, porque é proibido levantar a saia.
Mas ele emburrara de vez e não disse mais nenhuma
palavra. Passou vários dias sem procurá-la: seu brio
fora atingido.
Afinal terminou por voltar para ela. Por motivos
diferentes entraram num açougue. Para ela o cheiro da
carne crua era um perfume que a levitava toda como ,se
tivesse comido. Quanto a ele, o que queria ver era o
açougueiro e sua faca amolada. Tinha inveja do
açougueiro e também queria ser. Meter a faca na carne
o excitava. Ambos saíram do açougue satisfeitos.
Embora ela se perguntasse: que gosto terá esta carne?
E ele se perguntava: como é que uma pessoa consegue
ser açougueiro? Qual era o segredo? (O pai de Glória
trabalhava num açougue belíssimo.) Ela disse:
- Eu vou ter tanta saudade de mim quando morrer.
- Besteira, morre-se e morre-se de uma vez.
- Não foi o que minha tia me ensinou.
- Que tua tia se dane.
- Sabe o que eu mais queria na vida? Pois era ser
artista de cinema. Só vou ao cinema no dia em que o
chefe me paga. Eu escolho cinema poeira, sai mais
barato. Adoro as artistas. Sabe que Marylin era toda
cor-de-rosa?
- E você tem cor de suja. Nem tem rosto nem corpo
para ser artista de cinema.
- Você acha mesmo?
- Tá na cara.
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- Não gosto de ver sangue no cinema. Olhe, sangue eu
não posso mesmo ver porque me dá vontade de vomitar.
- Vomitar ou chorar?
- Até hoje com a graça de Deus nunca vomitei.
- É, dessa vaca não sai leite.
Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito
se pensava. Mas Olímpico não só pensava como usava
palavreado fino. Nunca esqueceria que no primeiro
encontro ele a chamara de "senhorina", ele fizera dela
um alguém. Como era um alguém, comprou um batom corde-
rosa. O seu diálogo era sempre oco. Dava-se conta
longinquamente de que nunca dissera uma palavra
verdadeira. E "amor" ela não chamava de amor, chamava
de não-sei-o-quê.
- Olhe, Macabéa...
- Olhe o quê?
- Não, meu Deus, não é "olhe' de ver, é "olhe" como
quando se quer que uma pessoa escute! Está me
escutando?
- Tudinho, tudinho!
- Tudinho o quê, meu Deus, pois se eu ainda não
falei! Pois olhe vou lhe pagar um cafezinho no
botequim. Quer?
- Pode ser pingado com leite?
- Pode, é o mesmo preço, se for mais, o resto você
paga.
Macabéa não dava nenhuma despesa a Olímpico. Só
dessa vez quando lhe pagou um cafezinho pingado que
ela encheu de açúcar quase a ponto de vomitar mas
controlou-se para não fazer vergonha. O açúcar ela
botou muito para aproveitar.
E uma vez os dois foram ao Jardim Zoológico, ela
pagando a própria entrada. Teve muito espanto
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ao ver os bichos. Tinha medo e não os entendia: por
que viviam? Mas quando viu a massa compacta, grossa,
preta e roliça do rinoceronte que se movia em câmara
lenta, teve tanto medo que se mijou toda. O
rinoceronte lhe pareceu um erro de Deus, que me perdoe
por favor, sim? Mas não pensara em Deus nenhum, era
apenas um modo de. Com a graça de alguma divindade
Olímpico nada percebeu e ela disse a ele:
- Estou molhada porque me sentei no banco molhado. E
ele nada percebeu. Ela rezou automaticamente em
agradecimento. Não era agradecimento a Deus, só estava
repetindo o que aprendera na infância.
- A girafa é tão elegante, não é?
- Besteira, bicho não é elegante.
Ela teve inveja da girafa que pairava tão longe no
ar. Tendo visto que seus comentários sobre bichos não
agradavam Olímpico, procurou outro assunto:
- Na Rádio Relógio disseram uma palavra que achei
meio esquisita: mimetismo.
Olímpico olhou-a desconfiado:
- Isso é lá coisa para moça virgem falar? E para que
serve saber demais? O Mangue está cheio de raparigas
que fizeram perguntas demais.
- Mangue é um bairro?
- É lugar ruim, só pra homem ir. Você não vai
entender mas eu vou lhe dizer uma coisa: ainda se
encontra mulher barata. Você me custou pouco, um
cafezinho. Não vou gastar mais nada com você, está
bem?
Ela pensou: eu não mereço que ele me pague nada
porque me mijei.
-- Página 73
Depois da chuva do Jardim Zoológico, Olímpico não
foi mais o mesmo: desembestara. E sem notar que ele
próprio era de poucas palavras como convém a um homem
sério, disse-lhe:
- Mas puxa vida! Você não abre o bico e nem tem
assunto!
Então aflita ela lhe disse:
- Olhe, o Imperador Carlos Magno era chamado na
terra dele de Carolus! E você sabia que a mosca voa
tão depressa que se voasse em linha reta ela ia passar
pelo mundo todo em 28 dias?
- Isso é mentira!
- Não é não, juro pela minha alma pura que aprendi
isso na Rádio Relógio!
- Pois não acredito.
- Quero cair morta neste instante se estou mentindo.
Quero que meu pai e minha mãe fiquem no inferno, se
estou lhe enganando.
- Vai ver que cai mesmo morta. Escuta aqui:
você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo?
- Não sei bem o que sou, me acho um pouco... de
quê? . . . Quer dizer não sei bem quem eu sou.
- Mas você sabe que se chama Macabéa, pelo menos
isso?
- É verdade. Mas não sei o que está dentro do meu
nome. Só sei que eu nunca fui importante ...
- Pois fique sabendo que meu nome ainda será
escrito nos jornais e sabido por todo o mundo.
Ela disse para Olímpico:
- Sabe que na minha rua tem um galo que canta?
- Por que é que você mente tanto?
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- Juro, quero ver minha mãe cair morta se não é
verdade!
- Mas sua mãe já não morreu?
- Ah, é mesmo ... que coisa ... (Mas e eu? E eu que
estou contando esta história que nunca me aconteceu e
nem a ninguém que eu conheça? Fico abismado por saber
tanto a verdade. Será que o meu ofício doloroso é o de
adivinhar na carne a verdade que ninguém quer
enxergar? Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei
uma vez de relance o olhar de uma nordestina
amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro.
