Capítulo XI
Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pé do Ramalhete até à rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes. No patamar, onde morria em penumbra a luz distante da clarabóia, uma velha de lenço na cabeça, encolhida num chalesinho preto, esperava, sentada melancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava uma parede feia de corredor, forrada de papel amarelo. Dentro um relógio ronceiro estava batendo dez horas.
- A senhora já tocou? perguntou Carlos, erguendo o chapéu.
A velha murmurou, de entre a sombra do lenço que lhe caia para os olhos, num tom cansado e doente:
- Já, sim, meu senhor. Já fizeram o favor de me falar. O criado, o Sr. Domingos, não tarda...
Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo andar vinha um barulho alegre de crianças brincando; por cima, o moço do Cruges esfregava a escada com estrondo, assobiando desesperadamente o fado. Um longo minuto arrastou-se, depois outro, infindável. A velha, de entre a negrura do lenço, deu um suspirosinho abatido. Lá ao fundo um cenário rompera a cantar; e então Carlos, impaciente, puxou o cordão da campainha.
Um criado de suissas ruivas, correctamente abotoado num jaquetão de flanela, apareceu correndo, com uma travessa na mão, abafada num guardanapo; e ao ver Carlos ficou tão atarantado, bamboleando à porta, que um pouco de molho de assado escorregou, caiu sobre o soalho.
- Oh Sr. D. Carlos Eduardo, faz favor de entrar!... Ora esta! Tem a bondade de esperar um instantinho, que eu abro já a sala... Tome lá, Sr.ª Augusta, tome lá, olhe não entorne mais! A senhora diz que lá manda logo o vinho do Porto... Desculpe V. Exc.ª, Sr. D. Carlos... Por aqui, meu senhor...
Correu um reposteiro de reps vermelho, introduziu Carlos numa sala alta, espaçosa, com um papel de ramagens azuis, e duas varandas para a rua de S. Francisco; e erguendo à pressa os dois transparentes de paninho branco, perguntava a Carlos se s. Exc.ª não se lembrava já do Domingos. Quando ele se voltou, risonho, descendo precipitadamente os canhões das mangas, Carlos reconheceu-o pelas suissas ruivas. Era com efeito o Domingos, escudeiro excelente, que no começo do inverno estivera no Ramalhete, e se despedira por birras patrióticas, birras ciumentas, com o cozinheiro francês.
- Não o tinha visto bem, Domingos, disse Carlos. O patamar é um pouco escuro... Lembro-me perfeitamente... E então você agora aqui, hein? E está contente?
- Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O Sr. Cruges também mora cá por cima...
- Bem sei, bem sei...
- Tenha V. Exc.ª a paciência de esperar um instantinho que eu vou dar parte à Sr.ª D. Maria Eduarda...
Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome dela; e pareceu-lhe perfeito, condizendo bem com a sua beleza serena. Maria Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similitude nos seus nomes. Quem sabe se não pressagiava a concordância dos seus destinos!
Domingos, no entanto, já à porta da sala, com a mão no reposteiro, parou ainda, para dizer num tom de confidência e sorrindo:
- É a governante inglesa que está doente...
- Ah! é a governante?
- Sim, meu senhor, tem uma febresita desde ontem, peso no peito...
- Ah!...
O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se apressar, contemplando Carlos com admiração:
- E o avôsinho de V. Exc.ª passa bem?
- Obrigado, Domingos, passa bem.
- Aquilo é que é um grande senhor!... Não há, não há outro assim em Lisboa!
- Obrigado, Domingos, obrigado...
Quando ele finalmente saiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta curiosa e lenta pela sala. O soalho fora esteirado de novo. Ao pé da porta havia um piano antigo de cauda, coberto com um pano alvadio; sobre uma estante ao lado, cheia de partituras, de músicas, de jornais ilustrados, pousava um vaso do Japão onde murchavam três belos lírios brancos; todas as cadeiras eram forradas de reps vermelho; e aos pés do sofá estirava-se uma velha pele de tigre. Como no Hotel Central, esta instalação sumaria de casa alugada recebera retoques de conforto e de gosto: cortinas novas de cretone, combinando com o papel azul da parede, tinham substituído as clássicas bambinelas de cassa: um pequeno contador árabe, que Carlos se lembrava de ter visto havia dias no tio Abraão, viera encher um lado mais desguarnecido da parede: o tapete de pelúcia duma mesa oval, colocada ao centro, desaparecia sob lindas encadernações de livros, álbuns, duas taças japonesas de bronze, um cesto para flores de porcelana de Dresde, objectos delicados de arte que não pertenciam decerto à mãe Cruges. E parecia errar ali, acariciando a ordem das coisas e marcando-as com um encanto particular, aquele indefinido perfume que Carlos já sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava o jasmim.
Mas o que atraiu Carlos foi um bonito biombo de linho crú, com ramalhetes bordados, desdobrado ao pé da janela, fazendo um recanto mais resguardado e mais íntimo. Havia lá uma cadeirinha baixa de cetim escarlate, uma grande almofada para os pés, uma mesa de costura com todo um trabalho de mulher interrompido, números de jornais de modas, um bordado enrolado, molhos de lã de cores transbordando de um açafate. E, confortavelmente enroscada no macio da cadeira, achava-se ai, nesse momento, a famosa cadelinha escocesa, que tantas vezes passara nos sonhos de Carlos, trotando ligeiramente atrás de uma radiante figura pelo Aterro fora, ou aninhada e adormecida num doce regaço...
- Bonjour, Mademoisele, disse-lhe ele, baixinho, querendo captar-lhe as simpatias.
A cadelinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, de orelhas fitas, dardejando para aquele estranho, por entre as repas esguedelhadas, dois belos olhos de azeviche, desconfiados, duma penetração quasi humana. Um instante Carlos receou que ela rompesse a ladrar. Mas a cadelinha de repente namorara-se dele, deitada já na cadeira. de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventresinho ás suas carícias. Carlos ia coça-la e amima-la, quando um passo leve pisou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si.
Foi como uma inesperada aparição - e vergou profundamente os ombros, menos a saudá-la, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. Ela, com um vestido simples e justo de sarja preta, um colarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraçadamente à borda do sofá de reps. E depois dum instante de silêncio, que lhe pareceu profundo, quasi solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, dum tom de ouro que acariciava.
Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ela lhe agradecia os cuidados que ele tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se demorava nela um instante mais, descobria logo um encanto novo e outra forma da sua perfeição. Os cabelos não eram louros, como julgara de longe à claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na grande luz escura dos seus olhos havia ao mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muito doce. Por um jeito familiar cruzava ás vezes, ao falar, as mãos sobre os joelhos. E através da manga justa de sarja, terminando num punho branco, ele sentia a beleza, a brancura, o macio, quasi o calor dos seus braços.
Ela calara-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o sangue abrasar-lhe o rosto. E, apesar de saber já pelo Domingos que a doente era a governante, só achou, na sua perturbação, esta pergunta tímida:
- Não é sua filha que está doente, minha senhora?
- Oh não! graças a Deus!
E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a governante inglesa havia dois dias se achava incomodada, com dificuldade de respirar, tosse, uma ponta de febre...
- Imaginámos ao principio que era uma constipação passageira; mas ontem à tarde estava pior, e estou agora impaciente que a veja...
Ergueu-se, foi puxar um enorme cordão de campainha que pendia ao lado do piano. O seu cabelo por traz, repuxado para o alto da cabeça, deixava uma penugem de ouro frisar-se delicadamente sobre a brancura láctea do pescoço. Entre aqueles móveis de reps, sob o tecto banal de estuque enxovalhado, toda a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, duma beleza mais nobre, e quasi inacessível; e pensava que nunca ali ousaria olha-la tão francamente, com uma tão clara adoração, como quando a encontrava na rua.
- Que linda cadelinha V. Exc.ª tem, minha senhora disse ele, quando Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo já nestas palavras simples, ditas a sorrir, um acento de ternura.
Ela sorriu também com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no queixo, dava uma doçura mais mimosa ás suas feições sérias. E alegremente, batendo as palmas, chamando para dentro do biombo:
- Niniche! estão-te a fazer elogios, vem agradecer!
Niniche apareceu a bocejar. Carlos achava lindo este nome de Niniche. E era curioso, tinha tido também uma galguinha italiana que se chamava Niniche...
Nesse instante a criada entrou - a rapariga magra e sardenta, de olhar petulante, que Carlos vira já no Hotel Central.
- Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda. Eu não o acompanho, porque ela é tão tímida, tem tanto escrúpulo em incomodar, que diante de mim é capaz de negar tudo, dizer que não tem nada...
- Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, num encanto de tudo.
E pareceu-lhe então que no olhar dela alguma coisa brilhara, fugira para ele, de mais vivo, de mais doce.
Com o seu chapéu na mão, pisando familiarmente aquele corredor íntimo, surpreendendo detalhes de vida domestica, Carlos sentia como a alegria duma posse. Por uma porta meio aberta pôde entrever uma banheira, e ao lado dependurados grandes roupões turcos de banho. Adiante, sobre uma mesa, estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas de águas minerais de Saint-Galmier e de Vals. Ele deduzia logo destas coisas tão simples, tão banais, evidencias de vida delicada.
Melanie correu um reposteiro de linho crú, fê-lo entrar num quarto claro e fresco: e aí foi encontrar a pobre miss Sarah num leitosinho de ferro, sentada, com um laço de seda azul ao pescoço, e os bandós tão lisos, tão acamados pela escova, como se fosse sair num domingo para a capela presbiteriana. Na mesinha de cabeceira os seus jornais ingleses estavam escrupulosamente dobrados, junto dum copo com duas belas rosas; e tudo no quarto resplandecia de severo arranjo, desde os retratos da família real de Inglaterra, expostos sobre a toalha de renda que cobria a cómoda, até ás suas botinas bem engraxadas, classificadas, perfiladas numa prateleira de pinho.
Apenas Carlos se sentou, ela imediatamente, com duas rosetas de vergonha na face, entre frouxos de tosse, declarou que não tinha nada. Era a senhora, tão boa, tão cautelosa, que a forçara a meter-se na cama... E para ela era um desgosto ver-se ali ociosa, inútil, agora que Madame estava tão só, numa casa sem jardim. Onde havia a menina de brincar? Quem havia de sair com ela? Ah! Era uma prisão para Madame!...
Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando ele se ergueu para a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda num rubor aflito, apertando mais a roupa contra o peito, querendo saber se era absolutamente necessário... Sim, decerto, era necessário... Achou-lhe o pulmão direito um pouco tomado; e, em quanto a agasalhava, fez-lhe algumas perguntas sobre a sua família. Ela contou que era de York, filha de um clergyman, e tinha catorze irmãos: os rapazes estavam na Nova Zelândia, e todos eram duma robustez de atletas. Ela saíra a mais fraca; tanto que o pai, vendo que ela aos dezassete anos pesava só oito arrobas, ensinou-lhe logo latim, destinando-a para governante.
Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua família doenças de peito? Ela sorriu. Oh! nunca! A mamã ainda vivia. O papá, já muito velho, morrera do coice de uma égua.
Carlos, no entanto, pó de pé, com o chapéu na mão, continuava a observa-la, reflectindo. Então, de repente, sem motivo, ela enterneceu-se, os seus olhos pequeninos enevoaram-se de água. E quando ouviu que eram precisos tantos agasalhos, que teria de estar ali no quarto ainda quinze dias, perturbou-se mais, duas lágrimasinhas tímidas quasi lhe fugiram das pestanas. Carlos terminou por lhe afagar paternalmente a mão.
- Oh! Tank you sir! murmurou ela, comovida de todo.
Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto da mesa, arranjando ramos, com uma grande cesta de flores pousada ao lado numa cadeira, e o regaço cheio de cravos. Uma bela réstia de sol, estendida na esteira, vinha morrer-lhe aos pés; e Niniche, deitada ali, reluzia como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sob as janelas, um realejo ia tocando, na alegria da linda manhã de sol, a valsa da Madame Angot. Pelo andar de cima tinham recomeçado as correrias de crianças brincando.
- Então? exclamou ela, voltando-se logo, com um molho de cravos na mão.
Carlos tranquilizou-a. A pobre miss Sarah tinha uma bronquite ligeira, com pouca febre. Em todo o caso necessitava resguardo, toda a cautela...
- Certamente! E há de tomar algum remédio, não é verdade?
Atirou logo o resto dos cravos do regaço para o cesto, foi abrir uma secretariasinha de pau preto colocada entre as janelas. Ela mesmo arranjou o papel para ele receitar, meteu um bico novo na pena. E estes cuidados perturbavam Carlos como carícias.
- Oh minha senhora!... murmurava ele, um lápis basta...
Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade enternecida nesses objectos familiares onde pousava a doçura das mãos dela - um sinete de agata sobre um velho livro de contas, uma faca de marfim com monograma de prata ao lado duma taçasinha de Saxe cheia de estaropilhas; e em tudo havia a ordem clara que tão bem condizia com o seu puro perfil. Na rua o realejo calara-se, por cima do tecto já não cavalavam as crianças. E, em quanto escrevia devagar, Carlos sentia-a abafar sobre a esteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais de leve.
- Que bonitas flores V. Exc.ª tem, minha senhora! disse ele, voltando a cabeça, em quanto ia secando distraída e lentamente a receita.
De pé, junto do contador árabe, onde pousava um vaso amarelo da índia, ela arranjava folhas em volta de duas rosas.
- Dão frescura, disse ela. Mas imaginei que em Lisboa havia mais bonitas flores. Não há nada que se compare ás flores de França... Pois não é verdade?
Ele não respondeu logo, esquecido a olhar para ela, pensando na doçura de ficar ali eternamente naquela sala de reps vermelho, cheia de claridade e cheia de silêncio, a vê-la pôr folhas verdes em torno de pés de rosa!
- Em Sintra há lindas flores, murmurou por fim.
- Oh, Sintra é um encanto! disse ela, sem erguer os olhos do seu ramo. Vale a pena vir a Portugal só por causa de Sintra.
Nesse momento, o reposteiro de reps esvoaçou, e Rosa entrou de dentro, correndo, vestida de branco, com meiasinhas de seda preta, uma onda negra de cabelo a bater-lhe as costas, e trazendo ao colo a sua grande boneca. Ao ver Carlos parou bruscamente, com os belos olhos muito abertos para ele, toda encantada, e apertando mais nos braços Cri-cri que vinha em camisa.
- Não conheces? perguntou-lhe a mãe, indo sentar-se outra vez diante do seu cesto de flores.
Rosa começava já a sorrir, o seu rostosinho cobria-se duma linda cor. E assim, toda de alvo e negro como uma andorinha, tinha um encanto raro, com o seu doce mimo de forma, a sua graça ligeira, os seus grandes olhos cheios de azul, e um ruborzinho de mulher na face. Quando Carlos se adiantou com a mão estendida para renovar o antigo conhecimento - ela ergueu-se na ponta dos pés, estendeu-lhe vivamente a boquinha, fresca como um botão de rosa. Carlos ousou apenas tocar-lhe de leve na testa.
Depois quis apertar a mão à sua velha amiga Cri-cri. E então, de repente, Rosa recordou-se do que a trouxera ali a correr.
- É o robe-de-chambre, mamã! Não posso achar o robe-de-chambre de Cri-cri... Ainda a não pude vestir... Dize, sabes onde é que está o robe-de-chambre?
- Vejam esta desarranjada murmurava a mãe olhando-a com um sorriso lento e terno. Se Cri-cri tem uma cómoda particular, o seu guarda-vestidos, não se lhe deviam perder as coisas... pois não é verdade, Sr. Carlos da Maia?
Ele, ainda com a sua receita na mão, sorria também, sem dizer nada, todo no enternecimento daquela intimidade em que se sentia penetrar docemente.
A pequena então veio encostar-se à mãe, roçando-se pelo seu braço, com uma vozinha lânguida, lenta, e de mimo:
- Anda, dize... Não sejas má... Anda... Onde está o robe-de-chambre? Dize...
Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino laço de seda branca que lhe pendia no alto cabelo. Depois ficou mais séria:
- Está bem, está quieta... Tu sabes que não sou eu que trata dos arranjos da Cri-cri. Devias ter mais ordem... Vai perguntar a Melanie.
E Rosa obedeceu logo, séria também, cumprimentando agora Carlos ao passar, com um arzinho senhoril:
- Bonjour, Monsieur...
- É encantadora! murmurou ele.
A mãe sorriu. Tinha acabado de compor o seu ramo de cravos; - e imediatamente atendeu a Carlos, que pousara a receita sobre a mesa, e sem se apressar, instalando-se numa poltrona, lhe foi falando da dieta que devia ter miss Sarah, das colheres de xarope de codeína que se lhe deviam dar de três em três horas...
- Pobre Sarah! dizia ela. E é curioso, não é verdade? Veio com o pressentimento, quasi com a certeza, que havia de adoecer em Portugal...
- Então vem a detestar Portugal!
- Oh! tem-lhe já horror! Acha muito calor, por toda a parte maus cheiros, a gente hedionda... Tem medo de ser insultada na rua... Enfim é infelicíssima, está ardendo por se ir embora...
Carlos ria daquelas antipatias saxonias. De resto em muitas coisas a boa miss Sarah tinha talvez razão...
- E V. Exc.ª tem-se dado bem em Portugal, minha senhora?
- Ela encolheu os ombros, indecisa.
- Sim... Devo dar-me bem... É o meu país.
O seu país!... E ele que a julgava brasileira!
- Não, sou portuguesa.
E, durante um momento, houve um silêncio. Ela tomara de sobre a mesa, abria lentamente um grande leque negro pintado de flores vermelhas. E Carlos sentia, sem saber porque, uma doçura nova penetrar-lhe no coração. Depois ela falou da sua viagem que fora muito agradável; adorava andar no mar; tinha sido um encanto a manhã da chegada a Lisboa, com um céu azul-ferrete, o mar todo azul também, e já um calorzinho de clima doce... Mas depois, apenas desembarcados, tudo corria desagradavelmente. Tinham ficado mal alojados no Central. Niniche, uma noite, assustara-os muito com uma indigestão. Em seguida no Porto viera aquele desastre...
- Sim, disse Carlos, o marido de V. Exc.ª, na Praça Nova...
Ela pareceu surpreendida. Como sabia ele? Ah! sim, sabia de certo pelo Dâmaso...
- São muito amigos, creio eu.
Depois duma leve hesitação, que ela compreendeu, Carlos murmurou:
- Sim... O Dâmaso vai bastante ao Ramalhete... É de resto um rapaz que eu conheço apenas há meses...
Ela abriu os olhos, pasmada.
- O Dâmaso? Mas ele disse-me que se conheciam desde pequeninos, que eram até parentes...
Carlos encolheu simplesmente os ombros, sorrindo.
- É uma bela ilusão... E se isso o faz feliz!...
Ela sorriu também, encolhendo também ligeiramente os ombros.
- E V. Exc.ª, minha senhora, continuou logo Carlos não querendo falar mais do Dâmaso, como acha Lisboa?
Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco de cidade meridional... Mas, havia tão poucos confortos!... A vida tinha aqui um ar que ela não pudera perceber ainda - se era de simplicidade ou de pobreza.
- Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos selvagens...
Ela riu.
- Não direi isso. Mas suponho que são como os gregos: contentam-se em comer uma azeitona, olhando o céu que é bonito...
Isto pareceu adorável a Carlos, todo o seu coração fugiu para ela.
Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, tão faltas de comodidade, tão despidas de gosto, tão desleixadas. Aquela em que vivia fazia a sua desgraça. A cozinha era atroz, as portas não fechavam. Na sala de jantar havia sobre a parede umas pinturas de barquinhos e colinas que lhe tiravam o apetite...
- Além disso, acrescentou, é um horror não ter um quintal, um jardim, onde a pequena possa correr, ir brincar...
- Não é fácil encontrar assim uma casa nas condições desta e com jardim, disse Carlos.
Deu um olhar ás paredes, ao estuque enxovalhado do tecto - e lembrou-lhe de repente a Quinta do Craft, com a sua vista de rio, o ar largo, as frescas ruas de acácias.
Felizmente, Maria Eduarda tomara a casa apenas ao mês, e estava pensando em ir passar à beira-mar o tempo que tivesse de ficar ainda em Portugal.
- De resto, disse ela, foi o que me aconselhou o meu médico em Paris, o Dr. Chaplain.
O Dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o Dr. Chaplain. Ouvira-lhe as lições, visitara-o até intimamente na sua propriedade de Maisonetes, ao pé de Saint-Germain. Era um grande mestre, era um espírito bem superior!
- E tão bom coração! disse ela com um claro sorriso, um olhar que brilhou.
E este sentimento comum pareceu de repente aproxima-los mais docemente: cada um nesse instante adorou o Dr. Chaplain: e continuaram ainda falando dele prolongadamente, gozando, através dessa trivial simpatia por um velho clínico, a nascente concordância dos seus corações.
O bom Dr. Chaplain! Que fisionomia tão amável, tão fina!... sempre com o seu barretinho de seda... E sempre com a sua grande flor na casaca... De resto, o pratico maior que saíra da geração de Trousseau.
- E Madame Chaplain, acrescentou Carlos, é uma pessoa encantadora... Não é verdade?
Mas Maria Eduarda não conhecia Madame Chaplain.
Dentro o relógio ronceiro começara a bater onze horas. E Carlos então ergueu-se, findando a sua fugitiva, inolvidável, deliciosa visita...