Quanto ao paraibano, na certa devo ter-lhe fotografado
mentalmente a cara - e quando se presta atenção
espontânea e virgem de imposições, quando se presta
atenção a cara diz quase tudo.)
E agora apago-me de novo e volto para essas duas
pessoas que por força das circunstancias eram seres ;
meio abstratos.
Mas ainda não expliquei bem Olímpico. Vinha do
sertão da Paraíba e tinha uma resistência que provinha
da paixão por sua terra braba e rachada pela seca.
Trouxera consigo, comprada no mercado da Paraíba, uma
lata de vaselina perfumada e um pente, como posse sua
e exclusiva. Besuntava o cabelo preto até encharcá-lo.
Não desconfiava que as cariocas tinham nojo daquela
meladeira gordurosa. Nascera crestado e duro que nem
galho seco de árvore ou pedra ao sol. Era mais
passível de salvação que Macabéa pois não fora à toa
que matara um homem, desafeto seu, nos cafundós do
sertão, o canivete comprido entrando mole-mole no
fígado macio do sertanejo. Guardava disso segredo
absoluto, o que lhe dava a força que um segredo dá.
Olímpico era
-- Página 75
macho de briga. Mas fraquejava em relação a
enterros: às vezes ia, três vezes por semana a enterro
de desconhecidos, cujos anúncios saíam nos jornais e
sobretudo no "O dia": e seus olhos ficavam cheios de
lágrimas. Era uma fraqueza, mas quem não tem a sua.
Semana em que não havia enterro, era semana vazia
desse homem que, se era doido, sabia muito bem o que
queria. De modo que não era doido coisa alguma.
Macabéa, ao contrário olímpico, era fruto do
cruzamento "o quê" com "o quê". Na verdade ela parecia
ter nascido de uma idéia vaga qualquer dos pais
famintos. Olímpico pelo menos roubava sempre que podia
e ate do vigia de obras onde era sua dormida. Ter
matado e roubar faziam com que ele não fosse um
simples acontecido qualquer, davam-lhe uma categoria,
faziam dele um homem com honra até lavada. Ele também
se salvava mais do que Macabéa o que tinha grande
talento para desenhar rapidamente perfeitas
caricaturas ridículas dos retratos de poderosos nos
jornais. Era a sua vingança. Sua única bondade com
Macabéa foi dizer-lhe que arranjaria para ela emprego
na metalúrgica quando fosse despedida. Para ela a
promessa fora um escândalo de alegria (explosão)
porque na metalúrgica encontraria a sua única conexão
atual com o mundo: o próprio Olímpico. Mas Macabéa de
um modo geral não se preocupava com o próprio futuro:
ter futuro era luxo: Ouvira Rádio Relógio que havia
sete bilhões de pessoas no mundo. Ela se sentia
perdida. Mas com a tendência que tinha para ser feliz
logo se consolou: havia sete bilhões de pessoas para
ajudá-la. Macabéa gosta de filme de terror ou de
musicais, Tinha predileção por mulher enforcada ou que
-- Página 76
levava um tiro no coração. Não sabia que ela própria
era uma suicida embora nunca lhe tivesse ocorrido se
matar. É que a vida lhe era tão insossa que nem pão
velho sem manteiga. Enquanto Olímpico era um diabo
premiado e vital e dele nasceriam filhos, ele tinha o
precioso sêmen. E como já foi dito ou não foi dito
Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo cozido.
Ah pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho, um
prato de sopa um beijo na testa enquanto a cobria com
um cobertor. E fazer que quando ela acordasse
encontrasse simplesmente o grande luxo de viver.
Olímpico na verdade não mostrava satisfação nenhuma
em namorar Macabéa - é o que eu descubro agora.
Olímpico talvez visse que Macabéa não tinha força de
raça, era subproduto. Mas quando ele viu a colega da
Macabéa, sentiu logo que ela tinha classe.
Glória possuía no sangue um bom vinho português e
também era amaneirada no bamboleio do caminhar por .
causa do sangue africano escondido. Apesar de branca,
tinha em si a força da mulatice. Oxigenava em amareloovo
os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre
pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que
significava um degrau a mais para Olímpico. Além de
ter uma grande vantagem que nordestino não podia
desprezar. É que Glória lhe dissera, quando lhe fora
apresentada por Macabéa: "sou carioca da gema!"
Olímpico não entendeu
o qtte significava "da gema" pois esta era uma gíria
ainda do tempo de juventude do pai de Glória. O
fato de ser carioca tornava-a pertencente ao
ambicionado clã do sul do país. Vendo-a, ele logo
adivinhou
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que, apesar de feia, Glória era bem alimentada. E
isso fazia dela material de boa qualidade.
Enquanto isso o namoro com Macabéa entrara em rotina
morna, se é que alguma vez haviam experimentado o
quente. Muitas vezes ele não aparecia no ponto do
ônibus. Mas pelo menos era um namorado. E Macabéa só
pensava no dia em que ele quisesse ficar noivo. E
casar.
Posteriormente de pesquisa em pesquisa, ele soube,
que Glória tinha mãe, pai é comida quente em hora
certa. Isso tornava-a de primeira qualidade Olímpico
caiu em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava
num açougue.
Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira.
Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu
próprio fim.
Esqueci de dizer que era realmente de se espantar
que para corpo quase murcho de Macabéa tão vasto
fosse o seu sopro de vida quase ilimitado e tão rico
como o de uma donzela grávida, engravidada por si
mesma, por partenogênese; tinha sonhos esquizóides
nos quais apareciam gigantescos animais antediluvianos
como se ela tivesse vivido em épocas as mais remotas
desta terra sangrenta.
Foi então (explosão) que se desmanchou de repente o
namoro entre Olímpico e Macabéa. Namoro talvez
esquisito mas pelo menos parente de algum amor pálido.
Ele avisou-lhe que encontrara outra moça é que esta
era Glória. (Explosão) Macabéa bem viu o que aconteceu
com Olímpico e Glória: os olhos de ambos se haviam
beijado.
Diante da cara um pouco inexpressiva demais de
Macabéa, ele até que quis lhe dizer alguma gentileza
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suavizante na hora do adeus para sempre. E ao se
despedir lhe disse:
- Você, Macabéa, é um cabelo na sopa dá vontade de
comer. Não dá vontade de comer. Me desculpe se eu lhe
ofendi, mas sou sincero. Você está ofendida?