Quando ela lhe estendeu a mão, um pouco de sangue subiu-lhe de novo à face ao tocar aquela palma tão macia e tão fresca. Pediu os seus comprimentos para Mademoisele Rosa. Depois, à porta, já com o reposteiro na mão, voltou-se ainda, uma vez mais, numa ultima saudação, a receber o olhar suave com que ela o seguia...
- Até amanhã, está claro! exclamou ela de repente, com o seu lindo sorriso.
- Até amanhã, decerto!
O Domingos estava já no patamar, de casaca, risonho e bem penteado.
- É coisa de cuidado, meu senhor?
- Não é nada, Domingos... Estimei vê-lo por aqui.
- E eu muito a V. Exc.ª Até amanhã, meu senhor.
- Até amanhã.
Niniche apareceu também no patamar. Ele abaixou-se ternamente a afaga-la, e disse-lhe também, radiante:
- Até amanhã, Niniche!
- Até amanhã! Voltando para o Ramalhete, era esta a única ideia que ele sentia distinctamente através da névoa luminosa que lhe afogava a alma. Agora o seu dia estava findo: - mas, passadas as longas horas, terminada a longa noite, ele penetraria outra vez naquela sala de reps vermelho, onde ela o esperava, com o mesmo vestido de sarja, enrolando ainda folhas verdes em torno de pés de rosa...
Pelo Aterro, por entre a poeira de verão e o ruído das carroças, o que ele via era essa sala, esteirada de novo, fresca, silenciosa e clara: por vezes uma frase que ela dissera cantava-lhe na memória, com o tom de ouro da sua voz; ou luziam-lhe diante dos olhos as pedras dos seus anéis entremetidos pelos pêlos de Niniche. Parecia-lhe mais linda, agora que conhecia o seu sorriso duma graça tão delicada; era cheia de inteligência, era cheia de gosto; e a pobre velha à porta, esse doente a quem ela mandava vinho do Porto, revelavam a sua bondade... E o que o encantava é que não tornaria mais a farejar a cidade como um rafeiro perdido, à busca dos seus olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns degraus, abria-se diante dele a porta da sua casa: e tudo de repente na vida parecia tornar-se fácil, equilibrado, sem dúvidas e sem impaciências.
No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta.
- Trouxe-a a escocesa, já V. Exc.ª tinha saído.
Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente escrito a lápis - all right. Carlos amarrotou-a, furioso. A Gouvarinho!... Não se tornara quasi a lembrar dela, desde a véspera, no radiante tumulto em que andara o seu coração. E era no comboio dessa noite, daí a horas, que deviam ambos partir para Santarém, a amarem-se, escondidos numa estalagem! Ele prometera-lho, a sério; já ela se preparara decerto, com a atroz cabeleira postiça, com o water-proof de grande roda; tudo estava all right... Achou-a nesse instante ridícula, reles, estúpida... Oh, era claro como a luz que não ia, que nunca iria, jamais! Mas tinha de aparecer na estação de Santa Apolónia, balbuciar uma desculpa tosca, assistir à sua desconsolação, ver-lhe os olhos marejados de lágrimas. Que maçada!... Teve-lhe ódio.
Quando chegou à mesa do almoço Craft e Afonso, já sentados, falavam justamente do Gouvarinho, e dos artigos que ele continuava gravemente a publicar no Jornal do Comercio.
- Que besta essa! exclamou Carlos numa voz que sibilava, desabafando sobre a literatura política do marido a cólera que lhe davam as importunidades amorosas da mulher.
Afonso e Craft olharam-no, pasmados de tanta violência. E Craft censurou-lhe a ingratidão. Porque, realmente, não havia em toda a terra um entusiasmo como o que aquele desventuroso homem de estado tinha por Carlos...
- V. Exc.ª não faz ideia, Sr. Afonso da Maia. É um culto. É uma idolatria!
Carlos encolhia os ombros, impaciente. E Afonso, já bem disposto para com o homem que assim admirava tão prodigamente o seu neto, murmurou com bondade:
- Coitado, suponho que é inofensivo...
Craft fez uma ovação ao velho:
- Inofensivo! Admirável, Sr. Afonso da Maia! Inofensivo, aplicado a um homem de estado, a um par, a um ministro, a um legislador, é um achado! E é com efeito o que ele é, inofensivo... E é o que eles são...
- Chablis? murmurou o escudeiro.
- Não, tomo chá.
E acrescentou:
- Aquele champagne que ontem bebemos nas corridas, por patriotismo, arrasou-me... Tenho de me pôr uma semana a regime de leite.
Então falou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, do Cliford, e do véu azul do Dâmaso.
- Ora quem estava ontem muito bem vestida era a Gouvarinho, disse Craft remexendo o seu chá. Ficava-lhe admiravelmente aquele branco creme, tocado de tons negros. Uma verdadeira toilete de corridas... C'était un oeilet blanc panaché de noir... Você não achou, Carlos?
- Sim, rosnou Carlos, estava bem.
Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que não haveria na sua vida conversa em que não surgisse a Gouvarinho, e que não haveria caminho na sua vida que o não atravancasse a Gouvarinho! E ali mesmo, à mesa, decidiu consigo não a tornar a ver, escrever-lhe um bilhete curto, polido, recusando-se a ir a Santarém, sem razões...
Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longa cigarrete, sem achar frase que não fosse pueril ou brutal. Nem tinha a simpatia precisa para lhe dar o banal tratamento de querida: Vinha-lhe até por ela uma indefinida repulsão física: devia ser intolerável toda uma noite o seu, cheiro exagerado de verbena; - e lembrava-se que aquela pele do seu pescoço, que se lhe afigurava outrora um cetim, tinha um tom pegajoso, um tom amarelado, para além da linha de pós de arroz. Decidiu não lhe escrever. Iria à noite a Santa Apolónia, e no momento do comboio partir correria à portinhola, a balbuciar fugitivamente uma desculpa; não lhe daria tempo de choramigar, nem de recriminar; um rápido aperto de mão, e adeus, para nunca mais...
Á noite, porém, à hora de ir à estação, que sacrifício em se arrancar aos confortos da sua poltrona, e do seu charuto!... Atirou-se para o coupé desesperado, maldizendo essa tarde no boudoir azul em que, por causa duma rosa e dum certo vestido cor de folha morta que lhe ficava bem, ele se achara caído com ela num sofá...
Ao chegar a Santa Apolónia faltavam, para a partida do expresso, dois minutos. Precipitou-se para a extremidade da sala, já quasi vazia àquela hora, a comprar uma admissão; e ainda aí esperou uma eternidade, vendo dentro do postigo duas mãos lentas e moles arranjar laboriosamente os patacos dum troco.
Penetrava enfim na sala de espera - quando esbarrou com o Dâmaso, de chapéu desabado e sacola de viagem a tiracolo. Dâmaso agarrou-lhe as mãos, enternecido:
- Ó menino! pois tiveste o incomodo?... E como soubeste tu que eu partia?
Carlos não o desiludiu, balbuciando que lho dissera o Taveira, que encontrara o Taveira...
- Pois eu estava mais longe duma destas! exclamou o Dâmaso. Esta manhã, muito regalado na cama, quando me vem o telegrama... fiquei furioso! Isto é, imagina tu como eu fiquei, um desgosto assim!...
Foi então que Carlos reparou que ele estava carregado de luto, com fumo no chapéu, luvas pretas, polainas pretas, barca preta no lenço... Murmurou, embaraçado:
- O Taveira disse-me que ias, mas não me disse mais nada... Morreu-te alguém?
- Meu tio Guimarães.
- O comunista? o de Paris?
- Não, o irmão dele, o mais velho, o de Penafiel... Espera aí que eu volto já, vou ali ao café encher o frasco de cognac. Com a aflição esquecia-me o cognac...
Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos, de guarda-pó, com chapeleiras na mão. Os guardas rolavam pachorrentamente as bagagens. duma portinhola, onde se exibia um cavalheiro barrigudo, com um bonet bordado a retrós, pendia todo um cacho de amigos políticos, respeitosamente e em silêncio. A um canto uma senhora soluçava por baixo do véu.
Carlos, vendo um wagon com a papeleta de reservado imaginou lá a condessa. Um guarda precipitou-se, furioso, como se visse a profanação dum santuário. Que queria ele, que queria ele dali? Não sabia que era o reservado do Sr. Carneiro?
- Não sabia.
- Perguntasse, devia saber! ficou o outro a resmungar, ainda tremulo.
Carlos correu ainda outros wagons, onde a gente se apinhava, atabafadamente, na amontoação dos embrulhos; num, dois sujeitos, a propósito de lugares, tratavam-se de malcriados; adiante, uma criança esperneava no colo da ama, aos gritos.
- Ó menino, quem diabo andas tu a procurar? exclamou Dâmaso alegremente, surgindo por traz dele, e passando-lhe o braço pela cinta.
- Ninguém... Imaginei que tinha visto o marquês.
Imediatamente Dâmaso queixou-se daquela lúgubre maçada de ter de ir a Penafiel!
- E então agora que eu precisava tanto estar em Lisboa! Que tenho andado com uma sorte para mulheres, menino!... Uma sorte danada!
Uma sineta badalou. Dâmaso deu logo um abraço terno a Carlos, saltou para o seu wagon, enterrou na cabeça um barretinho de seda - e depois debruçado da portinhola continuou ainda as confidências. O que mais o contrariava era deixar aquele arranjinho da rua de S. Francisco. Que ferro! agora que aquilo ia tão bem, o gajo no Brasil, e ela ali, à mão, a dois passos do Grémio!...
Carlos mal o escutava, distraído, olhando o grande relógio transparente. De repente Dâmaso, à portinhola, deu um salto de surpresa:
- Olha os Gouvarinhos!
Carlos deu um salto também. O conde, de côco de viagem, de paletó alvadio, sem se apressar, como competia a um director da Companhia, vinha conversando com um empregado superior da estação, agaloado de ouro, que se encarregara da chapeleira de papelão de s. Exc.ª E a condessa, com um rico guarda-pó de foulard cor de castanho, um véu cinzento que lhe cobria a face e o chapéu, seguia atrás, com a criada escocesa, trazendo na mão um ramo de rosas.
Carlos correu para eles, foi todo um assombro.
- Por aqui, Maia?
- De viagem, conde?
É verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos anos do papá... Resolução da ultima hora, quasi iam perdendo o comboio.
- Então temo-lo por companheiro, Maia? Teremos esse grande prazer, Maia?
Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a mão ao pobre Dâmaso, de jornada para Penafiel, por causa da morte do tio.
Debruçado da portinhola, com as mãos de fora calçadas de negro, o pobre Dâmaso estava saudando a senhora condessa, gravemente, funebremente. E o bom Gouvarinho não quis deixar de lhe ir dar logo o seu shake-hands e o seu pêsame.
Sozinho nesse curto instante com a condessa, Carlos murmurou apenas:
- Que ferro!
- Este maldito homem! exclamou ela, entre dentes, com um olhar que fuzilou através do véu. Tudo tão bem arranjado, e à ultima hora teima em vir!...
Carlos acompanhou-os até ao reservado, num outro wagon que se estivera metendo de novo para s. Exc.ª A condessa tomou o lugar do canto junto da portinhola. E como o conde, num tom de polidez ácida, a aconselhava a que se sentasse antes com o rosto para a máquina, ela teve um gesto de aborrecimento, atirou o ramo para o lado desabridamente, enterrou-se com mais força na almofada; e um duro olhar de cólera passou entre ambos. Carlos, embaraçado, perguntava:
- Então vão com demora?
O conde respondeu, sorrindo, disfarçando o seu mau humor:
- Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas ferias.
- Três dias, o mais, replicou ela numa voz fria e afiada como uma navalha.
O conde não respondeu, lívido.
Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silêncio caíra sobre a plataforma. O apito da máquina varou o ar; e o comprido trem, num ruído seco de freios retesados, começou a rolar, com gente ás portinholas, que ainda se debruçava, estendendo a mão para um ultimo aperto. Aqui e além esvoaçava um lenço branco. O olhar da condessa para o lado de Carlos teve a doçura de um beijo, o Dâmaso gritou saudades para o Ramalhete. O compartimento do correio resvalou, alumiado; e com outro dilacerante silvo o comboio mergulhou na noite...
Carlos, só, dentro do coupé, voltando à Baixa, sentia uma alegria triunfante com aquela partida da condessa, e a inesperada jornada do Dâmaso. Era como uma dispersão providencial de todos os importunos: e assim se fazia em torno da rua de S. Francisco uma solidão - com todos os seus encantos, e todas as suas cumplicidades.
No cais do Sodré deixou a carruagem, subiu a pé pelo Ferregial, veio passar diante das janelas na rua de S. Francisco. Só pôde ver uma vaga tira de claridade entre as portadas meio cerradas. Mas isto bastava-lhe. Podia agora imaginar com precisão o serão calmo que ela estava passando na larga sala de reps vermelho. Sabia o nome dos livros que ela lia, e as partituras que tinha sobre o piano; e as flores que espalhavam ali o seu aroma vira-as ele arranjar nessa manhã. Poria ela um instante o seu pensamento nele? Decerto; a doença em casa forçava-a a lembrar as horas do remédio, as explicações que ele dera, e o som da sua voz; e falando com miss Sarah pronunciaria decerto o seu nome. Duas vezes percorreu a rua de S. Francisco; e recolheu para casa, sob a noite estrelada, devagar, ruminando a doçura daquele grande amor.
Então todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa, esplêndida, perfeita, «a visita à inglesa».
Saltava do leito, cantando como um canário, e penetrava no seu dia como numa acção triunfal. O correio chegava; e invariavelmente lhe trazia uma carta da Gouvarinho, três folhas de papel de onde caia sempre alguma pequena flor meio murcha. Ele deixava ficar a flor no tapete: e mal podia dizer o que havia naquelas longas linhas cruzadas. Sabia apenas vagamente que, três dias depois dela chegar ao Porto, o pai, o velho Tompson, tivera uma apoplexia. Ela lá estava, de enfermeira. Depois, levando duas ou três belas flores do jardim embrulhadas num papel de seda, partia para a rua de S. Francisco, sempre no seu coupé - porque o tempo mudara, e os dias seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e de chuva.
Á porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez mais enternecido. Niniche corria de dentro, a pular de amizade; ele erguia-a nos braços para a beijar. Esperava um instante na sala, de pé, saudando com o olhar os móveis, os ramos, a clara ordem das coisas; ia examinar no piano a música que ela tocara essa manhã, ou o livro que deixara interrompido, com a faca de marfim entre as folhas.
Ela entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons dias, a sua voz de ouro tinham cada dia para Carlos um encanto novo e mais penetrante. Trazia ordinariamente um vestido escuro e simples: apenas ás vezes uma gravata de rica renda antiga, ou um cinto cuja fivela era cravejada de pedras, avivavam este traje sóbrio, quasi severo, que parecia a Carlos o mais belo, e como uma expressão do seu espírito.
Começavam por falar de miss Sarah, daquele tempo agreste e húmido que lhe era tão desfavorável. Conversando, ainda de pé, ela dava aqui e além um arranjo melhor a um livro, ou ia mover uma cadeira que não estava no seu alinho; tinha o habito inquieto de recompor constantemente, a simetria das coisas; - e, maquinalmente, ao passar, sacudia a superfície de móveis já perfeitamente espanejados com as magníficas rendas do seu lenço.
Agora acompanhava-o sempre ao quarto de miss Sarah. Pelo corredor amarelo, caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sentindo a carícia desse íntimo perfume em que havia jasmim, e que parecia sair do movimento das suas saias. Ela ás vezes abria familiarmente a porta de um quarto, apenas mobilado com um velho sofá: era ali que Rosa brincava, e que tinha os arranjos de Cri-cri, as carruagens de Cri-cri, a cozinha de Cri-cri. Encontravam-na vestindo e conversando profundamente com a boneca; ou então, ao canto do sofá, com os pésinhos cruzados, imóvel, perdida na admiração de algum livro destampas aberto sobre os joelhos. Ela corria, estendia a boquinha a Carlos; e toda a sua pessoa tinha a frescura de uma linda flor.
No quarto da governante, Maria Eduarda sentava-se aos pés do leito branco; e logo a pobre miss Sarah, ainda cheia de tosse, confusa, verificando a cada instante se o lenço de seda lhe cobria correctamente o pescoço, afirmava que estava boa. Carlos gracejava com ela, provando-lhe que nesse feio tempo de inverno, a felicidade era estar ali na cama, com bons cuidados em redor, alguns romances patéticos, e apetitosa dieta portuguesa. Ela voltava os olhos gratos para Madame, com um suspiro. Depois murmurava:
- Oh yes, I am very confortable!
E enternecia-se.
Logo nos primeiros dias, ao voltar à sala, ria Eduarda tinha-se sentado na sua cadeira escarlate, e, conversando com Carlos, retomara muito naturalmente o seu bordado como na presença familiar de um velho amigo. Com que felicidade profunda ele viu desdobrar-se essa talagarça! Devia ser um faisão de plumagens rutilantes: mas por ora só estava bordado o galho de macieira em que ele pousava, galho fresco de primavera, coberto de florzinhas brancas, como num pomar da Normandia.
Carlos, junto da linda secretariasinha de pau preto, ocupava a mais velha, a mais cómoda das poltronas de reps vermelho, cujas molas rangiam de leve. Entre eles ficava a mesa de costura com as Ilustrações ou algum jornal de modas; ás vezes, um instante calado, ele folheava as gravuras, em quanto as lindas mãos de Maria, com brilhos de jóias, iam puxando os fios de lã. Aos pés dela Niniche dormitava, espreitando-os a espaços, através das repas do focinho, com o seu belo olho grave e negro. E nesses escuros dias de chuva, cheios de friagem lá fora e do rumor das goteiras, aquele canto da janela, com a paz do vagaroso trabalho na talagarça, as vozes lentas e amigas, e ás vezes um doce silêncio, tinha um ar íntimo e carinhoso...
Mas no que diziam não havia intimidades. Falavam de Paris e do seu encanto, de Londres onde ela estivera durante quatro lúgubres meses de inverno, da Itália que era o seu sonho ver, de livros, de coisas de arte. Os romances que preferia eram os de Dickens; e agradava-lhe menos Feuilet, por cobrir tudo de pó de arroz, mesmo as feridas do coração. Apesar de educada num convento severo de Orleans, lera Michelet e lera Renan. De resto não era católica praticante; as igrejas apenas a atraiam pelos lados graciosos e artístico do culto, a música, as luzes, ou os lindos meses de Maria, em França, na doçura das flores de maio. Tinha um pensar muito recto e muito são - com um fundo de ternura que a inclinava para tudo o que sofre e é fraco. Assim gostava da República por lhe parecer o regime em que há mais solicitude pelos humildes. Carlos provava-lhe rindo que ela era socialista.
- Socialista, legitimista, orleanista, dizia ela, qualquer coisa, contanto que não haja gente que tenha fome!
Mas era isso possível? Já Jesus, mesmo, que tinha tão doces ilusões, declarara que pobres sempre os haveria...
- Jesus viveu há muito tempo, Jesus não sabia tudo... Hoje sabe-se mais, os senhores sabem muito mais... É necessário arranjar-se outra sociedade, e depressa, em que não haja miséria. Em Londres, as vezes, por aquelas grandes neves, há criancinhas pelos portais a tiritar, a gemer de fome... É um horror! E em Paris então! É que se não vê senão o boulevard; mas quanta pobreza, quanta necessidade...
Os seus belos olhos quasi se enchiam de lágrimas. E cada uma destas palavras trazia todas as complexas bondades da sua alma - como num só sopro podem vir todos os aromas esparsos de um jardim.
Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou ás suas caridades, pedindo-lhe para ir ver a irmã da sua engomadeira que tinha reumatismo, e o filho da Sr.ª Augusta, a velha do patamar, que estava tísico. Carlos cumpria esses encargos com o fervor de acções religiosas. E nestas piedades achava-lhe semelhanças com o avô. Como Afonso, todo o sofrimento dos animais a consternava. Um dia viera indignada da Praça da Figueira, quasi com ideias de vingança, por ter visto nas tendas dos galinheiros aves e coelhos apinhados em cestos, sofrendo durante dias as torturas da imobilidade e a ansiedade da fome. Carlos levava estas belas cóleras para o Ramalhete, increpava violentamente o marquês, que era membro da Sociedade protectora dos animais. O marquês, indignado também, jurava justiça, falava em cadeias, em costa de África... E Carlos, comovido, ficava a pensar quanta larga e distante influência pode ter, mesmo isolado de tudo, um coração que é justo.
Uma tarde falaram do Dâmaso. Ela achava-o insuportável, com a sua petulância, os olhos bugalhudos, as perguntas néscias. V. Exc.ª acha Nice elegante? V. Exc.ª prefere a capela de S. João Baptista a Notre-Dame?...
- E então a insistência de falar de pessoas que eu não conheço! A Sr.ª condessa de Gouvarinho, e os chás da Sr.ª condessa de Gouvarinho, e a frisa da Sr.ª condessa de Gouvarinho, e a referência que a Sr.ª condessa de Gouvarinho tem por ele...! E isto horas! Eu ás vezes tinha medo de adormecer...
Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ela, entre todos, o nome da Gouvarinho? Tranquilizou-se, vendo-a rir simples e limpidamente. Decerto não sabia quem era Gouvarinho. Mas, para sacudir logo de entre eles esse nome, começou a falar de Mr. Guimarães, o famoso tio do Dâmaso, o amigo de Gambeta, o influente da República...
- O Dâmaso tem-me dito que V. Exc.ª o conhece muito...
Ela erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.
- Mr. Guimarães?... Sim, conheço muito... Ultimamente víamo-nos menos, mas ele era muito amigo da mamã.
E depois dum silêncio, dum curto sorriso, recomeçando a puxar o seu longo fio de lã:
- Pobre Guimarães, coitado! A sua influência na República é traduzir noticias dos jornais espanhóis e italianos para o Rapel, que disso é que vive... Se é amigo de Gambeta, não sei, Gambeta tem amigos tão extraordinários... Mas o Guimarães, aliás bom homem e homem honrado, é um grotesco, uma espécie de Calino republicano. E tão pobre, coitado! O Dâmaso, que é rico, se tivesse decência, ou o menor sentimento, não o deixava viver assim tão miseravelmente.
- Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que fala o Dâmaso...?
Ela encolheu mudamente os ombros: e Carlos sentiu pelo Dâmaso um asco intolerável.
Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais penetrante. Ela quis saber a idade de Carlos, ele falou-lhe do avô. E durante essas horas suaves em que ela, silenciosa, ia picando a talagarça, ele contou-lhe a sua vida passada, os planos de carreira, os amigos, e as viagens... Agora ela conhecia a paisagem de Santa Olavia, o reverendo Bonifácio, as excentricidades do Ega. Um dia quis que Carlos lhe explicasse longamente a ideia do seu livro A medicina antiga e moderna. Aprovou, com simpatia, que ele pintasse as figuras dos grandes médicos, benfeitores da humanidade. Porque se glorificariam só guerreiros e fortes? A vida salva a uma criança parecia-lhe coisa bem mais bela que a batalha de Austerlitz. E estas palavras que dizia com simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, caiam no coração de Carlos e ficavam lá muito tempo, palpitando e brilhando...
Ele tinha-lhe feito assim largamente todas as confissões; - e ainda não sabia nada do seu passado, nem mesmo a terra em que nascera, nem sequer a rua que habitava em Paris. Não lhe ouvira murmurar jamais o nome do marido, nem falar dum amigo ou duma alegria da sua casa. Parecia não ter em França, onde vivia, nem interesses, nem lar; - e era realmente como a deusa que ele ideara, sem contactos anteriores com a terra, descida da sua nuvem de oiro. para vir ter ali, naquele andar alugado da rua de S. Francisco, o seu primeiro estremecimento humano.
Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham falado de afeições. Ela acreditava candidamente que pudesse haver, entre uma mulher e um homem, uma amizade pura, imaterial, feita da concordância amável de dois espíritos delicados. Carlos jurou que também tinha fé nessas belas uniões, todas de estima, rodas de razão contanto que se lhes misturasse, ao de leve que fosse, uma ponta de ternura... Isso perfumava-as dum grande encanto - e não lhes diminuía a sinceridade. E, sob estas palavras um pouco difusas, murmuradas por entre as malhas do bordado e com lentos sorrisos, ficara subtilmente estabelecido que entre eles só deveria haver um sentimento assim, casto, legitimo, cheio de suavidade e sem tormentos.
Que importava a Carlos? Contanto que pudesse passar aquela hora na poltrona de cretone, contemplando-a a bordar, e conversando em coisas interessantes, ou tornadas interessantes pela graça da sua pessoa; contanto que visse o seu rosto, ligeiramente corado, baixar-se, com a lenta atracção duma carícia, sobre as flores que lhe trazia; contanto que lhe afagasse a alma a certeza de que o pensamento dela o ficava seguindo simpaticamente através do seu dia, mal ele deixava aquela adorada saia de reps vermelho - o seu coração estava satisfeito, esplendidamente.
Não pensava mesmo que aquela ideal amizade, de intenção casta, era o caminho mais seguro para a trazer, brandamente enganada, aos seus braços ardentes de homem. No deslumbramento que o tomara ao ver-se de repente admitido a uma intimidade que julgara impenetrável, - os seus desejos desapareciam: longe dela, ás vezes, ainda ousavam ir temerariamente até à esperança dum beijo, ou duma fugitiva carícia com a ponta dos dedos; mas apenas transpunha a sua porta, e recebia o calmo raio do seu olhar negro, caia em devoção, e julgaria um ultraje bestial roçar sequer as pregas do seu vestido.
Foi aquele decerto o período mais delicado da sua vida. Sentia em si mil coisas finas, novas, duma tocante frescura. Nunca imaginara que houvesse tanta felicidade em olhar para as estrelas quando o céu está limpo; ou em descer de manhã ao jardim para escolher uma rosa mais aberta. Tinha na alma um constante sorriso - que os seus lábios repetiam. O marquês achava-lhe o ar baboso e abençoador...
Ás vezes, passeando só no seu quarto, perguntara a si mesmo onde o levaria aquele grande amor. Não sabia. Tinha diante de si os três meses em que ela estaria em Lisboa, e em que ninguém mais senão ele ocuparia a velha cadeira ao lado do seu bordado. O marido andava longe, separado por léguas de mar incerto. Depois ele era rico, e o mundo era largo...
Conservara sempre as suas grandes ideias de trabalho, querendo que no seu dia só houvesse horas nobres, - e que aquelas que não pertenciam ás puras felicidades do amor, pertencessem ás alegrias fortes do estudo. Ia ao laboratório, ajuntava algumas linhas ao seu manuscrito. Mas antes da visita à rua de S. Francisco não podia disciplinar o espírito, inquieto, num tumulto de esperanças; e depois de voltar de lá, passava o dia a recapitular o que ela dissera, o que ele respondera, os seus gestos, a graça de certo sorriso... Fumava então cigarretes, lia os poetas.
Todas as noites no escritório de Afonso se formava a partida de whist. O marquês batia-se ao dominó com o Taveira, enfronhados ambos naquele vício, com um rancor crescente que os levava a injurias. Depois das corridas, o secretario de Steinbroken começara a vir ao Ramalhete; mas era um inútil, nem cantava sequer como o seu chefe as bailadas da Finlândia; cabido no fundo duma poltrona, de casaca, de vidro no olho, bamboleando a perna, cofiava silenciosamente os seus longos bigodes tristes.
O amigo que Carlos gostava de ver entrar era o Cruges - que vinha da rua de S. Francisco, trazia alguma coisa do ar que Maria Eduarda respirava. O maestro sabia que Carlos ia rodas as manhãs ao prédio ver a «miss inglesa»: e muitas vezes, inocentemente, ignorando o interesse de coração com que Carlos o escutava, dava-lhe as ultimas noticias da vizinha...
- A vizinha lá ficou agora a tocar Mendelhson... Tem execução, tem expressão, a vizinha... Há ali estofo... E entende o seu Chopin.
Se ele não aparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa busca-lo: entravam no Grémio, fumavam um charuto nalguma sala isolada, falando da vizinha: Cruges achava-lhe «um verdadeiro tipo de grande dame».
Quasi sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinha ver (como ele dizia a faiscar de ironia) o que se passava «no país do Sr. Gambeta». Parecera remoçar ultimamente, mais ligeiro nos modos, com uma claridade de esperança nas lunetas, na fronte erguida. Carlos perguntava-lhe pela condessa. Lá estava no Porto, nos seus deveres de filha...
- E seu sogro?
O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resignadamente:
- Mal.
Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando Niniche que se lhe viera sentar nos joelhos, quando Romão entreabriu discretamente o reposteiro, e baixando a voz, com um ar embaraçado, um ar de cumplicidade, murmurou:
- É o Sr. Dâmaso!...
Ela olhou o Romão, surpreendida daqueles modos, e quasi escandalizada.
- Pois bem, mande entrar!
E Dâmaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flor ao peito, gorducho, risonho, familiar, com o chapéu na mão, trazendo dependurado por um barbante um grande embrulho de papel pardo... Mas ao ver Carlos ali, intimamente, de cadelinha no colo, estacou assombrado, com o olho esbugalhado, como tonto. Enfim desembaraçou as mãos, veio cumprimentar Maria Eduarda quasi de leve, - e voltando-se logo para Carlos, de braços abertos, todo o seu espanto transbordou ruidosamente:
- Então tu aqui, homem? Isto é que é uma surpresa! Ora quem me diria!... Eu estava mais longe...
Maria Eduarda, incomodada com aquele alarido, indicou-lhe vivamente uma cadeira, interrompeu um instante o bordado, quis saber como ele tinha chegado.
- Perfeitamente, minha senhora... Um bocado cansado, como é natural... Venho direitinho de Penafiel... Como V. Exc.ª vê - e mostrou o seu luto pesado - acabo de passar por um grande desgosto.
Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga e fria. Dâmaso pousara os olhos no tapete. Vinha da província cheio de cor, cheio de sangue; e como cortara a barba (que havia meses deixara crescer para imitar Carlos) parecia agora mais bochechudo e mais nédio. As coxas roliças estalavam-lhe de gordura dentro da calça de casimira preta.
- E então, perguntou Maria Eduarda, temo-lo por cá algum tempo?
Ele deu um puxãosinho à cadeira, mais para junto dela, e outra vez risonho:
- Agora, minha senhora, ninguém me arranca de Lisboa! Podem-me morrer... Isto é, credo! teria grande ferro se me morresse alguém. O que quero dizer é que há de custar a arrancar-me daqui!
Carlos continuava muito sossegadamente a acariciar os pêlos da Niniche. E houve então um pequeno silêncio. Maria Eduarda retomara o bordado. E Dâmaso, depois de sorrir, de tossir, de dar um jeito ao bigode, estendeu a mão para acariciar também Niniche sobre os joelhos de Carlos. Mas a cadelinha, que havia momentos o espreitava com o olho desconfiado, ergueu-se, rompeu a ladrar furiosa.
- C'est moi Niniche! dizia Dâmaso, recuando a cadeira. C'est moi, ami... Alors, Niniche...
Foi necessário que Maria Eduarda repreendesse severamente Niniche. E, aninhada de novo no colo de Carlos, ela continuou a espreitar Dâmaso, rosnando, e com rancor.
- Já me não conhece, dizia ele embaçado, é curioso...
- Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito séria. Mas não sei o que o Sr. Dâmaso lhe fez, que ela tem-lhe ódio. É sempre este escândalo.
Dâmaso balbuciava, escarlate:
- Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?... Carícias, sempre carícias...
E então não se conteve, falou com ironia, amargamente, das amizades novas de Mademoisele Niniche. Ali estava nos braços de outro, enquanto que ele, o amigo velho, era deitado ao canto...
Carlos ria.
- Ó Dâmaso, não a acuses de ingratidão... Pois se a Sr.ª D. Maria Eduarda esta a dizer que ela sempre te teve ódio...
- Sempre! exclamou Maria.
Dâmaso sorria também, lividamente. Depois, tirando um lenço de barra negra, limpando os beiços e mesmo o suor do pescoço, lembrou a Maria Eduarda como ela o tinha desapontado no dia das corridas... Ele toda a tarde à espera...
- Eram vésperas de partida, disse ela.
- Sim, bem sei, o marido de V. Exc.ª... E como vai o Sr. Castro Gomes? V. excª já recebeu noticias?
- Não, respondeu ela com o rosto sobre o bordado.
Dâmaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoisele Rosa. Depois por Cri-cri. Era necessário não esquecer Cri-cri...
- Pois V. excª - continuou ele, cheio subitamente de loquacidade - perdeu, que as corridas estiveram esplêndidas... Nós ainda não nos vimos depois das corridas, Carlos. Ah, sim, vimo-nos na estação... Pois não é verdade que estiveram muito chics? Olhe, minha senhora, duma coisa pode V. excª estar certa, é que hipódromo mais bonito não há lá fora. Uma vista até à barra, que é de apetite... Até se vêem entrar os navios... Pois não é assim, Carlos?
- Sim, disse Carlos, sorrindo. Não é propriamente um campo de corridas... É verdade que não há também propriamente cavalos de corridas... Verdade seja que não há jockeys... Ora é verdade que não há apostas... Mas é verdade também que não há publico...
Maria Eduarda ria, alegremente.
- Mas então?
- Vêem-se entrar os navios, minha senhora...
Dâmaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente querer dizer mal à força... Não senhor, não senhor!... Eram muito boas corridas. Tal qual como lá fora, as mesmas regras, tudo...
- Até na pesagem, acrescentou ele muito sério, falamos sempre inglês!
Repetiu ainda que as corridas eram chics. Depois não achou mais nada: - e falou de Penafiel, onde chovera sempre tanto que ele vira-se forçado a ficar em casa, estupidamente, a ler...
- Uma maçada! Ainda se houvesse ali umas mulheres para ir dar um bocado de cavaco... Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradeiras, raparigas de pé descalço, não tolero... Há gente que gosta... Mas eu, acredite V. Exc.ª não tolero...
Carlos corara: mas Maria Eduarda parecia não ter ouvido, ocupada a contar atentamente as malhas do seu bordado.
De repente Dâmaso recordou-se que tinha ali um presentinho para a Sr.ª D. Maria Eduarda. Mas não imaginasse que era alguma preciosidade... Verdadeiramente até o presente era para Mademoisele Rosa.
- Olhe, para não estar com mistérios, sabe o que é? Tenho-o ali. no embrulhosinho de papel pardo... São seis barrilinhos de ovos moles de Aveiro. É um doce muito célebre, mesmo lá fora. Só o de Aveiro é que tem chic... Pergunte V. Exc.ª ao Carlos. Pois não é verdade, Carlos, que é uma delícia, até conhecido lá fora?
- Ah, certamente, murmurou Carlos, certamente...
Pousara Niniche no chão, erguera-se, fora buscar o seu chapéu.
- Já?... perguntou-lhe Maria Eduarda, com um sorriso que era só para ele. Até amanhã, então!
E voltou-se logo para o Dâmaso, esperando vê-lo erguer-se também. Elo conservou-se instalado, com um ar de demora, familiar, e bamboleando a perna. Carlos estendeu-lhe dois dedos.
- Au revoir, disse o outro. Recados lá no Ramalhete, hei de aparecer!...
Carlos desceu as escadas furioso.
Ali ficava pois aquele imbecil impondo a sua pessoa, grosseiramente, tão obtuso que não percebia o enfado dela, a sua regelada secura! E para que ficava? Que outras crassas banalidades tinha ainda a soltar, em calão, e de perna traçada? E de repente lembrou-lhe o que ele lhe dissera na noite do jantar do Ega, à porta do Hotel Central, a respeito da própria Maria Eduarda, e do seu sistema com mulheres «que era o atracção». Se aquele idiota, de repente, abrasado e bestial, ousasse um ultraje? A suposição era insensata, talvez - mas reteve-o no pátio, aplicando o ouvido para cima, com ideias ferozes de esperar ali o Dâmaso, proibir-lhe de tornar a subir aquela escada, e, à menor reflexão dele, esmagar-lhe o crânio nas lages...
Mas sentiu em cima a porta abrir-se, e saiu vivamente, no receio de ser assim surpreendido à escuta. O coupé do Dâmaso estacionava na rua. Então veio-lhe uma curiosidade mordente de saber quanto tempo ele ficaria ali com Maria Eduarda. Correu ao Grémio; e apenas abrira uma vidraça - viu logo o Dâmaso sair do portão, saltar para o coupé, bater com forca a portinhola. Pareceu-lhe que trazia o ar escorraçado, e subitamente teve dó daquele grotesco...
Nessa noite, depois de jantar, Carlos só no seu quarto fumava, enterrado numa poltrona, relendo uma carta do Ega recebida nessa manhã, - quando apareceu o Dâmaso. E, sem pousar mesmo o chapéu, logo da porta, exclamou, com o mesmo espanto da manhã:
- Então dize-me cá! Como diabo te vou eu encontrar hoje com a brasileira?... Como a conheceste tu? Como foi isso?
Sem mover a cabeça do espaldar da poltrona, cruzando as mãos sobre os joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora cheio de bom humor, disse, com uma doce repreensão paternal:
- Pois então tu vais expor a uma senhora as tuas opiniões lúbricos sobre as lavradeiras de Penafiel!
- Não se trata disso, sei muito bem o que hei de expor! exclamou o outro, vermelho. Conta lá, anda... Que diabo! Parece-me que tenho direito a saber... Como a conheceste tu?
Carlos, imperturbável, cerrando os olhos como para se recordar, começou num tom lento e solene de recitativo:
- Por uma tépida tarde de primavera, quando o sol se afundava em nuvens de oiro, um mensageiro esfalfado pendurava-se da campainha do Ramalhete. Via-se-lhe na mão uma carta, lacrada com selo heráldico; e a expressão do seu semblante...
Dâmaso, já zangado, atirou com o chapéu para cima da mesa.
- Parece-me que era mais decente deixar-te desses mistérios!
- Mistérios? Tu vens obtuso, Dâmaso. Pois tu entras numa casa onde existe há quasi um mês uma pessoa gravemente doente, e ficas assombrado, petrificado, ao encontrar lá o médico! Quem esperavas tu ver lá? Um fotografo?
- Então quem está doente?
Carlos, em poucas palavras, disse-lhe a bronquite da inglesa - enquanto o Dâmaso, sentado à beira do sofá, mordendo o charuto sem lume, olhava para ele desconfiado.
- E como soube ela onde tu moravas?
- Como se sabe onde mora o rei; onde é a alfândega; de que lado luz a estrela da tarde; os campos onde foi Tróia... Estas coisas que se aprendem nas aulas de instrução primaria...
O pobre Dâmaso deu alguns passos pela sala, embezerrado, com as mãos nos bolsos.
- Ela tem agora lá o Romão, o que foi meu criado, murmurou depois dum silêncio. Eu tinha-lho recomendado... Ela leva-se muito pelo que eu lhe digo...
- Sim, tem, por uns dias, enquanto o Domingos foi à terra. Vai manda-lo embora, é um imbecil, e tu tinhas-lhe ensinado mas maneiras...
Então Dâmaso atirou-se para o canto do sofá e confessou que ao entrar na sala, quando dera com os olhos em Carlos, de cadelinha no colo, ficara furioso... Enfim, agora que sabia que era por doença, bem, tudo se explicava... Mas primeiro parecera-lhe que andava ali tramóia... Só com ela, ainda pensou em lhe perguntar: depois receou que não fosse delicado; e além disso ela estava de mau humor...
E acrescentou logo, acendendo o charuto:
- Que apenas tu saíste, pôs-se melhor, mais à vontade... Rimos muito... Eu fiquei ainda até tarde, quasi duas horas mais; era perto das cinco quando sai. Outra coisa, ela falou-te alguma vez de mim?
- Não. É uma pessoa de bom gosto; e sabendo que nos conhecemos, não se atreveria a dizer-me mal de ti. Dâmaso olhou-o, esgazeado:
- Ora essa!... Mas podia ter dito bem!
- Não; é uma pessoa de bom senso, não se atreveria também.
E erguendo-se vivamente, Carlos abraçou Dâmaso pela cinta, acariciando-o, perguntando-lhe pela herança do titi, e em que amores, em que viagens, em que cavalos de luxo ia gastar os milhões...
Dâmaso, sob aquelas festas alegres, permanecia frio, amuado, olhando-o de revés.
- Olha que tu, disse ele, parece-me que me vais saindo também um traste... Não há a gente fiar-se em ninguém!
- Tudo na terra, meu Dâmaso, é aparência e engano!
Seguiram dali à sala do bilhar fazer «a partida de reconciliação». E pouco a pouco, sob a influência que exercia sempre sobre ele o Ramalhete, Dâmaso foi sossegando, risonho já, gozando de novo a sua intimidade com Carlos no meio daquele luxo sério, e tratando-o outra vez por «menino». Perguntou pelo Sr. Afonso da Maia. Quis saber se o belo marquês tinha aparecido. E o Ega, o grande Ega?...
- Recebi carta dele, disse Carlos. Vem ai, temo-lo talvez cá no sábado.
Foi um espanto para o Dâmaso.
- Homem! essa é curiosa! E eu encontrei os Cohens, hoje!... Vieram há dois dias de Southampton... Jogo eu?
Jogou, falhou a carambola.
- Pois é verdade, encontrei-os hoje, falei-lhes um instante... E a Rachel vem melhor, vem mais gorda... Trazia uma toilete inglesa com coisas brancas, coisas cor de rosa... Chic a valer, parecia um moranguinho! E então o Ega de volta?... Pois, menino, ainda temos escândalo!
Capítulo XII
No sábado, com efeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete de volta da rua de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto, metido num fato de cheviote claro, e com o cabelo muito crescido.
- Não faças espalhafato, gritou-lhe ele, que eu estou em Lisboa incógnito!
E em seguida aos primeiros abraços declarou que vinha a Lisboa, só por alguns dias, unicamente para comer bem e para conversar bem. E contava com Carlos para lhe fornecer esses requintes, ali, no Ramalhete...
- Há cá um quarto para mim? Eu por ora estou no Hotel Espanhol, mas ainda nem mesmo abri a mala... Basta-me uma alcova, com uma mesa de pinho, larga bastante para se escrever uma obra sublime.
Decerto! Havia o quarto em cima, onde ele estivera depois de deixar a Vila Balzac. E mais sumptuoso agora, com um belo leito da Renascença, e uma cópia dos Borrachos de Velasquez.