- Não, não, não! Ah por favor quero ir embora! Por
favor me diga logo adeus!
É melhor eu não falar em felicidade ou infelicidade
- provoca aquela saudade desmaiada e lilás, aquele
perfume de violeta, as águas geladas da maré mansa em
espumas pela areia. Eu não quero provocar porque dói.
Maccabéa, esqueci de dizer tinha uma infelicidade
era sensual. Como é que num corpo cariadó como o dela
cabia tanta lascívia, sem que ela soubesse que tinha?
Mistério. Havia, no começo do namoro, pedido a
Olímpico um retratinho tamanho 3x4 onde ele saiu rindo
para mostrar o canino de ouro e ela ficava tão
excitada que rezava três pai-nossos e duas ave-marias
para se acalmar.
Na hora em que Olímpico lhe dera o fora, a reação
dela (explosão) veio de repente inesperada: pôs-se sem
mais nem menos a rir. Ria por não ter se lembrado de
chorar. Surpreendido. Olímpico, sem entender, deu
gargalhadas.
Ficaram rindo os dois. Aí ele teve uma intuição que
finalmente era uma delicadeza: perguntou-lhe se ela
estava rindo de nervoso. Ela parou de rir e disse
muito, muito cansada:
- Não sei não . . .
Macabéa entendeu uma coisa: Glória era um
estardalhaço de existir. E tudo devia ser porque
Glória era gorda. A gordura sempre fora o ideal
secreto de Macabéa, pois em Maceió ouvira um rapaz
dizer
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para uma gorda que passava na rua: "a tua gordura é
formosura!" A partir de então ambicionara ter carnes e
foi quando fez o único pedido de sua vida. Pediu que a
tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau. (Já
então tinha tendência para anúncios.) A tia
perguntara-lhe: você pensa lá que é filha de família
querendo luxo?
Depois que Olímpico a despediu, já que ela não era
uma pessoa triste, procurou continuar como se nada
tivesse perdido. (Ela não sentiu desespero, etc. etc.)
Também que é que ela podia fazer? Pois ela era
crônica. E mesmo tristeza também era coisa de rico,
era para quem podia, para quem não tinha o que fazer.
Tristeza era luxo.
Esqueci de dizer que no dia seguinte ao que ele lhe
dera o fora ela teve uma idéia. Já que ninguém lhe
dava festa, muito menos noivado, daria uma festa para
si mesma. A festa consistiu em comprar sem necessidade
um batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas
vermelho vivante. No banheiro da firma pintou a boca
toda e até fora dos contornos para que os seus lábios
finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de
Marylin Monroe. Depois de pintada ficou olhando no
espelho a figura que por sua vez a olhava espantada.
Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe
tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca,
com quebra-dentes e rasga-carne (pequena explosão).
Quando voltou
para a sala de trabalho Glória riu-se dela:
- Você endoidou, criatura? Pintar-se como uma
endemoniada? Você até parece mulher de soldado.
- Sou moça virgem! Não sou mulher de soldado e
marinheiro.
-- Página 80
- Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?
- Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas
eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.
- Eu não sou feia!!! - gritou Glória.
Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de
não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela
não tinha anjo da guarda. Mas se arranjava como podia.
Quanto ao mais, ela era quase impessoal. Glória
perguntou-lhe:
- Por que é 'que você me pede tanta aspirina? Não
estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar.
Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar.
Transformara-se em simplicidade orgânica. E arrumara
um jeito de achar nas coisas simples e honestas a
graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo passar.
Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava
o grande tempo. Era supersônica de vida. Ninguém
percebia que ela ultrapassava com sua existência a
barreira do som. Para as pessoas outras ela não
existia. A sua única vantagem sobre os outros era
saber engolir pílulas sem ágúa, assim a seco. Glória,
que lhe dava aspirinas, admirava-a muito, o que dava a
Macabéa um banho de calor gostoso no coração. Glória
advertiu-a:
- Um dia a pílula te cola na parede da garganta que
nem galinha de pescoço meio cortado, correndo por aí.
-- Página 81
Um dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão
grande que no tronco ela nunca poderia abraça-la. Mas
apesar do êxtase ela não morava com Deus. Rezava
indiferentemente. Sim. Mas o misterioso Deus dos
outros lhe dava às vezes um estado de graça. Feliz,
feliz, feliz. Ela de :.alma quase. voando. E também
vira o disco-voador. Tentara contar a Glória mas não
tivera jeito, não sabia falar e mesmo contar o quê? O
ar? Náo se conta tudo porque o tudo é um oco nada.
As vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então
ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e
sorrindo até passar (parece-me que esse Deus era muito
misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe tirava). Em
pé pensando em nada, os olhos moles.
Nem Glória era uma amiga: só colega. Glória roliça,
branca e morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque não
se lavava muito, com certeza. Oxigenava os pêlos das
pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava:
Olímpico: será que ela é loura embaixo também?
Em relação a Macabéa, Glória tinha um vago senso de
maternidade. Quando Macabéa lhe parecia murcha demais,
dizia:
- E esse ar é por causa de?
Macabéa, que nunca se irritava com ninguém,
arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de deixar a
frase inacabada. Glória usava uma forte água-decolônia
de sândalo e Macabéa, que tinha estômago
delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada
dizia porque Glória era agora a sua conexão com o
mundo. Este mundo fora composto pela tia, Glória, o
Seu Raimundo e Olímpico - e de. muito longe as moças
com as quais repartia o quarto. Em compensação
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se conectava com o retrato .de Greta Garbo quando
moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava
Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse.
Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher
deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que
ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garb cuja
trágica sensualidade estae em pedestal solitário. O
que ela queria, como eu já disse era parecer com
Marylin. Um dia, em raro momento de confissão, disse a
Glória quem ela gostaria de ser. E Glória caiu na
gargalhada:
- Logo ela, Maca? Vê se te manca!
Glória era toda contente consigo mesma: dava-se
grande valor. Sabia que o sestro molengole de mulata,
uma pintinha marcada junto da boca, só para dar uma
gostosura, e um buço forte que ela oxigenava. Sua boca
era loura. Parecia até um bigode. Era uma safadinha
esperta mas tinha força de coração. Penalizava-se com
Macabéa .mas ela que se arranjasse, quem mandava ser
tola? E Glória pensava: não tenho nada a ver com ela.