- Óptimo covil para a arte! Velasquez é um dos Santos Padres do naturalismo... A propósito, sabes com quem eu vim? Com a Gouvarinho. O pai Tompson esteve à morte, arribou, depois o conde foi busca-la. Achei-a magra; mas com um ar ardente; e falou-me constantemente de ti.
- Ah! murmurou Carlos.
Ega, de monóculo no olho e mãos nos bolsos, contemplava Carlos.
- É verdade. Falou de ti constantemente, irresistivelmente, imoderadamente! Não me tinhas mandado contar isso... Sempre seguiste o meu conselho, hein? Muito bem feita de corpo, não é verdade? E que tal, no acto de amor?
Carlos corou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera com a Gouvarinho senão relações superficiais. Ia lá ás vezes tomar uma chávena de chá; e à hora do Chiado acontecia-lhe, como a todo o mundo, conversar com o conde sobre as misérias publicas, à esquina do Loreto. Nada mais.
- Tu estás-me a mentir, devasso! dizia o Ega. Mas não importa. Eu hei de descobrir tudo isso com o meu olho de Balzac, na segunda-feira... Porque nós vamos lá jantar na segunda-feira.
- Nós... Nós, quem?
- Nós. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me no comboio. E o Gouvarinho, como compete ao indivíduo daquela espécie, acrescentou logo que havíamos de ter também «o nosso Maia». O Maia dele, e o Maia dela... Santo acordo! Suavíssimo arranjo!
Carlos olhou-o com severidade.
- Tu vens obsceno de Celorico, Ega.
- É o fluo se aprende no seio da Santa Madre Igreja.
Mas também Carlos tinha uma novidade que o devia fazer estremecer. O Ega porém já sabia. A chegada dos Cohens, não é verdade? Lêra-o logo nessa manhã, na Gazeta Ilustrada no high-life. Lá se dizia respeitosamente que s. Exc.ªs tinham regressado do seu passeio pelo estrangeiro.
- E que impressão te fez? perguntou Carlos rindo.
O outro encolheu brutalmente os ombros:
- Fez-me o efeito de haver um cabrão mais na cidade.
E, como Carlos o acusava outra vez de trazer de Celorico uma língua imunda, o Ega, um pouco corado, arrependido talvez, lançou-se em considerações criticas, clamando pela necessidade social de dar ás coisas o nome exacto. Para que servia então o grande movimento naturalista do século? Se o vício se perpetuava, é porque a sociedade, indulgente e romanesca, lhe dava nomes que o embelezavam, que o idealizavam... Que escrúpulo pode ter uma mulher em beijocar um terceiro entre os lençóis conjugais, se o mundo chama a isso sentimentalmente um romance, e os poetas o cantam em estrofes de ouro?
- E a propósito, a tua comedia, o Lodaçal? perguntou Carlos, que entrara um instante para a alcova de banho.
- Abandonei-a, disse o Ega. Era feroz de mais... E além disso fazia-me remexer na podridão lisboeta, mergulhar outra vez na sargeta humana... Afigia-me...
Parou diante do grande espelho, deu um olhar descontente ao seu jaquetão claro e ás botas com mau verniz.
- Preciso enfardelar-me de novo, Carlinhos... O Poole naturalmente mandou-te fato de verão, hei-de querer examinar esses cortes da alta civilização... Não há que negá-lo, diabo, esta minha linha está chinfrim!
Passou uma escova pelo bigode, e continuou falando para dentro, para a alcova de banho:
- Pois, menino, eu agora o que necessito é o regime da Quimera. Vou-me atirar outra vez ás Memórias. Há de se fazer aí uma quantidade de arte colossal nesse quarto que me destinas, diante de Velasquez... E a propósito, é necessário ir cumprimentar o velho Afonso, uma vez que ele me vai dar o pão, o tecto, e a enxerga...
Foram encontrar Afonso da Maia no escritório, na sua velha poltrona, com um antigo volume da Ilustração francesa aberto sobre os joelhos, mostrando as estampas a um pequeno bonito, muito moreno, de olho vivo, e cabelo encarapinhado. O velho ficou contentíssimo ao saber que o Ega vinha por algum tempo alegrar o Ramalhete com a sua bela fantasia.
- Já não tenho fantasia, Sr. Afonso da Maia!
Então esclarecê-lo com a tua clara razão, disse o velho rindo. Estamos cá precisando de ambas as coisas, John.
Depois apresentou-lhe aquele pequeno cavalheiro, o Sr. Manuelinho, rapazinho amável da vizinhança, filho do Vicente, mestre de obras; o Manuelinho vinha ás vezes animar a solidão de Afonso - e ali folheavam ambos livros destampas e tinham conversas filosóficas. Agora, justamente, estava ele muito embaraçado por não lhe saber explicar como é que o general Canrobert (de quem estavam admirando o garbo sobre o seu cavalo empinado) tendo mandado matar gente, muita gente, em batalhas, não era melido na cadeia...
- Está visto! exclamou o pequeno, esperto e desembaraçado, com as mãos cruzadas atrás das costas. Se mandou matar gente deviam-no ferrar na cadeia!
- Hein, amigo Ega! dizia Afonso rindo. Que se há de responder a esta bela lógica? Olha, filho, agora que estão aqui estes dois senhores que são formados em Coimbra, eu vou estudar esse caso... Vai tu ver os bonecos ali para cima da mesa... E depois vão sendo horas de ires lá dentro à Joana, para merendares.
Carlos, ajudando o pequeno a acomodar-se à mesa com o seu grande volume destampas, pensava quanto o avô, com aquele seu amor por crianças, gostaria de conhecer Rosa!
Afonso no entanto perguntava também ao Ega pela comedia. O quê! Já abandonada? Quando acabaria então o bravo John de fazer bocados incompletos de obras-primas?... - Ega queixou-se do país, da sua indiferença pela arte. Que espírito original não esmoreceria, vendo em torno de si esta espessa massa de burgueses, amodorrada e crassa, desdenhando a inteligência, incapaz de se interessar por uma ideia nobre, por uma frase bem feita?
- Não vale a pena, Sr. Afonso da Maia. Neste país, no meio desta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano...
- Pois então, acudiu o velho, planta os teus legumes. É um serviço à alimentação publica. Mas tu nem isso fazes!
Carlos, muito sério, apoiava o Ega.
- A única coisa a fazer em Portugal, dizia ele, é plantar legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda cerre lá no fundo. E se se vir então que não encerra nada, demitamo-nos logo voluntariamente da nossa posição de país para que não temos elementos, passemos a ser uma fértil e estúpida província espanhola, e plantemos mais legumes!
O velho escutava com melancolia estas palavras do neto em que sentia como uma decomposição da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a glorificação da sua inércia. Terminou por dizer:
- Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!
- O Carlos já não faz pouco, exclamou Ega, rindo. Passeia a sua pessoa, a sua toilete e o seu faeton, e por esse facto educa o gosto!
O relógio Luís xv interrompeu-os - lembrando ao Ega que devia ainda, antes de jantar, ir buscar a sua mala ao Hotel Espanhol. Depois no corredor confessou a Carlos que, antes de ir ao Espanhol, queria correr ao Filon, ao fotografo, ver se podia tirar um bonito retrato.
- Um retrato?
- Uma surpresa que tem de ir daqui a três dias para Celorico, para o dia de anos duma creaturinha que me adoçou o exílio.
- Oh Ega!
- É horroroso, mas então? É a filha do padre Correia, filha conhecida como tal; além disso casada com um proprietário rico da vizinhança, reaccionário odioso... De modo que, bem vês, esta dupla peça a pregar à Religião e à Propriedade...
- Ah! nesse caso...
- Ninguém se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres democráticos!
Na segunda-feira seguinte chuviscava quando Carlos e Ega, no coupé fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. Desde a chegada da condessa Carlos vira-a só uma vez, em casa dela; e fora uma meia hora desagradável, cheia de mal-estar, com um ou outro beijo frio, e recriminações infindáveis. Ela queixara-se das cartas dele, tão raras, tão secas. Não se puderam entender sobre os planos desse verão, ela devendo ir para Sintra onde já alugara casa, Carlos falando no dever de acompanhar o avô a Santa Olavia. A condessa achava-o distraído: ele achou-a exigente. Depois ela sentou-se um instante sobre os seus joelhos e aquele leve e delicado corpo pareceu a Carlos de um fastidioso peso de bronze.
Por fim a condessa arrancara-lhe a promessa de a ir encontrar, justamente nessa segunda-feira de manhã, a casa da titi, que estava em Santarém; - porque tinha sempre o apetite perverso e requintado de o apertar nos braços nús, em dias que o devesse receber na sua sala, mais tarde, e com cerimónia. Mas Carlos faltara, - e agora, rodando para casa dela, impacientavam-no já as queixas que teria de ouvir nos vãos de janela, e as mentiras chochas que teria de balbuciar...
De repente o Ega, que fumava em silêncio, abotoado no seu paletó de verão, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sério:
- Dize-me uma coisa, se não é um segredo sacrosanto... Quem é essa brasileira com quem tu agora passas todas as tuas manhãs?
Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.
- Quem te falou nisso?
- Foi o Dâmaso que mo disse. Isto é, o Dâmaso que mo rugiu... Porque foi de dentes rilhados, a dar murros surdos num sofá do Grémio, e com uma cor de apoplexia, que ele me contou tudo...
- Tudo o quê?
- Tudo. Que te apresentara a uma brasileira a quem se atirava, e que tu, aproveitando a sua ausência, te meteras lá, não saias de lá...
- Tudo isso é mentira! exclamou o outro, já impaciente.
E Ega, sempre risonho:
- Então «que é a verdade», como perguntava o velho Pilatus ao chamado Jesus Cristo?
- É que há uma senhora a quem o Dâmaso supunha ter inspirado uma paixão, como supõe sempre, e que, tendo-lhe adoecido a governante inglesa com uma bronquite, me mandou chamar para eu a tratar. Ainda não está melhor, eu vou vê-la todos os dias. E Madame Gomes, que é o nome da senhora, que nem brasileira é, não podendo tolerar o Dâmaso, como ninguém o tolera, tem-lhe fechado a sua porta. Esta é a verdade; mas talvez eu arranque as orelhas ao Dâmaso!
Ega contentou-se em murmurar:
- E aí está como se escreve a história... vá-se lá a gente fiar em Guizot!
Em silêncio, até casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a sua cólera contra o Dâmaso. Aí estava pois rasgada por aquele imbecil a penumbra suave e favorável em que se abrigara o seu amor! Agora já se pronunciava o nome de Maria Eduarda no Grémio: o que o Dâmaso dissera ao Ega, repeti-lo-hia a outros, na Casa Havaneza, no restaurante Silva, talvez nos lupanares: e assim o interesse supremo da sua vida seria daí por diante constantemente perturbado, estragado, sujo pela tagarelice reles do Dâmaso!
- Parece-me que temos cá mais gente, disse o Ega, ao penetrarem na ante-câmara dos Gouvarinhos, vendo sobre o canapé um paletó cinzento e capas de sonhem.
A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada «do busto», vestida de preto, com uma tira de veludo em volta do pescoço picada de três estrelas de diamantes. Uma cesta de esplêndidas flores quasi enchia a mesa, onde se acumulavam também romances ingleses, e uma Revista dos Dois Mundos em evidencia, com a faca de marfim entre as folhas. Além da boa D. Maria da Cunha e da baronesa de Alvim, havia uma outra senhora, que nem Carlos nem Ega conheciam, gorda e vestida de escarlate; e de pé, conversando baixo com o conde, de mãos atrás das costas, um cavalheiro alto, escaveirado, grave, com uma barba rala, e a comenda da Conceição.
A condessa, um pouco corada, estendeu a Carlos a mão amuada e frouxa: todos os seus sorrisos foram para o Ega. E o conde apoderou-se logo do querido Maia, para o apresentar ao seu amigo o Sr. Sousa Neto. O Sr. Sousa Neto já tinha o prazer de conhecer muito Carlos da Maia, como um médico distinto, uma honra da Universidade... E era esta a vantagem de Lisboa, disse logo o conde, o conhecerem-se todos de reputação, o poder-se ter assim uma apreciação mais justa dos caracteres. Em Paris, por exemplo, era impossível; por isso havia tanta imoralidade, tanta relaxação...
- Nunca sabe a gente quem mete em casa.
O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divã, mostrando as estrelinhas bordadas das meias, fazia-as rir com a história do seu exílio em Celorico, onde se distraia compondo sermões para o abade: o abade recitava-os; e os sermões, sob uma forma mística, eram de facto afirmações revolucionarias que o santo varão lançava com fervor, esmurrando o púlpito... A senhora de vermelho, sentada defronte, de mãos no regaço, escutava o Ega, com o olhar espantado.
- Imaginei que V. Exa.ª tinha ido já para Sintra, veio dizer Carlos à senhora baronesa, sentando-se junto dela. V. Exc.ª é sempre a primeira...
- Como quer o senhor que se vá para Sintra com um tempo destes?
- Com efeito, está infernal...
- E que conta de novo? perguntou ela, abrindo lentamente o seu grande leque preto.
- Creio que não há nada de novo em Lisboa, minha senhora, desde a morte do Sr. D. João VI.
- Agora há o seu amigo Ega, por exemplo.
- É verdade, há o Ega... Como o acha V. Exc.ª, senhora baronesa?
Ela nem baixou a voz para dizer:
- Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e não gosto dele, não posso dizer nada...
- Oh senhora baronesa, que falta de caridade!
O escudeiro anunciara o jantar. A condessa tomou o braço de Carlos, - e, ao atravessar o salão, entre o frouxo murmúrio de vozes e o rumor lento das caudas de seda, pôde dizer-lhe asperamente:
- Esperei meia hora; mas compreendi logo que estaria entretido com a brasileira...
Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel cor de vinho, escurecida ainda por dois antigos painéis de paisagem tristonha, a mesa oval, cercada de cadeiras de carvalho lavrado, ressaltava alva e fresca, com um esplêndido cesto de rosas entre duas serpentinas douradas. Carlos ficou à direita da condessa, tendo ao lado D. Maria da Cunha, que nesse dia parecia um pouco mais velha, e sorria com um ar cansado.
- Que tem feito todo este tempo, que ninguém o tem visto? Perguntou-lhe ela, desdobrando o guardanapo.
- Por esse mundo, minha senhora, vagamente...
Defronte de Carlos, o Sr. Sousa Neto, que tinha três enormes corais no peitilho da camisa, estava já observando, enquanto remexia a sopa, que a senhora condessa, na sua viagem ao Porto, devia ter encontrado nas ruas e nos edifícios grandes mudanças... A condessa, infelizmente, mal tinha saído durante o tempo que estivera no Porto. O conde, esse, é que admirara os progressos da cidade. E especificou-os: elogiou a vista do Palácio de Cristal; lembrou o fecundo antagonismo que existe entre Lisboa e Porto; mais uma vez o comparou ao dualismo da Áustria e da Hungria. E através destas coisas graves, lançadas de alto, com superioridade e com peso, a baronesa e a senhora de escarlate, aos dois lados dele, falavam do convento das Selesias.
Carlos, no entanto, comendo em silêncio a sua sopa, ruminava as palavras da condessa. Também ela conhecia já a sua intimidade com a «brasileira». Era evidente pois que já andava ali, difamante e torpe, a tagarelice do Dâmaso. E quando o criado lhe ofereceu Sauterne, estava decidido a bater no Dâmaso.
De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia, pachorrenta e cantada:
- O Sr. Maia é que deve saber... O Sr. Maia já lá esteve.
Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora de escarlate que lhe falava, sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buço forte de quarentona pálida. Ninguém lha apresentara, ele não sabia quem era. Sorriu também, perguntou:
- Onde, minha senhora?
- Na Rússia.
- Na Rússia?... Não, minha senhora, nunca estive na Rússia.
Ela pareceu um pouco desapontada.
- Ah, é que me tinham dito... Não sei já quem me disse, mas era pessoa que sabia...
O conde ao fundo explicava-lhe amavelmente que o amigo Maia estivera apenas na Holanda.
- País de grande prosperidade, a Holanda!... Em nada inferior ao nosso... Já conheci mesmo um holandês que era excessivamente instruído...
A condessa baixara os olhos, partindo vagamente um bocadinho de pão, mais séria de repente, mais seca, como se a voz de Carlos, erguendo-se tão tranquila ao seu lado, tivesse avivado os seus despeitos. Ele, então, depois de provar devagar o seu Sauterne, voltou-se para ela, muito naturalmente e risonho:
- Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo ideia de ir à Rússia. Há assim uma infinidade de coisas que se dizem e que não são exactas... E se se faz uma alusão irónica a elas, ninguém compreende a alusão nem a ironia...
A condessa não respondeu logo, dando com o olhar uma ordem muda ao escudeiro. Depois, com um sorriso pálido:
- No fundo de tudo que se diz há sempre um facto, ou um bocado de facto que é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim basta-me...
- A senhora condessa tem então uma credulidade infantil. Estou vendo que acredita que era uma vez uma filha dum rei que tinha uma estrela na testa...
Mas o conde interpelava-o, o conde queria a opinião do seu amigo Maia. Tratava-se do livro de um inglês, o major Brat, que atravessara a África, e dizia coisas perfidamente desagradáveis para Portugal. O conde via ali só inveja - a inveja que nos têm todas as nações por causa da importância das nossas colónias, e da nossa vasta influência na África...
- Está claro, dizia o conde, que não temos nem os milhões, nem a marinha dos ingleses. Mas temos grandes glorias; o infante D. Henrique é de primeira ordem; e a tomada de Ormuz é um primor... E eu que conheço alguma coisa de sistemas coloniais, posso afirmar que não há hoje colónias nem mais susceptíveis de riqueza, nem mais crentes no progresso, nem mais liberais que as nossas! Não lhe parece, Maia?
- Sim, talvez, é possível... Há muita verdade nisso...
Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o monóculo no olho e sorrindo para a baronesa, pronunciou-se alegremente contra todas essas explorações da África, e essas longas missões geográficas... Porque não se deixaria o preto sossegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia à ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrario, davam ao Universo uma deliciosa quantidade de pitoresco! Com a mania francesa e burguesa de reduzir todas as regiões e todas as raças ao mesmo tipo de civilização, o mundo ia tornar-se numa monotonia abominável. Dentro em breve um touriste faria enormes sacrifícios, despesas sem fim, para ir a Tumbuctu - para quê? Para encontrar lá pretos de chapéu alto, a ler o Jornal dos Debates!
O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, saindo do seu vago abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:
- Este Ega! Este Ega! Que graça! Que chic!
Então Sousa Neto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega esta pergunta grave:
V. Exc.ª pois é em favor da escravatura?
Ega declarou muito decididamente ao Sr. Sousa Neto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido, quem era seriamente temido... Por isso ninguém agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse licito dar vergastadas... Só houvera duas civilizações em que o homem conseguira viver com razoável comodidade: a civilização romana, e a civilização especial dos plantadores da Nova Orleans. Porque? porque numa e noutra existira a escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!...
Durante um momento o Sr. Sousa Neto ficou como desorganizado. Depois passou o guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou o Ega:
- Então V. Exc.ª nessa idade, com a sua inteligência, não acredita no Progresso?
- Eu não senhor.
O conde interveio, afável e risonho:
- O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem razão, tem realmente razão, porque os faz brilhantes...
Estava-se servindo Jambon aux épinards. Durante um momento falou-se de paradoxos. Segundo o conde, quem os fazia também brilhantes e difíceis de sustentar, excessivamente difíceis, era o Barros, o ministro do reino...
- Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Neto.
- Sim, pujante, disse o conde.
Mas ele agora não falava tanto do talento do Barros como parlamentar, como homem de estado. Falava do seu espírito de sociedade, do seu esprit...
- Ainda este inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante! Até foi em casa da Sr.ª D. Maria da Cunha... V. Exc.ª não se lembra, Sr. D. Maria? Esta minha desgraçada memória! Ó Tereza, lembras-te daquele paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?... Enfim, um paradoxo muito difícil de sustentar... Esta minha memória!... Pois não te lembras, Tereza?
A condessa não se lembrava. E enquanto o conde ficava remexendo ansiosamente, com a mão na testa, as suas recordações, - a senhora de escarlate voltou a falar de pretos, e de escudeiros pretos, e duma cozinheira preta que tivera uma tia dela, a tia Vilar... Depois queixou-se amargamente dos criados modernos: desde que lhe morrera a Joana, que estava em casa havia quinze anos, não sabia que fazer, andava como tonta, tinha só desgostos. Em seis meses já vira quatro caras novas. E umas desleixadas, umas pretenciosas, uma imoralidade!... Quasi lhe fugiu um suspiro do peito, e trincando desconsoladamente uma migalhinha de pão:
- Ó baronesa, ainda tens a Vicenta?
- Pois então não havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta... A Sr.ª D. Vicenta, se faz favor.
A outra contemplou-a um instante, com inveja daquela felicidade.
- E é a Vicenta que te penteia?
Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas sempre caturra. Agora andava com a mania de aprender francês. Já sabia verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizer j'aime, tu aimes...
- E a senhora baronesa, acudiu o Ega, começou por lhe mandar ensinar os verbos mais necessários.
Está claro, dizia a baronesa, que aquele era o mais necessário. Mas na idade da Vicenta já de pouco lhe poderia servir!
- Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cair o talher. Agora me lembro!
Tinha-se lembrado enfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros que os cães, quanto mais ensinados... Pois, não, não era isto!
- Esta minha desgraçada memória!... E era sobre cães. Uma coisa brilhante, filosófica até!
E, por se falar de cães, a baronesa lembrou-se do Tomy, o galgo da condessa; perguntou por Tomy. Já o não via há que tempos, esse bravo Tomy! A condessa nem queria que se falasse no Tomy, coitado! Tinham-lhe nascido umas coisas nos ouvidos, um horror... Mandara-o para o Instituto, lá morrera.
- Está deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se para Carlos.
- Deliciosa.
E a baronesa, do lado, declarou também a galantine uma perfeição. Com um olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e apressou-se a responder ao Sr. Sousa Neto, que, a propósito de cães, lhe estava falando da Sociedade protectora dos animais. O Sr. Sousa Neto aprovava-a, considerava-a como um progresso... E, segundo ele, não seria mesmo de mais que o governo lhe desse um subsidio.
- Que eu creio que ela vai prosperando... E merece-o, acredite a senhora condessa que o merece... Estudei essa questão, e de todas as sociedades que ultimamente se têm fundado entre nós, à imitação do que se faz lá fora, como a Sociedade de Geografia e outras, a Protectora dos animais parece-me decerto uma das mais úteis.
Voltou-se para o lado, para o Ega:
- V. Exc.ª pertence?
- Á Sociedade protectora dos animais?... Não senhor, pertenço a outra, à de Geografia. Sou dos protegidos.
A baronesa teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se extremamente sério: pertencia à Sociedade de Geografia, considerava-a um pilar do Estado, acreditava na sua missão civilizadora, detestava aquelas irreverências. Mas a condessa e Carlos tinham rido também: - e de repente a frialdade que até aí os conservara ao lado um do outro reservados, numa cerimónia afectada, pareceu dissipar-se ao calor desse riso trocado, no brilho dos dois olhares encontrando-se irresistivelmente. Servira-se o Champagne, ela tinha uma corzinha no rosto. O seu pé, sem ela saber como, roçou pelo pé de Carlos; sorriram ainda outra vez; - e, como no resto da mesa se conversava sobre uns concertos clássicos que ia haver no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma repreensão amável:
- Que tolice foi essa da brasileira?... Quem lhe disse isso?
Ela confessou-lhe logo que fora o Dâmaso... O Dâmaso viera contar-lhe o entusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãs inteiras que lá passava, todos os dias, à mesma hora... Enfim o Dâmaso fizera-lhe claramente entrever uma liaison.
Carlos encolheu os ombros. Como podia ela acreditar no Dâmaso? Devia conhecer-lhe bem a tagarelice, a imbecilidade...
- É perfeitamente verdade que eu vou a casa dessa senhora, que nem brasileira é, que é tão portuguesa como eu; mas é porque ela tem a governante muito doente com uma bronquite, e eu sou o médico da casa. Foi até o Dâmaso, ele próprio, que lá me levou como médico!
No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do doce alívio que se fazia no seu coração.
- Mas o Dâmaso disse-me que era tão linda!...
Sim, era muito linda. E então? Um médico, por fidelidade ás suas afeições, e para as não inquietar, não podia realmente, antes de penetrar na casa duma doente, exigir-lhe um certificado de hediondez!
- Mas que está ela cá a fazer?...
- Está à espera do marido que foi a negócios ao Brasil, e vem ai... É uma gente muito distincta, e creio que muito rica... Vão-se brevemente embora, de resto, e eu pouco sei deles. As minhas visitas são de médico; tenho apenas conversado com ela sobre Paris, sobre Londres, sobre as suas impressões de Portugal...
A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo belo olhar com que ele lhas murmurava: e o seu pé apertava o de Carlos numa reconciliação apaixonada, com a força que desejaria pôr num abraço - se ali lho pudesse dar.
A senhora de escarlate, no entanto, recomeçara a falar da Rússia. O que a assustava é que o país era tão caro, corriam-se tantos perigos por causa da dinamite, e uma constituição fraca devia sofrer muito com a neve nas ruas. E foi então que Carlos percebeu que ela era a esposa de Sousa Neto, e que se tratava dum filho deles, filho único, despachado segundo secretario para a legação de S. Petersburgo.
- O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz do leque. É um horror de estupidez... Nem francês sabe! De resto não é pior que os outros... Que a quantidade de monos, de sensaborões e de tolos que nos representam lá fora até faz chorar... Pois o menino não acha? Isto é um país desgraçado.
- Pior, minha cara senhora, muito pior. Isto é um país cursi.
Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu sorriso cansado; a senhora de escarlate calara-se, já preparada, tendo mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhoras ergueram-se, no momento em que o Ega, ainda acerca da Rússia, acabava de contar uma história ouvida a um polaco, e em que se provava que o Czar era um estúpido...
- Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o conde, já de pé.
Os homens, sós, acenderam os seus charutos; o escudeiro serviu o café. Então o Sr. Sousa Neto, com a sua chávena na mão, aproximou-se de Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera em fazer o seu conhecimento...
- Eu tive também em tempos o prazer de conhecer o pai de V. Exc.ª... Pedro, creio que era justamente o Sr. Pedro da Maia. Começava eu então a minha carreira publica... E o avô de V. Exc.ª, bom?
- Muito agradecido a V. Exc.ª
Pessoa muito respeitável... O pai de V. Exc.ª era... Enfim, era o que se chama «um elegante». Tive também o prazer de conhecer a mãe de V. Exc.ª...
E de repente calou-se, embaraçado, levando a chávena aos lábios. Depois, lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a propósito da secretária da legação da Rússia, com quem ele encontrara nessa manhã o conde conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garços... E o conde, que a admirava também, gabava-lhe sobretudo o espírito, a instrução. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser bela, e depois ser estúpida... O conde afirmou logo com exuberância que não gostava também de literatas: sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na biblioteca...
- No entanto é agradável que uma senhora possa conversar sobre coisas amenas, sobre o artigo duma Revista, sobre... Por exemplo, quando se publica um livro... Enfim, não direi quando se trata dum Guizot, ou dum Jules Simon... Mas, por exemplo, quando se trata dum Feuilet, dum... Enfim, uma senhora deve ser prendada. Não lhe parece, Neto?
Neto, grave, murmurou:
- Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter algumas prendas...
Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas literárias, sabendo dizer coisas sobre o Sr. Tiers, ou sobre o Sr. Zola, é um monstro, um fenómeno que cumpria recolher a uma companhia de cavalinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.
- V. Exc.ª decerto, Sr. Sousa Neto, sabe o que diz Proudhon?
Não me recordo textualmente, mas...
Em todo o caso V. Exc.ª conhece perfeitamente o seu Proudhon?
O outro, muito secamente, não gostando decerto daquele interrogatório, murmurou que Proudhon era um autor de muita nomeada.
Mas o Ega insistia, com uma impertinência pérfida:
- V. Exc.ª leu evidentemente, como nós todos, as grandes paginas de Proudhon sobre o amor?
O Sr. Neto, já vermelho, pousou a chávena sobre a mesa. E quis ser sarcástico, esmagar aquele moço, tão literário, tão audaz.
- Não sabia, disse ele com um sorriso infinitamente superior, que esse filósofo tivesse escrito sobre assuntos escabrosos!
Ega atirou os braços ao ar, consternado:
- Oh Sr. Sousa Neto! Então V. Exc.ª, um chefe de família, acha o amor um assunto escabroso?!
O Sr. Neto encordoou. E muito direito, muito digno, falando do alto da sua considerável posição burocrática:
- É meu costume, Sr. Ega, não entrar nunca em discussões, e acatar rodas as opiniões alheias, mesmo quando elas sejam absurdas...
E quasi voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Carlos, desejando saber, numa voz ainda um pouco alterada, se ele agora se fixava algum tempo mais em Portugal. Então, durante um momento, acabando os charutos, os dois falaram de viagens. O Sr. Neto lamentava que os seus muitos deveres não lhe permitissem percorrer a Europa. Em pequeno fora esse o seu ideal; mas agora, com tantas ocupações publicas, via-se forçado a não deixar a carteira. E ali estava, sem ter visto sequer Badajoz...
- E V. Exc.ª de que gostou mais, de Paris ou de Londres?
Carlos realmente não sabia, nem se podia comparar... Duas cidades tão diferentes, duas civilizações tão originais...
- Em Londres, observou o conselheiro, tudo carvão...
Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carvão, sobretudo nos fogões, quando havia frio...
O Sr. Sonsa Neto murmurou:
- E o frio ali deve ser sempre considerável... Clima tão ao norte!...
Esteve um momento mamando o charuto, de pálpebra cerrada. Depois, fez esta observação sagaz e profunda:
- Povo pratico, povo essencialmente pratico.
- Sim, bastante pratico, disse vagamente Carlos, dando um passo para a sala, onde se sentiam as risadas cantantes da baronesa.
- E diga-me outra coisa, prosseguiu o Sr. Sousa Neto, com interesse, cheio de curiosidade inteligente. Encontra-se por lá, em Inglaterra, desta literatura amena, como entre nós, folhetinistas, poetas de pulso?...
Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu, com descaro:
- Não, não há disso.
- Logo vi, murmurou Sousa Neto. Tudo gente de negócio.
E penetraram na sala. Era o Ega que assim fazia rir a baronesa, sentado defronte dela, falando outra vez de Celorico, contando-lhe uma soirée de Celorico, com detalhes picarescos sobre as autoridades, e sobre um abade que tinha morto um homem e cantava fados sentimentais ao piano. A senhora de escarlate, no sofá ao lado, com os braços caídos no regaço, pasmava para aquela veia do Ega como para as destrezas dum palhaço. D. Maria, junto da mesa, folheava com o seu ar cansado uma Ilustração; e vendo que Carlos ao entrar procurara com o olhar a condessa, chamou-o, disse-lhe baixo que ela fora dentro ver Charlie, o pequeno...
- É verdade, perguntou Carlos, sentando-se ao lado dela, que é feito dele, desse lindo Charlie?
- Diz que tem estado hoje constipado, e um pouco murcho...
- A Sr.ª D. Maria também me parece hoje um pouco murcha.
- É do tempo. Eu já estou na idade em que o bom humor ou o aborrecimento vêm só das influências do tempo... Na sua idade vem de outras coisas. E a propósito de outras coisas: então a Cohen também chegou?
Chegou, disse Carlos, mas não também. O também. O também implica combinação... E a Cohen e o Ega chegaram realmente ambos por acaso... De resto isso é história antiga, é como os amores de Helena e de Páris.
Nesse instante a condessa voltava de dentro, um pouco afogueada, e trazendo aberto um grande leque negro. Sem se sentar, falando sobretudo para a mulher do Sr. Sousa Neto, queixou-se logo de não ter achado Charlie bem... Estava tão quente, tão inquieto... Tinha quasi medo que fosse sarampo.- E voltando-se vivamente para Carlos, com um sorriso:
- Eu estou com vergonha... Mas se o Sr. Carlos da Maia quisesse ter o incomodo de o vir ver um instante... É odioso, realmente, pedir-lhe logo depois de jantar para examinar um doente...
- Oh senhora condessa! exclamou ele, já de pé.
Seguiu-a. Numa saleta, ao lado, o conde e o Sr. Sousa Neto, enterrados num sofá, conversavam fumando.
- Levo o Sr. Carlos da Mala para ver o pequeno...
O conde erguera-se um pouco do sofá, sem compreender bem. Já ela passara. Carlos seguiu em silêncio a sua longa cauda de seda preta através do bilhar, deserto, com o gás aceso, ornado de quatro retratos de damas, da família dos Gouvarinhos, empoadas e sorumbáticas. Ao lado, por traz de um pesado reposteiro de fazenda verde, era um gabinete, com uma velha poltrona, alguns livros numa estante envidraçada, e uma escrivaninha onde pousava um candeeiro sob o abat-jour de renda cor de rosa. E ai, bruscamente, ela parou, atirou os braços ao pescoço de Carlos, os seus lábios prenderam-se aos dele num beijo sôfrego, penetrante, completo, findando num soluço de desmaio... Ele sentia aquele lindo corpo estremecer, escorregar-lhe entre os braços, sobre os joelhos sem força.
- Amanhã, em casa da titi, ás onze, murmurou ela quando pôde falar.
- Pois sim.
Desprendida dele, a condessa ficou um momento com as mãos sobre os olhos, deixando desvanecer aquela lânguida vertigem, que a fizera cor de cera. Depois, cansada e sorrindo:
- Que doida que eu sou... Vamos ver Charlie.
O quarto do pequeno era ao fundo do corredor. E ai, numa caminha de ferro, junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno, fresco, com um bracinho caído para o lado, os seus lindos caracóis loiros espalhados no travesseiro como uma auréola de anjo. Carlos tocou-lhe apenas no pulso; e a criada escocesa, que trouxera uma luz de sobre a cómoda, disse, sorrindo tranquilamente:
- O menino nestes últimos dias tem andado muitíssimo bem...
Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa, já com a mão no reposteiro, estendeu ainda a Carlos os seus lábios insaciáveis. Ele colheu um rápido beijo. E, ao passar na antecâmara, onde Sousa Neto e o conde continuavam enfronhados numa conversa grave, ela disse ao marido:
- O pequeno está a dormir... O Sr. Carlos da Maia achou-o bem.
O conde de Gouvarinho bateu no ombro de Carlos, carinhosamente. E durante um momento a condessa ficou ali conversando, de pé, a deixar-se serenar, pouco a pouco, naquela penumbra favorável, antes de afrontar a luz forte da sala. Depois, por se falar em higiene, convidou o Sr. Sousa Neto para uma partida de bilhar; mas o Sr. Neto, desde Coimbra, desde a Universidade, não pegara num taco. E ia-se chamar o Ega quando apareceu Teles da Gama, que chegava do Price. Logo atrás dele entrou o conde de Steinbroken. Então o resto da noite passou-se no salão, em redor do piano. O ministro cantou melodias da Finlândia. Teles da Gama tocou fados.
Carlos e Ega foram os derradeiros a sair, depois de um brandy and soda, de que a condessa partilhou, como inglesa forte. E em baixo, no pátio, acabando de abotoar o paletó, Carlos pôde enfim soltar a pergunta que lhe faiscara nos lábios toda a noite:
- Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quis saber se em Inglaterra havia também literatura?
Ega olhou-o com espanto:
- Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?
- Não sei... Há tanta gente capaz...
E o Ega radiante:
- Oficial superior duma grande repartição do Estado!
- De qual?
- Ora de qual! De qual há de ser?... Da Instrucção publica!
Na tarde seguinte, ás cinco horas, Carlos, que se demorara de mais em casa da titi com a condessa, retido pelos seus beijos intermináveis, fez voar o coupé até à rua de S. Francisco, olhando a cada momento o relógio, num receio de que Maria Eduarda tivesse saído por aquele lindo dia de verão, luminoso e sem calor. Com efeito à porta dela estava a carruagem da Companhia; e Carlos galgou as escadas, desesperado com a condessa, sobretudo consigo mesmo, tão fraco, tão passivo, que assim se deixara retomar por aqueles braços exigentes, cada vez mais pesados, e já incapazes de o comover...
- A senhora chegou agora mesmo, disse-lhe o Domingos, que voltara da terra havia três dias, e ainda não cessara de lhe sorrir.
Sentada no sofá, de chapéu, tirando as uvas, ela acolheu-o com uma doce cor no rosto, e uma carinhosa repreensão:
- Estive à espera mais de meia hora antes de sair... É uma ingratidão! Imaginei que nos tinha abandonado!
- Porquê? Está pior, miss Sarah?
Ela olhou-o, risonhamente escandalizada. Ora, miss Sarah! Miss Sarah ia seguindo perfeitamente na sua convalescença... Mas agora já não eram as visitas de médico que se esperavam, eram as de amigo; e essa tinha-lhe faltado.
Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, que folheava junto da mesa um livro novo destampas; e a ternura, a gratidão infinita do seu coração, que não ousava mostrar à mãe, pô-la toda na longa carícia em que envolveu a filha.
- São histórias que a mamã agora comprou, dizia Rosa, séria e presa ao seu livro. Hei de tas contar depois... São histórias de bichos.
Maria Eduarda erguera-se, desapertando lentamente as fitas do chapéu.
- Quer tomar uma chávena de chá conosco, Sr. Carlos da Maia? Eu vinha morrendo por uma chávena de chá... Que lindo dia, não é verdade? Rosa, fica tu a contar o nosso passeio enquanto eu vou tirar o chapéu...
Carlos, só com Rosa, sentou-se junto dela, desviando-a do livro, tomando-lhe ambas as mãos.
- Fomos ao Passeio da Estrela, dizia a pequena. Mas a mamã não se queria demorar, porque tu podias ter vindo!
Carlos beijou, uma depois da outra, as duas mãozinhas de Rosa.
- E então que fizeste no Passeio? perguntou ele, depois dum leve suspiro de felicidade que lhe fugira do peito.
- Andei a correr, havia uns patinhos novos...
- Bonitos?...
A pequena encolheu os ombros:
- Chinfrinzitos.
Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa tão feia?
Rosa sorriu. Fora o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras coisas assim, engraçadas... Dizia que a Melanie era uma gaja... O Domingos tinha muita graça.
Então Carlos advertiu-a que uma menina bonita, com tão bonitos vestidos, não devia dizer aquelas palavras... Assim falava a gente rôta.
- O Domingos não anda roto, disse Rosa muito séria.
E subitamente, com outra ideia, bateu as palmas, pulou-lhe entre os joelhos, radiante:
- E trouxe-me uns grilos da Praça! O Domingos trouxe-me uns grilos... Se tu soubesses! Niniche tem medo dos grilos! Parece incrível, hein? Eu nunca vi ninguém mais medrosa...
Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um ar grave:
- É a mamã que lhe dá tanto mimo. É uma pena!
Maria Eduarda entrava, agitando ainda de leve o ondeado do cabelo: e, ouvindo assim falar de mimo, quis saber quem é que ela estragava com mimo... Niniche? Pobre Niniche, coitada, ainda essa manhã fora castigada!
Então Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as mãos:
- Sabes como a mamã a castiga? exclamava ela, puxando a manga de Carlos. Sabes?... Faz-lhe voz grossa... Diz-lhe em inglês: Bad dog! dreadful dog!
Era encantadora assim, imitando a voz severa da mamã, com o dedinho erguido, a ameaçar Niniche. A pobre Niniche, imaginando com efeito que a estavam a repreender, arrastou-se, vexada, para debaixo do sofá. E foi necessário que Rosa a tranquilizasse, de joelhos sobre a pele de tigre, jurando-lhe, por entre abraços, que ela nem era mau cão, nem feio cão; fora só para contar como fazia a mamã...
- Vai-lhe dar água, que ela deve estar com sede, disse então Maria Eduarda, indo sentar-se na sua cadeira escarlate. E dize ao Domingos que nos traga o chá.
Rosa e Niniche partiram correndo. Carlos veio ocupar, junto da janela, a costumada poltrona de reps. Mas pela primeira vez, desde a sua intimidade, houve entre eles um silêncio difícil. Depois ela queixou-se de calor, desenrolando distraidamente o bordado; e Carlos permanecia mudo, como se para ele, nesse dia, apenas houvesse encanto, apenas houvesse significação numa certa palavra de que os seus lábios estavam cheios e que não ousavam murmurar, que quasi receava que fosse adivinhada apesar dela sufocar o seu coração.
- Parece que nunca se acaba, esse bordado! disse ele por fim, impaciente de a ver, tão serena, a ocupar-se das suas lãs.
Com a talagarça desdobrada sobre os joelhos, ela respondeu, sem erguer os olhos:
- E para que se há de acabar? O grande prazer é anda-lo a fazer, pois não acha? Uma malha hoje, outra malha amanhã, torna-se assim uma companhia... Para que se há de querer chegar logo ao fim das coisas?
Uma sombra passou no rosto de Carlos. Nestas palavras, ditas de leve acerca do bordado, ele sentia uma desanimadora alusão ao seu amor, - esse amor que lhe fora enchendo o coração à maneira que a lã cobria aquela talagarça, e que era obra simultânea das mesmas brancas mãos. Queria ela pois conserva-lo ali, arrastado como o bordado, sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado também no cesto da costura, para ser o desafogo da sua solidão?
Disse-lhe então, comovido:
- Não é assim. Há coisas que só existem quando se completam, e que só então dão a felicidade que se procurava nelas.
- É muito complicado isso, murmurou ela, corando. É muito subtil...
- Quer que lho diga mais claramente?
Nesse instante Domingos, erguendo o reposteiro, anunciou que estava ali o Sr. Dâmaso...
Maria Eduarda teve um movimento brusco de impaciência:
- Diga que não recebo!
Fora, no silêncio, sentiram bater a porta. E Carlos ficou inquieto, lembrando-se que o Dâmaso devia ter visto em baixo, passeando na rua, o seu coupé. Santo Deus! O que ele iria tagarelar agora, com os seus pequeninos rancores, assim humilhado! Quasi lhe pareceu nesse instante a existência do Dâmaso incompatível com a tranquilidade do seu amor.
- Aí está outro inconveniente desta casa, dizia no entanto Maria Eduarda. Aqui ao lado desse Grémio, a dois passos do Chiado, é demasiadamente acessível aos importunos. Tenho agora de repelir quasi todos os dias este assalto à minha porta! É intolerável.