Ninguém pode entrar no coração de ninguém. Macabéa até
que falava com Glória - mas nunca de peito aberto.
Glória tinha um traseiro alegre e fumava cigarro
mentolado para manter um hálito bom nos seus beijos
interniáveis com Olímpico. Ela era muito satisfatona:
tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E havia
nela um desafio que se resumia em "ninguém manda em
mim". Mas lá um dia pôs-se a olhar e a olhar e a olhar
Macabéa. De repente não agüentou e com um sotaque
levemente português disse:
- Oh mulher, não tens cara?
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comia-se muito.. Glória morava na rua General nãosei-
o-quê, muito contente de morar em rua de militar,
sentia-se mais garantida. Em sua casa até telefone
tinha. Foi talvez essa uma das poucas vezes em que
Macabéa viu que não havia lugar no mundo e exatamente
porque Glória tanto lhe dava. Isto é, um farto copo de
grosso chocolate de verdade misturado com leite e
muitas espécies de roscas açucaradas, sem falar num
pequeno bolo. Macabéa, enquanto Glória saía da sala -
roubou escondido um biscoito. Depois pediu perdão ao
Ser abstrato que dava e tirava. Sentiu-se ,perdoada. O
Ser a perdoava de tudo.
No dia seguinte, segunda-feira, não sei se por causa
do fígado atingido pelo chocolate ou por causa de
nervosismo de beber coisa de rico, passou mal. Mas
teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do
chocolate. Dias depois, recebendo o salário, teve a
audácia de pela primeira vez na vida (explosão)
procurar o médico barato indicado por Glória: Ele a
examinou, a examinou e de novo a examinou.
- Você faz regime para emagrecer, menina? Macabéa
não soube o que responder.
- O que é que você come?
- . Çachorro-quente.
- Só?
- As vezes como sanduíche de mortadela.
- Que é que você bebe? Leite?
- Só café e refrigerante.
- Que refrigerante? - perguntou ele sem saber
o que falar. A toa indagou:
- Você às vezes tem crise de vômito?
-- Página 85
- Ah, nunca!- exclamou muito espantada, pois não era
doída de desperdiçar comida, como eu disse.
O médico olhou-a e bem sabia que ela não fazia
regime para emagrecer. Mas era-lhe mais cômodo
insistir em dizer que não fizesse dieta de
emagrecimento. Sabia que era assim mesmo e que era
médico de pobres. Foi o que disse enquanto lhe
receitava um tônico que ela depois nem comprou, achava
que ir ao médico por si só já curava. Ele acrescentou
irritado sem atinar com o porquê de sua súbita
irritação e revolta:
- Essa história de regime de cachorro-quente é pura
neurose e o que está precisando é procurar um
psicanalista!
Ela nada entendeu mas pensou que o médico esperava
que ela sorrisse. Então sorriu.
O médico muito gordo e suado tinha tique nervoso qe
o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os
lábios. O resultado era parecer que estava fazendo
beicinho de bebê quando está prestes a chorar.
Esse médico não tinha objetivo nenhum. A medida era
apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor á
profissão nem a doentes. Era desatento e achava a
pobreza uma coisa feia. Trabalhava para os pobres
detestando lidar com eles. Eles eram para ele o
rebotalho de uma sociedade muito alta á qual também
ele não pertencia. Sabia que estava desatualizado na
medicina e nas novidades clínicas mas para pobre
servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer
exatamente o que queria: nada.
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- Ouvi dizer que no médico se tira a roupa mas eu
não tiro coisa nenhuma.
Passara-a pelo raio X e dissera:
- Você está com começo de tuberculose pulmonar.
Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim.
Bem, como era uma pessoa muito educada, disse:
- Muito obrigada, sim?
O médico simplesmente se negou a ter piedade. E
acrescentou: quando você não souber o que comer faça
um espaguete bem italiano.
E acrescentou com um mínimo de bondade a que ele se
permitia já que se considerava também injustiçado pela
sorte:
- Não é tão caro assim ...
- Esse nome de comida que o senhor falou eu nunca
comi na vida. É bom?
- Claro que é! Olhe só a minha barriga! Isso é
resultado de boas macarronadas e muita cerveja.
Dispense a cerveja, é melhor não beber álcool. Ela
repetiu cansada:
- Álcool?
- Sabe de uma coisa? Vá para os raios que te partam!
Sim, estou apaixonado por Mácabéa a minha querida
Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato total
pois ela não é para ninguém. Apaixonado por seus
pulmões frágeis, a magricela. Quisera eu tanto tanto
que ela abrisse a boca e dissesse:
- Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém;
todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não
acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem
quando estou sozinha.
-- Página 87
Maca, porém, jamais disse frases; em primeiro lugar
por ser de parca palavra. E acontece que não tinha
consciência de si e não reclamava nada, até pensava
que era feliz. Não se tratava de uma idiota mas tinha
a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava
atenção em si mesma: ela não sabia. (Vejo que tentei
dar a Maca uma situação minha: eu preciso de algumas
horas de solidão por dia senão "me muero".)
Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou
sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um
momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por
que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a
gravidade é menor que a força do ar que as levanta.
Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva. a
minha vingança.
Nada contou a Glória porque de um modo geral mentia:
tinha vergonha da verdade. A mentira era tão mais
decente. Achava que boa educação é saber mentir.
Mentia também para si mesma em devaneio volátil na sua
inveja da colega. Glória, por exemplo, era inventiva:
Macabéa viu-a se despedir de Olímpico beijando a ponta
dos próprios dedos e jogando o beijo no ar como se
solta passarinho, o que Macabéa nunca pensaria em
fazer. (Esta história são apenas fatos não trabalhados
de matéria-prima e que me atingem direto antes de eu
pensar. Sei muita coisa que não posso dizer. Aliás
pensar o quê?) Glória, talvez por remorso, disse-lhe:
-- Página 88
- Olímpico é meu mas na certa você arranja outro
namorado: Eu digo que ele é meu porque foi o que a
minha cartomante me disse e eu não quero desobedecer
porque ela é médium e nunca erra. Por que você não
paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas?
- É muito caro?
Estou absolutamente cansado de literatura; só a
mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada
mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A
procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me
invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no
lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a
necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado
me atrai, o que é proibido me fascina. Quero ser porco
é galinha matá-los e beber-lhes o sangue. Penso no
sexo de Macabéa, miúdo mas inesperadamente coberto de
grossos e abundantes pêlos negros - seu sexo era a
única marca veemente de sua existência.
Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um nascido
girassol num túmulo. Quanto a mim, estou cansado.
Talvez da companhia de Macabéa, Glória, Olímpico. O
médico me enjoou com sua cerveja. Tenho que
interromper esta história por uns três dias.
Nestes últimos três dias, sozinho, sem personagens,
despersonalizo-me e tiro-me de mim como
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quem tira uma roupa. Despersonalizo-me a ponto de
adormecer.
E agora emerjo e sinto falta de Macabéa.
Continuemos:
- É muito caro?
- Eu lhe empresto. Inclusive madama Carlota também
quebra feitiço que tenham feito contra a gente. Ela
quebrou o meu à meia-noite em ponto de uma sexta-feira
treze de agosto, lá para lá de S. Miguel, num terreiro
de macumba. Sangraram em cima de mim um porco preto,
sete galinhas brancas e me rasgaram a roupa que já
estava toda ensangüentada. Você tem coragem?
- Não sei se posso ver sangue.
Talvez porque sangue é a coisa secreta de cada um, a
tragédia vivificante. Mas Macabéa só sabia que não
podia ver sangue, o resto fui eu que pensei. Estou me
interessando terrivelmente por fatos: fatos são pedras
duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas
pelo mundo.
Bem.
Diante da súbita ajuda, Macabéa, que nunca se
lembrava de pedir, pediu licença ao chefe inventando
dor de dente e aceitou o dinheiro emprestado que nem
sabia quando ia devolver. Essa audácia lhe deu um
inesperado ânimo para audácia maior (explosão): como o
dinheiro era emprestado, ela raciocinou tortamente que
não era dela e então podia gastá-lo. Assim pela
primeira vez na vida tomou um táxi e foi para Olaria.
Desconfio que ousou tanto por desespero, embora não
soubesse que estava desesperada, é
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que estava gasta até a última lona, a boca a se
colar no chão.
Não foi difícil achar o endereço da madama Carlota e
essa facilidade lhe pareceu bom sinal. O apartamento
térreo ficava na esquina de um beco e entre as pedras
do chão crescia capim - ela o notou porque sempre
notava o que era pequeno e insignificante. Pensou
vagamente enquanto tocava a campainha da porta: capim
é tão fácil e simples. Tinha pensamentos gratuitos e
soltos porque embora à toa possuía muita liberdade
interior.
A própria madama Carlota atendeu-a, olhou-a com
naturalidade e disse:
- O meu guia já tinha me avisado que você vinha me
ver, minha queridinha. Como é mesmo o seu nome? Ah, é?
É muito lindo. Entre, meu benzinho.
Tenho uma cliente na salinha dos fundos, você espera
aqui. Aceita um cafezinho, minha florzinha?
Macabéa sentou-se um pouco assustada porque
faltavam-lhe antecedentes de tanto carinho. E bebeu
com cuidado pela própria frágil vida, o café fria e
quase sem açúcar. Enquanto isso olhava com admiração e
respeito a sala onde estava. Lá tudo era de luxo.
Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás. E até
flores de plástico. Plástico era o máximo. Estava
boquiaberta.
Afinal saiu dos fundos da casa uma moça com olhos
muito vermelhos e madama Carlota mandou Macabéa
entrar. (Como é chato lidar com fatos, o cotidiano me
aniquila, estou com preguiça de escrever esta história
que é um desabafo apenas. Vejo que escrevo aquém e
além de mim. Não me responabilizo pelo que agora
escrevo).
-- Página 91
Continuemos, pois, embora com esforço: madama
Carlota era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda
com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas
rodelas de ruge brilhoso. Parecia um bonecão de louça
meio quebrado. (Vejo que não dá para aprofundar esta
história. Descrever me cansa.)
- Não tenha medo de mim, sua coisinha engraçadinha.
Porque quem está ao meu lado, está no mesmo instante
ao lado de Jesus.
E apontou o quadro colorido onde havia exposto em
vermelho e dourado o coração de Cristo.
- Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele
sempre me ajudou. Olha, quando eu era mais moça tinha
bastante categoria para levar vida fácil de mulher. E
era fácil mesmo, graças a Deus. Depois, quando eu já
não valia muito no mercado, Jesus sem mais nem menos
arranjou um jeito de eu fazer sociedade com uma
coleguinha e abrimos uma casa de mulheres. Aí eu
ganhei dinheiro e pude comprar este apartamentozinho
térreo. Larguei a casa de mulheres porque era difícil
tomar conta de tantas moças que só faziam era querer
me roubar. Você está interessada no que eu digo?
- Muito.
- Pois faz bem porque eu não minto. Seja também fã
de Jesus porque o Salvador salva mesmo. Olhe, a
polícia não deixa pôr cartas, acha que estou
explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a
polícia consegue desbancar Jesus. Você notou que Ele
até me conseguiu dinheiro para ter mobília de grãfino?
- Sim senhora.
-- Página 92
- Ah, então você também acha, não é? Pelo que vejo
você: é inteligente, ainda bem, porque a inteligência
me salvou.
Madama Carlota enquanto falava tirava de uma caixa
aberta um bombom atrás do outro e ia enchendo a boca
pequena. Não ofereceu nenhum a Macabéa. Esta, que,
como eu disse, tinha tendência a notar coisas
pequenas, percebeu que dentro de cada bombom mordido
havia um líquido grosso. Não cobiçou o bombom pois
aprendera que as coisas são dos outros.
- Eu era pobre, comia mal, não tinha roupas boas.
Então caí na vida. E gostei porque sou uma pessoa
muito carinhosa, tinha carinho por todos os homens.
Além do mais, na zona era divertido porque havia muita
conversa entre as coleguinhas. Nos éramos muito unidas
e só de vez em quando eu me atracava com uma. Mas isso
também era bom, porque eu era muito forte e gostava de
bater, de puxar cabelos e morder. Por falar em morder,
você não pode imaginar que dentes lindos eu tinha;
todos branquinhos e brilhantes. Mas se estragaram
tanto que hoje uso dentadura postiça. Você acha que se
nota que são postiços?