E com uma súbita ideia, atirando o bordado para o açafate, cruzando as mãos sobre os joelhos:
- Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar... Não me seria possível arranjar por aí uma casinhola, um cotage, onde eu fosse passar os meses de verão?... Era tão bom para a pequena! Mas não conheço ninguém, não sei a quem me hei de dirigir...
Carlos lembrou-se logo da bonita casa do Craft, nos Olivais - como já noutra ocasião em que ela mostrara desejos de ir para o campo. Justamente, nesses últimos tempos, Craft voltara a falar, e mais decidido, no antigo plano de vender a quinta, e desfazer-se das suas colecções. Que deliciosa vivenda para ela, artística e campestre, condizendo tão bem com os seus gostos! Uma tentação atravessou-o, irresistivel.
- Eu sei com efeito duma casa... E tão bem situada, que lhe convinha tanto!...
- Que se aluga?
Carlos não hesitou:
- Sim, é possível arranjar-se...
- Isso era um encanto!
Ela tinha dito - «era um encanto». E isto decidiu-o logo, parecendo-lhe desamorável e mesquinho o ter-lhe sugerido uma esperança, e não lha realizar com fervor.
O Domingos entrara com o tabuleiro do chá. E enquanto o colocava sobre uma pequena mesa, defronte de Maria Eduarda, ao pé da janela, Carlos, erguendo-se, dando alguns passos pela sala, pensava em começar imediatamente negociações com o Craft, comprar-lhe as colecções, alugar-lhe a casa por um ano, e oferece-la a Maria Eduarda para os meses de verão. E não considerava, nesse instante, nem as dificuldades, nem o dinheiro. Via só a alegria dela passeando com a pequena, entre as belas árvores do jardim. E como Maria Eduarda deveria ser mais grandemente formosa no meio desses móveis da Renascença, severos e nobres!
- Muito açúcar? perguntou ela.
- Não... Perfeitamente, basta.
Viera sentar-se na sua velha poltrona; e, recebendo a chávena de porcelana ordinária com um filetesinho azul, recordava o magnífico serviço que tinha o Craft, de velho Wedgewood, oiro e cor de fogo. Pobre senhora! tão delicada, e ali enterrada entre aqueles reps, maculando a graça das suas mãos nas coisas reles da mãe Cruges!
- E onde é essa casa? perguntou Maria Eduarda.
- Nos Olivais, muito perto daqui, vai-se lá numa hora de carruagem...
Explicou-lhe detalhadamcnte o sítio,- acrescentando, com os olhos nela, e com um sorriso inquieto:
- Estou aqui a preparar lenha para me queimar!... Porque se for para lá instalar-se, e depois vier o calor, quem é que a torna a ver?
Ela pareceu surpreendida:
- Mas que lhe custa, a si, que tem cavalos, que tem carruagens, que não tem quasi nada que fazer?...
Assim ela achava natural que ele continuasse nos Olivais as suas visitas de Lisboa! E pareceu-lhe logo impossível renunciar ao encanto desta intimidade, tão largamente oferecida, e decerto mais doce na solidão de aldeia. Quando acabou a sua chávena de chá - era como se a casa, os móveis, as árvores fossem já seus, fossem já dela. E teve ali um momento delicioso, descrevendo-lhe a quietação da quinta, a entrada por uma rua de acácias, e a beleza da sala de jantar com duas janelas abrindo sobre o rio...
Ela escutava-o, encantada:
- Oh! isso era o meu sonho! Vou ficar agora toda alterada, cheia de esperanças... Quando poderei ter uma resposta?
Carlos olhou o relógio. Era já tarde para ir aos Olivais. Mas logo na manhã seguinte cedo, ia falar com o dono da casa, seu amigo...
- Quanto incomodo por minha causa! disse ela. Realmente! como lhe hei de eu agradecer?...
Calou-se; mas os seus belos olhos ficaram um instante pousados nos de Carlos, como esquecidos, e deixando fugir irresistivelmente um pouco do segredo que ela retinha no seu coração.
Ele murmurou:
- Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse outra vez assim.
Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda.
- Não diga isso...
- E que necessidade há que eu lho diga? Pois não sabe perfeitamente que a adoro, que a adoro, que a adoro!
Ela ergueu-se bruscamente, ele também: - e assim ficaram, mudos, cheios de ansiedade, trespassando-se com os olhos, como se se tivesse feito uma grande alteração no Universo, e eles esperassem, suspensos, o desfecho supremo dos seus destinos... E foi ela que falou, a custo, quasi desfalecida, estendendo para ele, como se o quisesse afastar, as mãos inquietas e tremulas:
- Escute! Sabe bem o que eu sinto por si, mas escute... Antes que seja tarde há uma coisa que lhe quero dizer...
Carlos via-a assim tremer, via-a toda pálida... E nem a escutara, nem a compreendera. Sentia apenas, num deslumbramento, que o amor comprimido até aí no seu coração irrompera por fim, triunfante, e embatendo no coração dela, através do aparente mármore do seu peito, fizera de lá ressaltar uma chama igual... Só via que ela tremia, só via que ela o amava... E, com a gravidade forte dum acto de posse, tomou-lhe lentamente as mãos, que ela lhe abandonou, submissa de repente, já sem força, e vencida. E beijava-lhas ora uma ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:
- Meu amor! meu amor! meu amor!
Maria Eduarda caíra pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as mãos, erguendo para ele os olhos cheios de paixão, enevoados de lágrimas, balbuciou ainda, debilmente, numa derradeira suplicação:
- Há uma coisa que eu lhe queria dizer!...
Carlos estava já ajoelhado aos seus pés.
- Eu sei o que é! exclamou, ardentemente, junto do rosto dela, sem a deixar falar mais, certo de que adivinhara o seu pensamento. Escusa de dizer, sei perfeitamente. É o que eu tenho pensado tantas vezes! É que um amor como o nosso não pode viver nas condições em que vivem outros amores vulgares... É que desde que eu lhe digo que a amo, é como se lhe pedisse para ser minha esposa diante de Deus...
Ela recuava o rosto, olhando-o angustiosamente, e como se não compreendesse. E Carlos continuava mais baixo, com as mãos dela presas, penetrando-a toda da emoção que o fazia tremer:
- Sempre que pensava em si, era já com esta esperança duma existência toda nossa, longe daqui, longe de todos, tendo quebrado todos os laços presentes, pondo a nossa paixão acima de todas as ficções humanas, indo ser felizes para algum canto do mundo, solitariamente e para sempre... Levamos Rosa, está claro, sei que não se pode separar dela... E assim viveríamos sós, todos três, num encanto!
- Meu Deus! Fugirmos? murmurou ela, assombrada.
Carlos erguera-se.
- E que podemos fazer? Que outra coisa podemos nós fazer, digna do nosso amor?
Maria não respondeu, imóvel, a face erguida para ele, branca de cera. E pouco a pouco uma ideia parecia surgir nela, inesperada e perturbadora, revolvendo todo o seu ser. Os seus olhos alargavam-se, ansiosos e refulgentes.
Carlos ia falar-lhe... Um leve rumor de passos na esteira da sala deteve-o. Era o Domingos que vinha recolher a bandeja do chá: e durante um momento, quasi interminável, houve entre aqueles dois seres, sacudidos por um ardente vendaval de paixão, a caseira passageira dum criado arrumando chávenas vazias. Maria Eduarda, bruscamente, refugiou-se detrás das bambinelas de cretone com o rosto contra a vidraça. Carlos foi sentar-se no sofá, a folhear ao acaso uma Ilustração, que lhe tremia nas mãos. E não pensava em nada, nem sabia onde estava... Ainda na véspera, havia ainda instantes, conversando com ela, dizia cerimoniosamente «minha cara senhora»: depois houvera um olhar; e agora deviam fugir ambos, e ela tornara-se o cuidado supremo da sua vida, e a esposa secreta do seu coração.
- V. Exc.ª quer mais alguma coisa? perguntou Domingos.
Maria Eduarda respondeu sem se voltar:
- Não.
O Domingos saiu, a porta ficou cerrada. Ela então atravessou a sala, veio para Carlos, que a esperava no sofá, com os braços estendidos. E era como se obedecesse só ao impulso da sua ternura, acalmadas já todas as incertezas. Mas hesitou de novo diante daquela paixão, tão pronta a apoderar-se de todo o seu ser, e mumurou, quasi triste:
- Mas conhece-me tão pouco!... Conhece-me tão pouco, para irmos assim ambos, quebrando por tudo, criar um destino que é reprovável...
Carlos tomou-lhe as mãos, fazendo-a sentar ao seu lado, brandamente:
- O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer mais nada na vida!
Um instante Maria Eduarda ficou pensativa, como recolhida no fundo do seu coração, escutando-lhe as derradeiras agitações. Depois soltou um longo suspiro.
- Pois seja assim! Seja assim... Havia uma coisa que eu lhe queria dizer, mas não importa... É melhor assim!...
E que outra coisa podiam fazer? perguntava Carlos radiante. Era a única solução digna, séria... E nada os podia embaraçar; amavam-se, confiavam absolutamente um no outro; ele era rico, o mundo era largo...
E ela repetia, mais firme agora, já decidida, e como se aquela resolução a cada momento se cravasse mais fundo na sua alma, penetrando-a toda e para sempre:
- Pois seja assim! É melhor assim!
Um momento ficaram calados, olhando-se arrebatadamente.
- Dize-me ao menos que és feliz, murmurou Carlos.
Ela lançou-lhe os braços ao pescoço: e os seus lábios uniram-se num beijo profundo, infinito, quasi imaterial pelo seu êxtase. Depois Maria Eduarda descerrou lentamente as pálpebras, e disse-lhe, muito baixo:
- Adeus, deixa-me só, vai.
Ele tomou o chapéu, e saiu.
No dia seguinte Craft, que havia uma semana não ia ao Ramalhete, passeava na quinta antes de almoço - quando apareceu Carlos. Apertaram as mãos, falavam um instante do Ega, da chegada dos Cohens. Depois, Carlos, fazendo um gesto largo que abrangia a quinta, a casa, todo o horizonte, perguntou rindo:
- Você quer-me vender tudo isto, Craft?
O outro respondeu, sem pestanejar, e com as mãos nas algibeiras:
- A la disposicion de ustêd...
E ali mesmo concluíram a negociação, passeando numa ruazinha de buxo por entre os gerânios em flor.
Craft cedia a Carlos todos os seus móveis antigos e modernos por duas mil e quinhentas libras, pagas em prestações: só reservava algumas raras peças do tempo de Luís XV, que deviam fazer parte dessa nova colecção que planeava, homogénea, e toda do século XVIII. E como Carlos não tinha no Ramalhete lugar para este vasto bric-à-brac, Craft alugava-lhe por um ano a casa dos Olivais, com a quinta.
Depois foram almoçar. Carlos nem por um momento pensou na larga despesa que fazia, só para oferecer uma residência de verão, por dois curtos meses - a quem se contentaria com um simples cotage, entre árvores de quintal. Pelo contrario! quando repercorreu as salas do Craft, já com olhos de dono, achou tudo mesquinho, pensou em obras, em retoques de gosto.
Com que alegria, ao deixar os Olivais, correu à rua de S. Francisco, a anunciar a Maria Eduarda que lhe arranjara enfim definitivamente uma linda casa no campo! Rosa, que da varanda o vira apear-se, veio ao seu encontro ao patamar: ele ergueu-a nos braços, entrou assim na sala, com ela ao colo, em triunfo. E não se conteve; foi à pequena que deu logo «a grande novidade», anunciando-lhe que ia ter duas vacas, e uma cabra, e flores, e árvores para se balouçar...
- Onde é? Dize, onde é? exclamava Rosa, com os lindos olhos resplandecentes, e a facesinha cheia de riso.
- Daqui muito longe... Vai-se numa carruagem... Vêem-se passar os barcos no rio... E entra-se por um grande portão onde há um cão de fila.
Maria Eduarda apareceu, com Niniche ao colo.
- Mamã, mamã! gritou Rosa correndo para ela, dependurando-se-lhe do vestido. Diz que vou ter duas cabrinhas, e um balouço... É verdade? Dize, deixa ver, onde é? Dize... E vamos já para lá?
Maria e Carlos apertaram a mão, com um longo olhar, sem uma palavra. E logo junto da mesa, com Rosa encostada aos seus joelhos, Carlos contou a sua ida aos Olivais... O dono da casa estava pronto a alugar, já, numa semana... E assim se achava ela de repente com uma vivenda pitoresca, mobilada num belo estilo, deliciosamente saudável...
Maria Eduarda parecia surpreendida, quasi desconfiada.
- Há de ser necessário levar roupas de cama, roupas de mesa...
- Mas há tudo! exclamou Carlos alegremente, há quasi tudo! É tal qual como num conto de fadas... As luzes estão acesas, as jarras estão cheias de flores... É só tomar uma carruagem e chegar.
- Somente, é necessário saber o que esse paraíso me vai custar...
Carlos fez-se vermelho. Não previra que se falasse em dinheiro - e que ela quereria decerto pagar a casa que habitasse... Então preferiu confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft, havia quasi um ano, andava desejando desfazer-se das suas colecções, e alugar a quinta: o avô e ele tinham repetidamente pensado em adquirir grande parte dos móveis e das faianças, para acabar de mobilar o Ramalhete, e ornamentar mais Santa Olavia; e ele enfim decidira-se a fazer essa compra desde que entrevira a felicidade de lhe poder oferecer, por alguns meses de verão, uma residência graciosa, e tão confortável...
- Rosa, vai lá para dentro, disse Maria Eduarda, depois de um momento de silêncio... Miss Sarah está à tua espera.
Depois, olhando para Carlos, muito séria:
- De sorte que, se eu não mostrasse desejos de ir para o campo, não tinha feito essa despesa...
- Tinha feito a mesma despesa... Tinha também alugado a casa por seis meses ou por um ano... Onde possuía eu agora de repente um sítio para meter as coisas do Craft? O que não fazia talvez era comprar conjuntamente roupas de cama, roupas de mesa, mobílias dos quartos dos criados, etc...
E acrescentou, rindo:
- Ora se me quiser indemnizar disso podemos debater esse negócio...
Ela baixou os olhos, reflectindo, lentamente.
- Em todo o caso seu avô e os seus amigos devem saber daqui a dias que me vou instalar nessa casa... E devem compreender que a comprou para que eu lá me instalasse...
Carlos procurou o seu olhar que permanecia pensativo, desviado dele. E isto inquietou-o - o vê-la assim retrair-se àquela absoluta comunhão de interesses em que a queria envolver, como esposa do seu coração.
- Não aprova então o que fiz? Seja franca...
- Decerto... Como não hei de eu aprovar tudo quanto faz, tudo quanto vem de si? Mas...
Ele acudiu, apoderando-se das suas mãos, sentindo-se triunfar:
- Não há mas! O avô e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa no campo, inútil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto, se quiser, meteremos nisto tudo o meu procurador... Minha cara amiga, se fosse possível que a nossa afeição se passasse fora do mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas, seria delicioso... Mas não pode ser!... Alguém tem de saber sempre alguma coisa; quando não seja senão o cocheiro que me leva todos os dias a sua casa, quando não seja senão o criado que me abre todos os dias a sua porta... Há sempre alguém que surpreende o encontro de dois olhares; há sempre alguém que adivinha de onde se vem a certas horas... Os deuses antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que os tornava invisíveis. Nós não somos deuses, felizmente...
Ela sorriu.
- Quantas palavras para converter uma convertida!
E tudo ficou harmonizado num grande beijo.
Afonso da Maia aprovou plenamente a compra das colecções do Craft. «É um valor, disse ele ao Vilaça, e acabamos de encher com boa arte Santa-Olavia e o Ramalhete.»
Mas o Ega indignou-se, chegou a falar em «desvario», despeitado por essa transacção secreta para que não fora consultado. O que o irritava sobretudo era ver, nesta aquisição inesperada de uma casa de campo, outro sintoma do grave e do fundo segredo que pressentia na vida de Carlos: e havia já duas semanas que ele habitava o Ramalhete e Carlos ainda não lhe fizera uma confidência!... Desde a sua ligação de rapazes em Coimbra, nos Paços de Cela, fora ele o confessor secular de Carlos: mesmo em viagem, Carlos não tinha uma aventura banal de hotel, de que não mandasse ao Ega «um relatório». O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao principio tentara, frouxamente, guardar um mistério delicado, já o conhecia todo, já lera as cartas da Gouvarinho, já passara pela casa da titi...
Mas do outro segredo não sabia nada - e considerava-se ultrajado. Via rodas as manhãs Carlos partir para a rua de S. Francisco, levando flores; via-o chegar de lá, como ele dizia, «besuntado de êxtase»; via-lhe os silêncios repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao mesmo tempo sério e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente amado... E não sabia nada.
Justamente alguns dias depois, estando ambos sós, a falar de planos de verão, Carlos aludiu aos Olivais, com entusiasmo, relembrando algumas das preciosidades do Craft, o doce sossego da casa, a clara vista do Tejo... Aquilo realmente fora obter por uma mão cheia de libras um pedaço do paraíso...
Era à noite, no quarto de Carlos, já tarde. E o Ega, que passeara com as mãos nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu os ombros, impaciente, farto daqueles louvores eternos a casinhola do Craft.
- Essa concepção do paraíso, exclamou ele, parece-me dum estofador da rua Augusta! Como natureza, couves galegas; como decoração, os velhos cretones do gabinete, desbotados já por três barrelas... Um quarto de dormir lúgubre como uma capela de santuário... Um salão confuso como o armazém dum cara-de-pau, e onde não é possível conversar... A não ser o armário holandês, e um ou outro prato, tudo aquilo é um lixo arqueológico... Jesus! o que eu odeio bric-à-brac!
Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquilamente, e como reflectindo:
- Com efeito esses cretones são medonhos... Mas eu vou mandar remobilar, tornar aquilo mais habitável.
Ega estacou no meio do quarto, com o monóculo a faiscar sobre Carlos.
- Habitável? Vais ter hospedes?
- Vou alugar.
- Vais alugar! A quem?
E o silêncio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrete com os olhos no tecto, enfureceu Ega. Cumprimentou quasi até ao chão, disse sarcasticamente:
- Peço perdão. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de querer arrombar uma gaveta fechada... O aluguel dum prédio é sempre um desses delicados segredos de sentimento e de honra em que não deve roçar nem a asa da imaginação... Fui rude... Irra! Fui bestialmente rude!
Carlos continuava calado. Compreendia bem o Ega - e quasi sentia um remorso daquela sua rígida reserva. Mas era como um pudor que o enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome de Maria Eduarda. Todas as suas outras aventuras as contara ao Ega; e essas confidências constituíam talvez mesmo o prazer mais sólido que elas lhe davam. Isto, porém, não era «uma aventura». Ao seu amor misturava-se alguma coisa de religioso; e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar sobre a sua fé... Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma tentação de falar dela ao Ega, e de tornar vivas, e como visíveis aos seus próprios olhos, dando-lhes o contorno das palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas que lhe enchiam o coração. Além disso, Ega não saberia tudo, mais tarde ou mais cedo, pela tagarelice alheia? Antes lho dissesse ele, fraternalmente. Mas hesitou ainda, acendeu outra cigarrete. Justamente o Ega tomara o seu castiçal, e começava a: acende-lo a uma serpentina, devagar e com um ar amuado.
- Não sejas tolo, não te vás deitar, senta-te ai, disse Carlos.
E contou-lhe tudo miudamente, difusamente, desde o primeiro encontro, à entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.
Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá. Supusera um romancesinho, desses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo: e agora, só pelo modo como Carlos falava daquele grande amor, ele sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se daí por diante, e para sempre, o seu irreparável destino. Imaginara uma brasileira polida por Paris, bonita e fútil, que tendo o marido longe, no Brasil, e um formoso rapaz ao lado, no sofá, obedecia simplesmente e alegremente à disposição das coisas: e saia-lhe uma criatura cheia de carácter, cheia de paixão, capaz de sacrifícios, capaz de heroismos. Como sempre, diante destas coisas patéticas, murchava-lhe a veia, faltava-lhe a frase; e quando Carlos se calou, o bom Ega teve esta pergunta chocha:
- Então estás decidido a safar-te com ela?
- A safar-me, não; a ir viver com ela longe daqui, decididíssimo!
Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um fenómeno prodigioso, e murmurou:
- É de arromba!
Mas que outra coisa podiam eles fazer? daí a três meses talvez, Castro Gomes chegava do Brasil. Ora nem Carlos, nem ela, aceitariam nunca uma dessas situações atrozes e reles em que a mulher é do amante e do marido, a horas diversas... Só lhes restava uma solução digna, decente, seria - fugir.
Ega, depois de um silêncio, disse pensativamente:
- Para o marido é que não é talvez divertido perder assim, de uma vez, a mulher, a filha, e a cadelinha...
Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto. Sim, também ele já pensara nisso... E não sentia remorsos - mesmo quando os pudesse haver no absoluto egoísmo da paixão... Ele não conhecia intimamente Castro Gomes: mas tinha podido adivinhar o tipo, reconstrui-lo, pelo que lhe dissera o Dâmaso, e por algumas conversas com miss Sarah. Castro Gomes não era um esposo a sério: era um dândi, um fútil, um gomeux, um homem de sport e de cocotes... Casara com uma mulher bela, saciara a paixão, e recomeçara a sua vida de club e de bastidores... Bastava olhar para ele, para a sua toilete, para os seus modos - e compreendia-se logo a trivialidade daquele carácter...