- Não senhora.
- Olhe, eu era muito asseada e não pegava doença
ruim. Só uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina
me curou. Eu era mais tolerante do que as outras
porque sou bondosa e afinal estava dando o que era
meu. Eu tinha um homem de quem eu gostava
de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e
não queria se gastar em trabalho nenhum. Ele era o meu
luxo e eu até apanhava dele. Quando ele me dava uma
surra eu via que ele gostava de mim, eu -
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gostava de apanhar. Com ele era amor, com os outros
eu trabalhava. Depois que ele desapareceu, eu, para
não sofrer, me divertia amando mulher. O carinho de
mulher é muito bom mesmo, eu até lhe aconselho porque
você é delicada demais para suportar a brutalidade dos
homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é
gostoso, entre mulheres o carinho é muito mais fino.
Você tem chance de ter uma mulher?
- Não senhora.
- É que também você nem se enfeita. Quem não se
enfeita, por si mesma se enjeita. Ai que saudades da
zona! Eu peguei o melhor tempo do Mangue que era
freqüentado por verdadeiros cavalheiros. Além do preço
fixo, eu muitas vezes ganhava gorjeta. Ouvi dizer que
o Mangue está acabando, que a zona agora só tem uma
meia dúzia de casas. Em meu tempo havia umas duzentas.
Eu ficava em pé encostada na porta vestindo só
calcinha e sutiã de renda transparente. Depois, quando
eu já estava ficando muito gorda e perdendo os dentes,
é que me tornei caftina.
Você sabe o que quer dizer caftina? Eu uso essa
palavra porque nunca tive medo de palavras. Tem gente
que se assusta com o nome das coisas. Vocezinha tem
medo de palavras, benzinho?
- Tenho, sim senhora.
- Então vou me cuidar para não escapulir nenhum
palavrão, fique sossegada. Ouvi dizer que o Mangue tem
um cheiro insuportável. No meu tempo a gente punha
incenso queimando para dar um ar limpo na casa. Até
tinha cheiro de igreja. E tudo era muito respeitoso e
com muita religião. Quando eu era mulher-dama já ia
juntando meu dinheirinho, dando porcentagem à chefa, é
claro. De vez em
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quando havia tiros mas nada comigo. Minha florzinha,
estou te aborrecendo com minha história? Ah, não Você
tem paciência de esperar pelas cartas?
- Tenho, sim senhor.
Então madama Carlota contou-lhe que lá no Mangue, no
seu cubículo, havia enfeitos lindos nas paredes.
- Você sabe, meu amor, que cheiro de homem é bom?
Faz bem à saúde. Você já sentiu cheiro de homem?
Macabéa separou um monte com a mão trêmula: pela
primeira vez ia ter um destino. Madana Carlota
9explosão) era um ponto alto na sua existência. Era o
vórtice de sua vida e esta se afunilara toda para
desembocar na grande dama cujo ruge brilhante dava-lhe
à pele arregalou os olhos.
- Mas, Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que
meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que
horror!
Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida
fora tão ruim.
Madana acertou tudo sobre o seu passado, até lhe
disse que ela mal conhecera pai e mãe e que fora
criada por uma parente muito madrastra má. Macabéa
espantou-se com a revelação: até agora sempre julgara
que o que a tia lhe fizera era educá-la para que ela
se tornasse uma moça mais fina. Madama acrescentou
-- Página 95
- Quando ao presente, queridinha, está horrível
também. Você vai perder o emprego e já perdeu o
namorado, coitada de vocezinha. Se não puder, não me
pague a consulta, sou madana de recursos.
Macabéa, pouco habituada a receber de graça, recusou
a dádiva mas com o coração todo grato.
- E eis que (explosão) de repente aconteceu: o rosto
da madana se acendeu todo iluminado:
- Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar!
Preste atenção, minha flor, porque é de maior
importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e
muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo
mais a partir do momento em que você vai voltar e
propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe
vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe
despedir.
Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança.
Mas agora ouvia a madana como se ouvisse uma
trombeta vinda dos céus - enquanto suportava uma
trombeta vinda do céus - Enquanto suportava uma forte
taquicardia. Madana tinha razão: Jesus enfim prestava
atenção nela. Seus olhos estavam arregalados por uma
súbita voaracidade pelo futuro (explosão). E eu também
estou com esperança enfim.
- E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela
porta adentro em horas da noite trazido por um homem
estrangeiro. Você conhece algum estrangeiro?
- Não senhora - disse Macabéa já desanimando.
- Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos
azuis ou verde ou castanhos ou pretos. E se não fosse
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porque você gosta de seu ex-namorado, esse gringo ia
namorar você. Não! Não! Não! Agora estou vendo outra
coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou
também ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro
parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com
você! Ele tem muito dinheiro, todos os gringos são
ricos. Se não me engano, e nunca me engano, ele vai
lhe dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai se
vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai
ganhar!
Macabéa começou (explosão) a tremilicar toda por
causa do lado penoso que há na excessiva felicidade.
Só lhe ocorreu dizer:
- Mas casaco de pele não precisa no calor do Rio...
- Pois vai ter só para se enfeitar. Faz tempo não
boto cartas tão boas. E sou sempre sincera: por
exemplo, acabei de ter a franqueza de dizer para
aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropelada,
ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela?
E agora vou lhe dar um feitiço que você deve guardar
dentro deste sutiã que quase não tem seio, coitada,
bem em contacto com a pele. Você não tem busto mas vai
engordar e vai ganhar corpo. Enquanto você não
engordar, ponha dentro do sutiã chumaços de algodão
para fingir que tem. Olha, minha queridinha, esse
feitiço também sou obrigada por Jesus a lhe cobrar
porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou
para um asilo de crianças, Mas se não puder, não
pague, só venha e pagar quando tudo acontecer.
- Não, eu lhe pago, a senhora acertou tudo, a
senhora é...
-- Página 97
Estava meio bêbada, não sabia o que pensava, parecia
que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de
ralos cabelos, sentia-se tão desorientada como se lhe
tivesse acontecido uma infidelidade.
Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que
os outros chamavam de paixão: estava apaixonada por
Hans.
- E que é que eu faço para ter mais cabelo? - ousou
perguntar porque já se sentia outra.
- Você está querendo demais. Mas está bem: lave a
cabeça com sabão Aristolino, não use sabão amarelo em
pedra. Esse conselho eu não cobro.
Até isso? (explosão) bateu-lhe o coração, até mais
cabelo? Esquecera Olímpico e só pensava no gringo: era
sorte demais pegar homem de olhos azuis ou verdes ou
castanhos ou pretos, não havia como errar, era vasto o
campo das possibilidades.
- E agora - disse a madama - você vá embora para
encontrar seu maravilhoso destino. E mesmo porque tem
outra freguesa esperando, demorei demais com você, meu
anjinho, mas valeu a pena!
Num súbito ímpeto (explosão) de vivo impulso
Macabéa, entre feroz e desajeitada, deu um estalado
beijo no rosto da madama. E sentiu de novo que sua
vida já estava melhorando ali memso: pois era bom
beijar. Quando ela era pequena, como não tinha a quem
beijar, beijava a parede. Ao acariciar ela se
acariciava si própria.
Madama Carlota havia acertado tudo. Macabéa estava
espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria.
Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto, ela
que, como disse, até então se julgava feliz.
-- Página 98
Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no
beco escurecido pelo crepúsculo - crepúsculo que é
hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o
último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro
quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o
primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e
faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saberse
atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E
mudada por palavras - desde Moisés se sabe que a
palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era
outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia emsi
uma esperança tão violenta como jamais sentira
tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso
significava uma perda que valia por um ganho. Assim
como havia sentença de morte, a cartomante lhe
decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito
e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar.
Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que
morria.
Então ao dar o passo de descida da calçada para
atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz
e guloso: é agora é - já, chegou a minha vez!
E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo
pegou-a - e neste mesmo instante em algum único lugar
do mundo um cavalo como resposta empinou-se em
gargalhada de relincho.
Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver antes que o
carro fugisse que já começavam a ser cumpridas as
predições de madama Carlota, pois o carro era de alto
luxo. Sua queda não era nada, pensou ela, apenas um
empurrão. Batera com a cabeça na quina da calçada e
ficara caída, a cara mansamente voltada para a
sarjeta. E da cabeça um fio de sangue inesperadamente
vermelhos e rico. O que queria
-- Página 99
dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma
resistente raça não teimosa que um dia vai talvez
reivindicar o direito ao grito.
(Eu ainda poderia voltar atrás .em retorno aos
minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em
que Macabéa estava de pé na calçada - mas não depende
de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a
olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais
retroceder. Ainda bem que pelo menos não falei e nem
falarei em morte e sim apenas, um atropelamento.)
Ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das
emoções, e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim
de um verde da mais tenra esperança humana. Hoje,
pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida:
nasci.
(A verdade é sempre um contacto interior
inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não
existe? Não, para os homens não existe.)
Voltando ao capim. Para tal exígua criatura chamada
Macabéa a grande natureza se dava apenas em forma de
capim de sarjeta - se lhe fosse dado o mar grosso ou
picos altos de montanhas, sua alma, ainda mais virgem
que o corpo, se alucinaria e explodir-sé-lhe-ia o
organismo, braços pra cá, intestino para lá, cabeça
rolando redonda e oca a seus pés - como se desmonta um
manequim de cera.
Prestou de repente um pouco de atenção para si
mesma. O que estava acontecendo era um surdo
terremoto? Tinha-se aberto em fendas a terra de
Alagoas. Fixava, só por fixar, o capim. Capim na
grande Cidade do Rio de Janeiro. A toa. Quem sabe se
Macabéa já teria alguma vez sentido que também ela já
era à-toa na cidade inconquistável. O Destino havia
-- Página 100
escolhido para ela um beco no escuro e uma sarjeta.
Ela sofria? Acho que sim. Como uma galinha de pescoço
malcortado que corre espavorida pingando sangue.
Só que a galinha foge - como se foge da dor - em
cacarejos apavorados. E Macabéa lutava muda.
Vou fazer o possível para que ela não morra. Mas que
vontade de adormecê-la e de eu mesmo ir para a cama
dormir.
Então começou levemente a garoar. Olímpico tinha
razão: ela só sabia mesmo era chover. Os finos fios de
água gelada aos p.oucos empapavam-lhe a roupa e isso
não era confortável.
Pergunto: toda história que já se escreveu no mundo
é história de aflições?
Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde
e haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada
fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por
ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe
dava uma existência.
(Mas quem sou eu para censurar os culpados.? O pior
é que preciso perdoá-los. É necessário chegar a tal
nada que indiferentemente se ame ou não se ame o
eriminoso que nos mata. Mas não estou seguro de mim
mesmo: preciso perguntar, embora não saiba a quem, se
devo mesmo amar aquele que me trucida e perguntar quem
de vós me trucida. E minha vida, mais forte do que eu,
responde que quer porque quer vingança e responde que
devo lutar como quem se afoga, mesmo que eu morra
depois. Se assim é; que assim seja.)
Macabéa por acaso vai morrer? Como posso saber? E
nem as pessoas ali presentes sabiam. Embora por via
das dúvidas .algum vizinho tivesse pousado
-- Página 101
junto do corpo uma vela acesa. O luxo da rica flama
parecia cantar glória.
(Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com
púrpura, jóias e esplendor. É assim que se escreve?
Não; não é acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo
da nudez, pois ela é a palavra final.)
Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se tornar cada
vez mais uma Macabéa, como se chegasse a si mesma.
Este é um melodrama? O que sei é que melodrama era o
ápice de sua vida, todas as vidas são uma arte e a
dela tendia para o grande choro insopitável como chuva
e raios.
Apareceu portanto um homem magro de paletó puído
tocando violino na esquina. Devo explicar que este
homem eu o vi uma vez ao anoitecer quando eu era
menino em Recife e o som espichado e agudo sublinhava
com uma linha dourada o mistério da rua escura. Junto
do homem esquálido havia uma latinha de zinco onde
barulhavam secas as moedas dos que o ouviam com
gratidão por ele lhes planger a vida. Só agora entendo
e só agora brotou-se-me o sentido secreto: o violino é
um aviso. Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino
do homem e pedirei música, música, música.
Macabéa, Ave Maria" cheia de graça, terra serena da
promissão, terra do perdão, tem que chegar o tempo,
ora pro nóbis, e eu me uso como forma de conhecimento.