- Que tal é como homem? perguntou Ega.
- Um brasileirito trigueiro, com um ar espartilhado... Um rastaquouère, o verdadeiro tiposinho do Café de la Paix... É possível que sinta, quando isto vier a suceder, um certo ardor na vaidade ferida... Mas é um coração que se há de consolar facilmente nas Folies Bergères.
Ega não dizia nada. Mas pensava que um homem de club, e mesmo consolável nas Folies Bergères, pode todavia amar muito sua filha... Depois, atravessado por uma outra ideia, acrescentou:
- E teu avô?
Carlos encolheu os ombros:
- O avô tem de se afligir um pouco para eu poder ser profundamente feliz; como eu teria de ser desgraçado toda a minha vida se quisesse poupar ao avô essa contrariedade... O mundo é assim, Ega... E eu, nesse ponto, não estou decidido a fazer sacrifícios.
Ega esfregou lentamente as mãos, com os olhos no chão, repetindo a mesma palavra, a única que lhe sugeria todo o seu espírito perante aquelas coisas veementes:
- É de arromba!
Capítulo XIII
Carlos, que almoçara cedo, estava para sair no coupé, e já de chapéu - quando Baptista veio dizer que o Sr. Ega, desejando falar-lhe numa coisa grave, lhe pedia para esperar um instante. O Sr. Ega ficara a fazer a barba.
Carlos pensou logo que se tratava da Cohen. Havia duas semanas que ela chegara a Lisboa, Ega ainda a não vira, e falava dela raramente. Mas Carlos sentia-o nervoso e desassossegado. Todas as manhãs o pobre Ega mostrava um desapontamento ao receber o correio, que só lhe trazia algum jornal cintado, ou cartas de Celorico. Á noite percorria dois, três teatros, já quasi vazios naquele começo de verão; e ao recolher era outra desconsolação, quando os criados lhe afirmavam, com certeza, que não viera carta alguma para s. Exc.ª Decerto Ega não se resignava a perder Rachel, ansiava por a encontrar; e roía-o o despeito de que ela, de qualquer modo, lhe não tivesse mostrado que no seu coração permanecia ao menos a saudade das antigas felicidades... Justamente na véspera Ega aparecera à hora do jantar, transtornado: cruzara-se com o Cohen na rua do Ouro, e parecera-lhe que «esse canalha» lhe atirara de lado um olhar atrevido, sacudindo a bengala; o Ega jurava que se «esse canalha» ousasse outra vez fita-lo, despedaçava-o, sem piedade, publicamente, a uma esquina da Baixa.
Na ante-câmara o relógio bateu dez horas, Carlos impaciente ia a subir ao quarto do Ega. Mas nesse instante o correio chegava, com a Revista dos Dois Mundos, e uma carta para Carlos. Era da Gouvarinho. Carlos acabava de a ler - quando o Ega apareceu, de jaquetão, e em chinelas.
- Tenho a falar-te numa coisa grave, menino.
- Lê isto primeiro, disse o outro, passando-lhe a carta da Gouvarinho.
A Gouvarinho, num tom amargo, queixava-se que, já por duas vezes, Carlos faltara ao rendez-vous em casa da titi, sem lhe ter sequer escrito uma palavra; ela vira nisto uma ofensa, uma brutalidade; e vinha agora intima-lo, «em nome de todos os sacrifícios que por ele fizera», a que aparecesse na rua de S. Marçal, domingo ao meio dia, para terem uma explicação definitiva antes dela partir para Sintra.
- Excelente ocasião de acabar! exclamou Ega, entregando a carta a Carlos, depois de respirar o perfume do papel. Não vás, nem respondas... Ela parte para Sintra, tu para Santa Olavia, não vos vedes mais, e assim finda o romance. Finda como todas as coisas grandes, como o Império Romano, e como o Reno, por dispersão, insensivelmente...
- É o que eu vou fazer, disse Carlos, começando a calçar as luvas. Jesus! Que mulher maçadora!
- E que desavergonhada! Chamar a essas coisas «sacrifícios!...» Arrasta-te duas vezes por semana a casa da titi, regala-se lá de extravagâncias, bebe champagne, fuma cigarretes, sobe ao sétimo céu, delira, e depois põe dolorosamente os olhos no chão, e chama a isso «sacrifícios...» Só com um chicote!...
Carlos encolheu os ombros, com resignação, como se nas condessas de Gouvarinho, e no mundo, só houvesse incoerência e dolo.
- E que é isso que tu me tinhas a dizer?
Ega então tomou um ar grave. Escolheu lentamente na caixa uma cigarrete, abotoou devagar o jaquetão.
- Tu não tens visto o Dâmaso?
- Nunca mais me apareceu, disse Carlos. Creio que está amuado... Eu sempre que o encontro, aceno-lhe de longe amigavelmente com dois dedos...
- Devia ser antes com a bengala. O Dâmaso anda ai, por toda a parte, falando de ti e dessa senhora, tua amiga... A ti chama-te pulha, a ela pior ainda. É a velha história; diz que te apresentou, que te meteste de dentro, e como para essa senhora é uma questão de dinheiro, e tu és o mais rico, ela lhe passou o pé. Vês daí a infamiasinha. E isto tagarelado pelo Grémio, pela Casa Havaneza, com detalhes torpes, envolvendo sempre a questão de dinheiro. Tudo isto é atroz. Trata de lhe pôr cobro.
Carlos, muito pálido, disse simplesmente:
- Há de se fazer justiça.
Desceu, indignado. Aquela torpe insinuação sobre «dinheiro» parecia-lhe poder ser castigada só com a morte. E um instante mesmo, com a mão no fecho da portinhola do coupé, pensou em correr a casa do Dâmaso, tomar um desforço brutal.
Mas eram quasi onze horas, e ele tinha de ir aos OIivais. No dia seguinte, sábado, dia belo entre todos e solene para o seu coração, Maria Eduarda devia enfim visitar a quinta do Craft: e ficara combinado, na véspera, que passariam lá as horas do calor, até tarde, sós, naquela casa solitária e sem criados, escondida entre as árvores. Ele pedira-lho assim, hesitante e a tremer: ela consentira logo, sorrindo e naturalmente. Nessa manhã ele mandara aos Olivais dois criados para arejar as salas, espanejar, encher tudo de flores. Agora ia lá, como um devoto, ver se estava bem enfeitado o sacrário da sua deusa... E era através destes deliciosos cuidados, em plena ventura, que lhe aparecia outra vez, suja e empanando o brilho do seu amor, a tagarelice do Dâmaso!
Até aos Olivais, não cessou de ruminar coisas vagas e violentas que faria para aniquilar o Dâmaso. No seu amor não haveria paz, enquanto aquele vilão o andasse comentando sordidamente pelas esquinas das ruas. Era necessário enxovalha-lo de tal modo, com tal publicidade, que ele não ousasse mais mostrar em Lisboa a face bochechudo, a face vil... Quando o coupé parou à porta da quinta, Carlos decidira dar bengaladas no Dâmaso, uma tarde, no Chiado, com aparato...
Mas depois, ao regressar da quinta, vinha já mais calmo. Pisara a linda rua de acácias que os pés dela pisariam na manhã seguinte: dera um longo olhar ao leito que seria o leito dela, rico, alçado sobre um estrado, envolto em cortinados de brocatel cor de ouro, com um esplendor sério de altar profano... daí a poucas horas, encontrar-se-iam sós naquela casa muda e ignorada do mundo; depois, todo o verão os seus amores viveriam escondidos nesse fresco retiro de aldeia; e daí a três meses estariam longe, na Itália, à beira dum claro lago, entre as flores da Isola Bela... No meio destas voluptuosidades magníficas, que lhe podia importar o Dâmaso, gorducho e reles, palrando em calão nos bilhares do Grémio! Quando chegou à rua de S. Francisco resolvera, se visse o Dâmaso, continuar a acenar-lhe, de leve, com a ponta dos dedos.
Maria Eduarda fora passear a Belém com Rosa deixando-lhe um bilhete, em que lhe pedia para vir à noite faire un bout de causerie. Carlos desceu as escadas, devagar, guardando esse bocadinho de papel na carteira como uma doce relíquia; e saia o portão, no momento em que o Alencar desembocava defronte, da travessa da Parreirinha, todo de preto, moroso e pensativo. Ao avistar Carlos, parou de braços abertos; depois vivamente, como recordando-se, ergueu os olhos para o primeiro andar.
Não se tinham visto desde as corridas, o poeta abraçou com efusão o seu Carlos. E falou logo de si, copiosamente. Estivera outra vez em Sintra, em Colares com o seu velho Carvalhosa: e o que se lembrara do rico dia passado com Carlos e com o maestro em Sitiais!... Sintra uma beleza. Ele, um pouco constipado. E apesar da companhia do Carvalhosa, tão erudito e tão profundo, apesar da excelente música da mulher, da Julinha (que para ele era como uma irmã), tinha-se aborrecido. Questão de velhice...
- Com efeito, disse Carlos, pareces-me um pouco murcho... Falta-te o teu ar aureolado.
O poeta encolheu os ombros.
- O Evangelho lá o diz bem claro... Ou é a Bíblia que o diz...? Não; é S. Paulo... S. Paulo ou Santo Agostinho?... Enfim a autoridade não faz ao caso. Num desses santos livros se afirma que este mundo é um vale de lágrimas...
- Em que a gente se ri bastante, disse Carlos alegremente.
O poeta tornou a encolher os ombros. Lágrimas ou risos, que importava?... Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na véspera ele dissera isso mesmo em casa dos Cohens...
E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braço de Carlos:
- E agora por falar nos Cohens, dize-me uma coisa com franqueza, meu rapaz. Eu sei que tu és íntimo do Ega, e, que diabo, ninguém lhe admira mais o talento do que eu!... Mas, realmente, tu aprovas que ele, apenas soube da chegada dos Cohens, se viesse meter em Lisboa? Depois do que houve!...
Carlos afiançou ao poeta que o Ega só no dia mesmo da chegada, horas depois, soubera pela Gazeta Ilustrada a vinda dos Cohens... E de resto se não pudessem habitar, conjuntas na mesma cidade, as pessoas entre as quais tivesse havido atritos desagradáveis, as sociedades humanas tinham de se desfazer...
Alencar não respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com a cabeça baixa. Depois parou de novo, franzindo a testa:
- Outra coisa em que te quero falar. Houve entre ti e o Dâmaso alguma pega? Eu pergunto-te isto porque noutro dia, lá em casa dos Cohens, ele veio com uns ditos, umas insinuações... Eu declarei-lhe logo: «Dâmaso, Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, é como se fosse meu irmão.» E o Dâmaso calou-se... Calou-se, porque me conhece, e sabe que eu nestas coisas de lealdade e de coração sou uma fera!
Carlos disse simplesmente:
- Não, não há nada, não sei nada... Nem sequer tenho visto o Dâmaso.
- Pois é verdade, continuou Alencar tomando o braço de Carlos, lembrei-me muito de ti em Sintra. Até fiz lá um coisita que me não saiu má, e que te dediquei... Um simples soneto, uma paisagem, um quadrosinho de Sintra ao pôr do sol. Quis provar aí a esses da Ideia Nova, que, sendo necessário, também por cá se sabe cinzelar o verso moderno e dar o traço realista. Ora espera ai, eu te digo, se me lembrar. A coisa chama-se - Na estrada dos Capuchos...
Tinham parado à esquina do Seixas; e o poeta tossira já de leve, antes de recitar, - quando justamente lhes apareceu o Ega, vindo de baixo, vestido de campo, com uma bela rosa branca no jaquetão de flanela azul.
Alencar e ele não se encontravam desde a fatal soirée dos Cohens. E ao passo que o Ega conservava um ressentimento feroz contra o poeta vendo nele o inventor dessa pérfida lenda da «carta obscena»- Alencar odiava-o pela certeza secreta de que ele fora o amante amado da sua divina Rachel. Ambos se fizeram pálidos; o aperto de mão que deram foi incerto e regelado; e ficaram calados, todos três, enquanto Ega nervoso levava uma eternidade a acender o charuto no lume de Carlos. Mas foi ele que falou, por entre uma fumaça, afectando uma superioridade amável:
- Acho-te com boa cor, Alencar!
O poeta foi amável também, um pouco de alto, passando os dedos no bigode:
- Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos dás essas Memórias homem?
- Estou à espera que o país aprenda a ler.
- Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, ele ocupa-se da Instrucção publica... Olha, ali o tens tu, grave e oco como uma coluna do Diário do Governo...
O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, por onde o Gouvarinho descia, muito devagar, a conversar com o Cohen; e ao lado deles, de chapéu branco, de colete branco, o Dâmaso deitava olhares pelo Chiado, risonho, ovante, barrigudo, como um conquistador nos seus domínios. Já aquele arzinho gordo de tranquilo triunfo irritou Carlos. Mas quando o Dâmaso parou defronte, no outro passeio, todo de costas para ele, ostentando rir alto com o Gouvarinho, não se conteve, atravessou a rua.
Foi breve, e foi cruel: sacudiu a mão do Gouvarinho, saudou de leve o Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Dâmaso friamente:
- Ouve lá. Se continuas a falar de mim e de pessoas das minhas relações, do modo como tens falado, e que não me convém, arranco-te as orelhas.
O conde acudiu, metendo-se entre eles:
- Maia, por quem é! Aqui no Chiado...
- Não é nada, Gouvarinho, disse Carlos detendo-o, muito sério e muito sereno. É apenas um aviso a este imbecil.
- Eu não quero questões, eu não quero questões!... balbuciou o Dâmaso, lívido, enfiando para dentro duma tabacaria.
E Carlos voltou, com sossego, para junto dos seus amigos, depois de ter saudado o Cohen e sacudir a mão ao Gouvarinho.
Vinha apenas um pouco pálido: mais perturbado estava o Ega, que julgara ver de novo, num olhar do Cohen, uma provocação intolerável. Só o Alencar não reparara em nada: continuava a discursar sobre coisas literárias, explicando ao Ega as concessões que se podiam fazer ao naturalismo...
- Fiquei aqui a dizer ao Ega... É evidente que quando se trata de paisagem é necessário copiar a realidade... Não se pode descrever um castanheiro a priori, como se descreveria uma alma... E lá isso faço eu... Aí está esse soneto de Sintra que eu te dediquei, Carlos. É realista, está claro que é, realista... Pudera, se é paisagem! Ora eu vo-lo digo... Ia justamente dize-lo, quando tu apareceste, Ega... Mas vejam lá vocês se isto os massa...
Qual maçava! E até, para o escutarem melhor, penetraram na rua de S. Francisco, mais silenciosa. Aí, dando um passo lento, depois outro, o poeta murmurou a sua écloga. Era em Sintra, ao pôr do sol: uma inglesa, de cabelos soltos, toda de branco, desce num burrinho por uma vereda que domina um vale; as aves cantam de leve, há borboletas em torno das madressilvas; então a inglesa pára, deixa o burrinho, olha enlevada o céu, os arvoredos, a paz das casas; - e ai, no ultimo terceto, vinha «a nota realista» de que se ufanava o Alencar:
Ela olha a flor dormente, a nuvem casta,
Enquanto o fumo dos casais se eleva
E ao lado o burro, pensativo, pasta.
- Aí têm vocês o traço, a nota naturalista... Ao lado o burro, pensativo, pasta... Eis aí a realidade, está-se a ver o burro pensativo... Não há nada mais pensativo que um burro... E são estas pequeninas coisas da natureza que é necessário observar... Já vêem votos que se pode fazer realismo, e do bom, sem vir logo com obscenidades... Vocês que lhes parece o soneto?
Ambos o elogiaram profundamente - Carlos arrependido de não ter completado a humilhação do Dâmaso, dando-lhe bengaladas; Ega pensando que decerto, numa dessas tardes, no Chiado, teria de esbofetear o Cohen. Como eles recolhiam ao Ramalhete, Alencar, já desanuviado, foi acompanha-los pelo Aterro. E falou sempre, contando o plano de um romance histórico, em que ele queria pintar a grande figura de Afonso de Albuquerque, mas por um lado mais humano, mais íntimo: Afonso de Albuquerque namorado: Afonso de Albuquerque, só, de noite, na popa do seu galeão, diante de Ormuz incendiada, beijando uma flor seca, entre soluços. Alencar achava isto sublime.
Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir à rua de S. Francisco - quando o Baptista veio dizer que o Sr. Teles da Gama lhe desejava falar com urgência. Não o querendo receber, ali, em mangas de camisa, mandou-o entrar para o gabinete escarlate e preto. E veio daí a um instante encontrar Teles da Gama admirando as belas faianças holandesas.
- Você, Maia, tem isto lindíssimo, exclamou ele logo. Eu pelo-me por porcelanas... Hei de voltar um dia destes, com mais vagar, ver tudo isto, de dia... Mas hoje venho com pressa, venho com uma missão... Você não adivinha?
Carlos não adivinhava.
E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em que transparecia um sorriso:
- Eu venho aqui perguntar-lhe da parte do Dâmaso, se você hoje, naquilo que lhe disse, tinha intenção de o ofender. É, só isto... A minha missão é apenas esta: perguntar-lhe se você tinha intenção de o ofender.
Carlos olhou-o, muito sério:
- O quê!? Se tinha intenção de ofender o Dâmaso quando o ameacei de lhe arrancar as orelhas? De modo nenhum: tinha só intenção de lhe arrancar as orelhas!
Teles da Gama saudou, rasgadamente:
- Foi isso mesmo o que eu respondi ao Dâmaso: que você não tinha senão essa intenção. Em todo o caso, desde este momento, a minha missão está finda... Como você tem isto bonito!... O que é aquele prato grande, majólica?
- Não, um velho Nevers. Veja você ao pé... É Tetis conduzindo as armas de Aquiles... É esplêndido; e é muito raro... Veja você esse Deft, com as duas tulipas amarelas... É um encanto!
Teles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades, tomando o chapéu de sobre o sofá.
- Lindíssimo tudo isto!... Então só intenção de lhe arrancar as orelhas? nenhuma de o ofender?...
- Nenhuma de o ofender, toda de lhe arrancar as orelhas... Fume você um charuto.
- Não, obrigado...
- Cálice de cognac?
- Não! abstenção total de bebidas e águas ardentes... Pois adeus, meu bom Maia!
- Adeus, meu bom Teles...
Ao outro dia, por uma radiante manhã de julho, Carlos saltava do coupé, com um molho de chaves, diante do portão da quinta do Craft. Maria Eduarda devia chegar ás dez horas, só, na sua carruagem da Companhia. O hortelão, dispensado por dois dias, fora a Vila Franca; não havia ainda criados na casa; as janelas estavam fechadas. E pesava ali, envolvendo a estrada e a vivenda, um desses altos e graves silêncios de aldeia, em que se sente, dormente no ar, o zumbir dos moscardos.
Logo depois do portão, penetrava-se numa fresca rua de acácias, onde cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, aparecia o quiosque, com tecto de madeira, pintado de vermelho, que fora o capricho de Craft, e que ele mobilara à japonesa. E ao fundo era a casa, caiada de novo, com janelas de peitoril, persianas verdes, e a portinha ao centro sobre três degraus, flanqueados por vasos de louça azul cheios de cravos.
Só o meter a chave devagar e com uma inútil cautela na fechadura daquela morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu as janelas: e a larga luz que entrava pareceu-lhe trazer uma doçura rara, e uma alegria maior que a dos outros dias, como preparada especialmente pelo bom Deus para alumiar a festa do seu coração. Correu logo à sala de jantar, a verificar se, na mesa posta para o lunch, se conservavam ainda viçosas as flores que lá deixara na véspera. Depois voltou ao coupé a tirar o caixote de gelo, que trouxera de Lisboa, embrulhado em flanela, entre serradura. Na estrada, silenciosa por ora, ia só passando uma saloia montada na sua égua.
Mas apenas acomodara o gelo - sentiu fora o ruído lento da carruagem. Veio para o gabinete forrado de cretones, que abria sobre o corredor; e ficou ali, espreitando da porta, mas escondido, por causa do cocheiro da Companhia. daí a um instante viu-a enfim chegar, pela rua de acácias, alta e bela, vestida de preto, e com um meio-véu espesso como uma mascara. Os seus pésinhos subiram os três degraus de pedra. Ele sentiu a sua voz inquieta perguntar de leve:
- Êtes-vous là?
Apareceu - e ficaram um instante, à porta do gabinete, apertando sofregamente as mãos, sem falar, comovidos, deslumbrados.
- Que linda manhã! disse ela por fim, rindo e toda vermelha.
- Linda manhã, linda! repetia Carlos, contemplando-a, enlevado.
Maria Eduarda resvalara sobre uma cadeira, junto da porta, num cansaço delicioso, deixando acalmar o alvoroço do seu coração.
- É muito confortável, é encantador tudo isto, dizia ela olhando lentamente em redor os cretones do gabinete, o divã turco coberto com um tapete de Brousse, a estante envidraçada cheia de livros. Vou ficar aqui adoravelmente...
- Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo, murmurou Carlos, esquecido a olhar para ela. Ainda nem lhe beijei a mão...
Maria Eduarda começou atirar o véu, depois as luvas, falando da estrada. Achara-a longa, fatigante. Mas que lhe importava? Apenas se acomodasse naquele fresco ninho nunca mais voltava a Lisboa!
Atirou o chapéu para cima do divã - ergueu-se, toda alegre e luminosa.