Eu te conheço até o osso por intermédio de uma
encantação que vem de mim para ti. Espraiar-se
selvagemente e no entanto atrás de tudo pulsa uma
geometria inflexível. Macabéa lembrou-se do cais do
porto. O cais chegava ao coração de .sua vida.
-- Página 102
Macabéa pedir perdão? Porque sempre se pede Por quê?
Resposta: é assim porque assim é. Sempre foi? Sempre
será. E se não foi? Mas eu estou dizendo que é. Pois.
Via-se perfeitamente que estava viva pelo piscar
constante dos olhos grandes, pelo peito magro que se
levantava e abaixava em respiração talvez difícil. Mas
quem sabe se ela não estaria precisando de morrer?
Pois há momentos em que a pessoa está precisando de
uma pequena mortezinha e sem nem ao menos saber.
Quanto a mim, substituo o ato da morte por um seu
símbolo. Símbolo este que pode se resumir num profundo
beijo mas não na parede áspera e sim boca-a-boca na
agonia do prazer que é morte. Eu, que simbolicamente
morro várias vezes só para experimentar a
ressurreição.
Acho com alegria que ainda não chegou a hora de
estrela de cinema de Macabéa morrer. Pelo menos ainda
não consigo adivinhar se lhe acontece o homem louro e
estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o
que estão fazendo para soprar-lhe vida, pois Macabéa
está por enquanto solta no acaso como a porta
balançando ao vento no infinito. Eu poderia resolver
pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas
quero o pior: a vida. Os que me lerem, assim, levem um
soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco
no estômago.
Por enquanto Macabéa não passava de um vago
sentimento nos paralelepípedos sujos. Eu poderia
deixá-la na rua e simplesmente não acabar a história.
Mas não: irei até onde o ar termina, irei até onde a
grande ventania se solta uivando, irei até onde o
vácuo faz uma curva, irei aonde meu fôlego me levar.
Meu fôlego me leva a Deus? Estou tão puro que
-- Página 103
nada sei. Só uma coisa eu sei: não preciso ter
piedade de Deus. Ou preciso?
Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o
corpo em posição fetal. Grotesca como sempre fora.
Aquela relutância em ceder, mas aquela vontade do
grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com vontade
do grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com
vontade do doce nada. Era uma maldita e não sabia.
Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia
mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou, eu sou. Quem
era, é que não sabia. Fora buscar no próprio profundo
e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus nos
dá.
Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade
suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. A
morte que é nesta história o meu personagem predileto.
Iria ela dar adeus a si mesma? Acho que ela não vai
morrer porque tem tanta vontade de viver. E havia
certa sensualidade no modo como se encolhera. Ou é
porque a pré-morte se parece com a intensa ânsia
sensual? É que o rosto dela lembrava um esgar de
desejo. As coisas são sempre vésperas de morrer,
predoai-me lembrar-vos porque quanto a mim não me
perdôo a clarividência.
Um gosto suave, arrepiante, gélido e agudo como no
amor. Seria esta a graça que vós chamais de Deus? Sim?
Se iria morrer, na morte passava de virgem mulher.
Não, era morte pois não a quero para a moça: só um
atropelamento que não significava sequer desastre. Seu
esforço de viver parecia uma coisa que, se nunca
experimentara, virgem que não era, ao mesmo intuíra,
pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o
primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser mulher.
Intuíra o instante
-- Página 104
quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor. Sim,
doloroso reflorescimento tão difícil que ela empregava
nele o corpo e a outra coisa que vós chamais de alma e
que eu chamo - o quê? Aí Macabéa disse uma frase que
nenhum dos transeuntes entendeu. Disse bem pronunciado
e claro:
- Quanto ao futuro.
Terá tido ela saudade do futuro? Ouço a música
antiga de palavras e palavras, sim, é assim. Nesta
hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e
quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo,
vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.
O que é que estou vendo agora e que me assusta? Vejo
que ela vomitou. um pouco de sangue, vasto espasmo,
enfim o âmago tocando no âmago: vitória!
E então - então o súbito grito estertorado de uma
gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os
altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando
um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.
Até tu, Brutus?!
Sim, foi este o modo como eu quis anunciar que - que
Macabéa morreu. Vencera o Príncipe das Trevas. Enfim a
coroação.
Qual foi a verdade de minha Maca? Basta descobrir a
verdade que ela logo já não é mais: passou o momento.
Pergunto: o que é? Resposta: não é.
Mas que não se lamentem os mortos: eles .sabem o que
fazem. Eu estive na terra dos mortos e depois do
terror tão negro ressurgi em perdão. Sou inocente! Não
me consumam! Não sou vendável! Ai de mim, todo na
perdição e é como se a grande culpa
-- Página 105
fosse minha. Quero que me lavem ,as mãos e os pés e
depois - depois que os untem com óleos santos de tanto
perfume. Ah que vontade de alegria. Estou agora me
esforçando para rir em grande gargalhada. Mas não sei
por que não rio. A morte é um encontro consigo.
Deitada, morta, era tão grande como um cavalo morto. O
melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois
morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto
preciso.
Macabéa me matou.
Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos
assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei
porque acabo de morrer com a moça. Desculpai-me esta
morte. É que não pude evitá-la, a gente aceita tudo
porque já beijou a parede. Mas eis que de repente
sinto o meu último esgar de revolta e uivo: o
morticínio dos pombos!!! Viver é luxo.
Pronto, passou.
Morta, os sinos badalavam mas sem que seus bronzes
Ihes dessem som. Agora entendo esta história.
Ela é a iminência que há nos sinos que quase-quase
badalam.
A grandeza de cada um.
Silêncio.
Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande.
O silêncio é tal que nem o pensamento pensa.
O final foi bastante grandiloqüente para a vossa
necessidade? Morrendo ela virou ar: Ar enérgico? Não
sei. Morreu em um instante. O instante é aquele átimo
de tempo em que o . pneu do carro correndo em alta
velocidade toca no chão e depois não toca
-- Página 106
mais e depois toca de novo. Etc., etc., etc. No
fundo ela não passara de uma caixinha de música meio
desafinada.
Eu vos pergunto:
- Qual é o peso da luz?
E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir
para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente
morre. Mas - mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.

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O Aluno (por ele mesmo)

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(BRINCADEIRINHA!!!!!!!!)