- Vamos ver a casa, estou morta por ver essas maravilhas do seu amigo Craft!... É Craft que se chama? Craft quer dizer indústria!
- Mas ainda nem sequer lhe beijei a mão! tornou Carlos, sorrindo e suplicante.
Ela estendeu-lhe os lábios, e ficou presa nos seus braços.
E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabelo, dizia-lhe quanto era feliz e quanto a sentia agora mais sua entre estes velhos muros de quinta que a separavam do resto do mundo...
Ela deixava-se beijar, séria e grave:
- E é verdade isso? É realmente verdade?...
Se era verdade! Carlos teve um suspiro quasi triste:
- Que lhe hei de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa antiga que já Hamlet disse: que duvide de tudo, que duvide do sol, mas que não duvide de mim...
Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada.
- Vamos ver a casa, disse ela.
Começaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia: mas os quartos em cima, alegres, esteirados de novo, forrados de papéis claros, abriam sobre o rio e sobre os campos.
- Os seus aposentos, disse Carlos, hão de ser em baixo, está visto, entre as coisas ricas... Mas Rosa e miss Sarah ficam aqui esplendidamente. Não lhe parece?
E ela percorria os quartos, devagar, examinando a acomodação dos armários, palpando a elasticidade dos colchões, atenta, cuidadosa, toda no desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma alteração. E era realmente como se aquele homem que a seguia, enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio.
- O quarto com as duas janelas, ao fundo do corredor, seria o melhor para Rosa. Mas a pequena não pode dormir naquele enorme leito de pau preto...
- Muda-se!
- Sim, pode mudar-se... E falta uma sala larga para ela brincar, ás horas do calor... Se não houvesse o tabique entre os dois quartos pequenos...
- Deita-se abaixo
Ele esfregava as mãos, encantado, pronto a refundir toda a casa; e ela não recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus.
Desceram à sala de jantar. E ai, diante da famosa chaminé de carvalho lavrado, flanqueada à maneira de cariátides pelas duas negras figuras de Núbios, com olhos rutilantes de cristal, Maria Eduarda começou a achar o gosto do Craft excêntrico, quasi exótico... Também Carlos não lhe dizia que Craft tivesse o gosto correcto dum ateniense. Era um saxónio batido dum raio de sol meridional: mas havia muito talento na sua excentricidade...
- Oh, a vista é que é deliciosa! exclamou ela chegando-se à janela.
Junto do peitoril crescia um pé de margaridas, e ao lado outro de baunilha que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete de relva, mal aparada, um pouco amarelada já pelo calor de julho; e entre duas grandes árvores que lhe faziam sombra, havia ali, para os vagares da sesta, um largo banco de cortiça. Um renque de arbustos cerrados parecia fechar a quinta daquele lado como uma sebe. Depois a colina descia, com outras quintarolas, casas que se não viam, e uma chaminé de fabrica; e lá no fundo o rio rebrilhava, vidrado de azul, mudo e cheio de sol, até ás montanhas de além-Tejo, azuladas também na faiscação clara do céu de verão.
- Isto é encantador! repetia ela.
- É um paraíso! Pois não lhe dizia eu? É necessário pôr um nome a esta casa... Como se há de chamar? Vila-Marie? Não. Château-Rose... Também não, credo! Parece o nome dum vinho. O melhor é baptiza-la definitivamente com o nome que nós lhe dávamos. Nós chamávamos-lhe a Tóca.
Maria Eduarda achou originalíssimo o nome de Tóca. Devia-se até pintar em letras vermelhas sobre o portão.
- Justamente, e com uma divisa de bicho, disse Carlos rindo. Uma divisa de bicho egoísta na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!
Mas ela parara, com um lindo riso de surpresa, diante da mesa posta, cheia de fruta, com as duas cadeiras já chegadas, e os cristais brilhando entre as flores.
- São as bodas de Caná!
Os olhos de Carlos resplandeceram.
- São as nossas!
Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um morango, depois a escolher uma rosa.
- Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo? Nós temos gelo, temos tudo! Não nos falta nada, nem a benção de Deus... Uma gotinha de champagne, vá!
Ela aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus lábios se encontraram, apaixonadamente.
Carlos acendeu uma cigarrete, continuaram a percorrer a casa. A cozinha agradou-lhe muito, arranjada à inglesa, toda em azulejos. No corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panóplia de tourada, com uma cabeça negra de touro, espadas e garrochas, mantos de seda vermelha, conservando nas suas pregas uma graça ligeira, e ao lado o cartaz amarelo de la corrida, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a como um quente lampejo de festa e de sol peninsular...
Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lho foi mostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova, recebendo a claridade duma sala forrada de tapeçarias, onde desmaiavam na trama de lá os amores de Vénus e Marte: da porta de comunicação, arredondada em arco de capela, pendia uma pesada lâmpada da Renascença, de ferro forjado: e, àquela hora, batida por uma larga faixa de sol, a alcova resplandecia como o interior de um tabernáculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tectos, de um brocado amarelo, cor de botão de ouro; um tapete de veludo do mesmo tom rico fazia um pavimento de ouro vivo sobre que poderiam correr nús os pés ardentes duma deusa amorosa - e o leito de dossel, alçado sobre um estrado, coberto com uma colcha de cetim amarelo bordada a flores de ouro, envolto em solenes cortinas também amarelas de velho brocatel, - enchia a alcova, esplêndido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas de uma paixão trágica do tempo de Lucrécia ou de Romeu. E era ali que o bom Craft, com um lenço de seda da índia amarrado na cabeça, ressonava as suas sete horas, pacata e solitariamente.
Mas Maria Eduarda não gostou destes amarelos excessivos. Depois impressionou-se, ao reparar num painel antigo, defumado, resultando em negro do fundo de todo aquele ouro - onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida, gelada no seu sangue, dentro dum prato de cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor, com um ar de meditação sinistra, os seus dois olhos redondos e agourentos... Maria Eduarda achava impossível ter ali sonhos suaves.
Carlos agarrou logo na coluna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor; e propôs-lhe mudar aqueles brocados, forrar a alcova de um cetim cor de rosa e risonho.
- Não, venho-me a acostumar a todos esses duros... Somente aquele quadro, com a cabeça, e com o sangue... Jesus, que horror!
- Reparando bem, disse Carlos, creio que é o nosso velho amigo S. João Baptista.
Para desfazer essa impressão desconsolada levou-a ao salão nobre, onde Craft concentrara as suas preciosidades. Maria Eduarda, porém, ainda descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.
- É para ver de pé, e de passagem... Não se pode ficar aqui sentado, a conversar.
- Mas esta é matéria-prima! exclamou Carlos. Com isto depois faz-se uma sala adorável... Para que serve o nosso génio decorativo?... Olhe o armário, veja que centro! Que beleza!
Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armário, o «móvel divino» do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseática, luxuoso e sombrio, tinha uma majestade arquitectural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Mateus, imagens rígidas, envolvidas nessas roupagens violentas que um vento de profecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um troféu agrícola com molhos de espigas, foices, cachos de uvas e rabiças de arados; e, à sombra destas coisas de labor e fartura, dois Faunos, recostados em simetria, indiferentes aos heróis e aos santos, tocavam num desafio bucólico a frauta de quatro tubos.
- Então, hein? dizia Carlos. Que móvel! É todo um poema da Renascença, Faunos e Apóstolos, guerras e geórgicas... Que se pode meter dentro deste armário? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como num altar-mór.
Ela não respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas do passado, duma beleza fria, e exalando a indefinida tristeza de um luxo morto: finos móveis da Renascença italiana, exilados dos seus palácios de mármore, com embutidos de Cornalina e agata que punham um brilho suave de jóia sobre a negrura dos ébanos ou cetim das madeiras cor de rosa; cofres nupciais, longos como baús, onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Príncipes, pintados a púrpura e ouro, com graças de miniatura; contadores espanhóis empertigadas, revestidos de ferro brunido e de veludo vermelho, e com interiores misteriosos, em forma de capela, cheios de nichos, de claustros de tartaruga... Aqui e além, sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de cetim toda recamada de flores e de aves de ouro; ou sobre um bocado de tapete do Oriente de tons severos, com versículos do Alcorão, desdobrava-se a pastoral gentil dum minuete em Citera sobre a seda de um leque aberto...
Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, numa poltrona Luís xv, ampla e nobre, feita para a majestade das anquinhas, recoberta de tapeçaria de Beauvais, de onde parecia exalar-se ainda um vago aroma de empoado.
Carlos triunfava, vendo a admiração de Maria. Então, ainda considerava uma extravagância aquela compra, feita num rasgo de entusiasmo?
- Não, há aqui coisas adoráveis... Nem eu sei se me atreverei a viver uma vida pacata de aldeia no meio de todas estas raridades...
- Não diga isso, exclamava Carlos rindo, que eu pego fogo a tudo!
Mas o que lhe agradou mais foram as belas faianças, toda uma arte imortal e frágil espalhada por sobre o mármore das consolas. Uma sobretudo atraiu-a, uma esplêndida taça persa, dum desenho raro, com um renque de negros ciprestes, cada um abrigando uma flor de cor viva: e aquilo fazia lembrar breves sorrisos reaparecendo entre longas tristezas. Depois eram as aparatosas majólicas, de tons estridentes e desencontrados, cheias de grandes personagens, Carlos V passando o Elba, Alexandre coroando Roxane; os lindos Nevers, ingénuos e sérios; os Marselhas, onde se abre voluptuosamente, como uma nudez que se mostra, uma grossa rosa vermelha; os Derby, com as suas rendas de ouro sobre o azul-ferrete de céu tropical; os Wedgewood, cor deleite e cor de rosa, com transparências fugitivas de concha na água...
- Só um instante mais, exclamou Carlos vendo-a outra vez sentar-se, é necessário saudar o génio tutelar da casa!
Era ao centro, sobre uma larga peanha, um ídolo japonês de bronze, um deus bestial, nú, pelado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso, com o ventre ovante, distendido na indigestão de todo um universo - e as duas perninhas bambas, moles e flácidas como as peles mortas dum feto. E este monstro triunfava, encanchado sobre um animal fabuloso, de pés humanos, que dobrava para a terra o pescoço submisso, mostrando no focinho e no olho oblíquo todo o surdo ressentimento da sua humilhação...
- E pensarmos, dizia Carlos, que gerações inteiras vieram ajoelhar-se diante deste ratão, rezar-lhe, beijar-lhe o umbigo, oferecer-lhe riquezas, morrer por ele...
- O amor que se tem por um monstro, disse Maria, é mais meritório, não é verdade?
- Por isso não acha talvez meritório o amor que se tem por si...
Sentaram-se ao pé da janela, num divã baixo e largo, cheio de almofadas, cercado por um biombo de seda branca, que fazia entre aquele luxo do passado um fofo recanto de conforto moderno: e como ela se queixava um pouco de calor, Carlos abriu a janela. Junto do peitoril crescia também um grande pé de margaridas; adiante, num velho vaso de pedra, pousado sobre a relva, vermelhejava a flor dum cacto; e dos ramos de uma nogueira caia uma fina frescura.
Maria Eduarda veio encostar-se à janela, Carlos seguiu-a; e ficaram ali juntos, calados, profundamente felizes, penetrados pela doçura daquela solidão. Um pássaro cantou de leve no ramo da árvore; depois calou-se. Ela quis saber o nome de uma povoação que branquejava ao longe ao sol na colina azulada. Carlos não se lembrava. Depois brincando, colheu uma margarida, para a interrogar: Ele m'aime, un peu, beaucoup... Ela arrancou-lha das mãos.
- Para que precisa perguntar ás flores?
- Porque ainda mo não disse claramente, absolutamente, como eu quero que mo diga...
Abraçou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Então Carlos, com os olhos mergulhados nos dela, disse-lhe baixinho e implorando:
- Ainda não vimos a saleta de banho...
Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaçada pelo salão, depois através da sala de tapeçarias onde Marte e Vénus se amavam entre os bosques. Os banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por um velho tapete vermelho da Caramania. Ele, tendo-a sempre abraçada, pousou-lhe no pescoço um beijo longo e lento. Ela abandonou-se mais, os seus olhos cerraram-se, pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente e cor de ouro: Carlos ao passar desprendeu as cortinas do arco de capela, feitas de uma seda leve que coava para dentro uma claridade loura: e um instante ficaram imóveis, sós enfim, desatado o abraço, sem se tocarem, como suspensos e sufocados pela abundância da sua felicidade.
- Aquela horrível cabeça! murmurou ela.
Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E então todo o rumor se extinguiu, a solitária casa ficou adormecida entre as árvores, numa demorada sesta, sob a calma de julho...
Os anos de Afonso da Maia foram justamente no dia seguinte, domingo. Quasi todos os amigos da casa tinham jantado no Ramalhete; e tomara-se o café no escritório de Afonso, onde as janelas se conservavam abertas. A noite estava tépida, estrelada e sereníssima. Craft, Sequeira e o Taveira passeavam fumando no terraço. Ao canto dum sofá Cruges escutava religiosamente Steinbroken que lhe contava, com gravidade, os progressos da música na Finlândia. E em redor de Afonso, estendido na sua velha poltrona, de cachimbo na mão, falava-se do campo.
Ao jantar Afonso anunciara a intenção de ir visitar, para o meado do mês, as velhas árvores de Santa Olavia; e combinara-se logo uma grande romaria de amizade ás margens do Douro. Craft e Sequeira acompanhavam Afonso. O marquês prometera uma visita para agosto «na companhia melodiosa», dizia ele, do amigo Steinbroken. D. Diogo hesitava, com receio da longa jornada, da humidade da aldeia. E agora tratava-se de persuadir Ega a ir também, com Carlos - quando Carlos acabasse enfim de reunir esses materiais do seu livro que o retinham em Lisboa «á banca do labor...» Mas o Ega resistiu. O campo, dizia ele, era bom para os selvagens. O homem, à maneira que se civiliza, afasta-se da natureza; e a realização do progresso, o paraíso na Terra, que pressagiam os Idealistas, concebia-o ele como uma vasta cidade ocupando totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e além um bosquesinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes para perfumar o altar da Justiça...
- E o milho? A bela fruta? A hortaliçasinha? perguntava Vilaça, rindo com malícia.
Imaginava então Vilaça, replicava o outro, que daqui a séculos ainda se comeriam hortaliças? O habito dos vegetais era um resto da rude animalidade do homem. Com os tempos o ser civilizado e completo vinha a alimentar-se unicamente de productos artificiais, em frasquinhos e em pílulas, feitos nos laboratórios do Estado...
- O campo, disse então D. Diogo, passando gravemente os dedos pelos bigodes, tem certa vantagem para a sociedade, para se fazer um bonito pic-nic, para uma burficada, para uma partida de croquet... Sem campo não há sociedade.
- Sim, rosnou o Ega, como uma sala em que também há árvores ainda se admite...
Enterrado numa poltrona, fumando languidamente, Carlos sorria em silêncio. Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo esparsamente a tudo, com um ar luminoso e de deliciosa lassidão. E então o marquês, que já duas vezes, dirigindo-se a ele, encontrara a mesma abstracção radiosa, impacientou-se:
- Homem, fale, diga alguma coisa!... Você está hoje com um ar extraordinário, um arzinho de beato que se regalou de papar o Santíssimo!
Todos em redor, com simpatia, se afirmaram em Carlos: Vilaça achava-lhe agora melhor cara, cor de alegria: D. Diogo, com um ar entendido, sentindo mulher, invejou-lhe os anos, invejou-lhe o vigor. E Afonso reenchendo o cachimbo olhava o neto, enternecido.
Carlos ergueu-se imediatamente, fugindo àquele exame afectuoso.
- Com efeito, disse ele, espreguiçando-se de leve, tenho estado hoje lânguido e mono... É o começo do verão... Mas é necessário sacudir-me... Quer você fazer uma partida de bilhar, ó marquês?
- Vá lá, homem. Se isso o ressuscita...
Foram, Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquês parando, e como recordando-se, perguntou sem rebuço ao Ega noticias dos Cohens. Tinham-se encontrado? Estava tudo acabado? Para o marquês, uma flor de lealdade, não havia segredos: Ega contou-lhe que o romance findara, e agora o Cohen, quando o cruzava, baixava prudentemente os olhos...
- Eu perguntei isto, disse o marquês, porque já vi a Cohen duas vezes...
- Onde? foi a exclamação sôfrega do Ega.
- No Price, e sempre com o Dâmaso. A ultima vez foi já esta semana. E lá estava o Dâmaso, muito chegadinho, palrando muito... Depois veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e sempre de olho nela... E ela de lá, com aquele ar de lambisgóia, de luneta nele... Não havia que duvidar, era um namoro... Aquele Cohen é um predestinado.
Ega fez-se lívido, torceu nervosamente o bigode, terminou por dizer:
- O Dâmaso é muito íntimo deles... Mas talvez se atire, não duvido... São dignos um do outro.
No bilhar, enquanto os dois carambolavam preguiçosamente, ele não cessou de passear, numa agitação, trincando o charuto apagado. De repente estacou em frente do marquês, com os olhos chamejantes:
- Quando é que você a viu ultimamente no Price, essa torpe iliba de Israel?
- Terça-feira, creio eu.
O Ega recomeçou a passear, sombrio.
Nesse instante Baptista, aparecendo à porta do bilhar, chamou Carlos em silêncio, com um leve olhar. Carlos veio, surpreendido.
- É um cocheiro de praça, murmurou Baptista. Diz que está ali uma senhora dentro duma carruagem que lhe quer falar.
- Que senhora?
Baptista encolheu os ombros. Carlos, de taco na mão, olhava para ele, aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria... Que teria sucedido, santo Deus, para ela vir numa tipóia, ás nove da noite, ao Ramalhete!
Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapéu baixo; e assim mesmo, de casaca, sem paletó, desceu numa grande ansiedade. No peristilo topou com Euzebiosinho que chegava, e sacudia cuidadosamente com o lenço a poeira dos botins. Nem falou ao Euzebiosinho. Correu ao coupé, parado à porta particular dos seus quartos, mudo, fechado, misterioso, aterrador...
Abriu a portinhola. Do canto da velha traquitana, um vulto negro, abafado numa mantilha de renda, debruçou-se, perturbado, balbuciou:
- É só um instante! Quero-lhe falar!
Que alívio! Era a Gouvarinho! Então, na sua indignação, Carlos foi brutal.
- Que diabo de tolice é esta? Que quer?
Ia bater com a portinhola; ela empurrou-a para fora, desesperada; e não se conteve, desabafou logo ali, diante do cocheiro, que mexia tranquilamente na fivela dum tirante.
- De quem é a culpa? Para que me trata deste modo?... É só um instante, entre, tenho de lhe falar!...
Carlos saltou para dentro, furioso:
- Dá uma volta pelo Aterro, gritou ao cocheiro. Devagar!
O velho calhambeque desceu a calçada; e durante um momento, na escuridão, recuando um do outro no assento estreito, tiveram as mesmas palavras, bruscas e coléricas, através do barulho das vidraças.
- Que imprudência! que tolice!...
- E de quem é a culpa? De quem é a culpa?
Depois, na rampa de Santos, o coupé rolou mais silenciosamente no macadame. Carlos então, arrependido da sua dureza, voltou-se para ela, e com brandura, quasi no tom carinhoso de outrora, repreendeu-a por aquela imprudência... Pois não era melhor ter-lhe escrito?
- Para quê? exclamou ela. Para não me responder? Para não fazer caso das minhas cartas, como se fossem as de um importuno a pedir-lhe uma esmola!...
Sufocava, arrancou a mantilha da cabeça. No vagaroso rolar do coupé, sem ruído, ao longo do rio, Carlos sentia a respiração dela, tumultuosa e cheia de angustia. E não dizia nada, imóvel, num infinito mal-estar, entrevendo confusamente, através do vidro embaciado, na sombra triste do rio adormecido, as mastreações vagas de faluas. A parelha parecia ir adormecendo; e as queixas dela desenrolavam-se, profundas, mordentes, repassadas de amargura.
- Peço-lhe que venha a Santa Isabel, não vem... Escrevo-lhe, não me responde... Quero ter uma explicação franca consigo, não aparece... Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem um aceno... Um desprezo brutal, um desprezo grosseiro... Eu nem devia ter vindo... Mas não pude, não pude!... Quis saber o que lhe tinha feito. O que é isto? Que lhe fiz eu?
Carlos percebia os olhos dela, faiscantes sob a névoa de lágrimas retidas, suplicando e procurando os seus. E sem coragem sequer de a fitar, murmurou, torturado:
- Realmente, minha amiga... As coisas falam bem por si, não são necessárias explicações.
- São! É necessário saber se isto é uma coisa passageira, um amuo, ou se é uma coisa definitiva, um rompimento
Ele agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave, afectuosa ainda, de lhe dizer que todo o seu desejo dela findara. Terminou por afirmar que não era um amuo. Os seus sentimentos tinham sido sempre elevados, não cairia agora na pieguice de ter um amuo...
- Então é um rompimento?...
- Não, também não... Um rompimento absoluto, para sempre, não...
- Então é um amuo? Porquê?
Carlos não respondeu. Ela, perdida, sacudiu-o pelo braço.
- Mas fale! Diga alguma coisa, santo Deus! Não seja cobarde, tenha a coragem de dizer o que é!
Sim, ela tinha razão... Era uma cobardia, era uma indignidade, continuar ali, gauchemente, dissimulado na sombra, a balbuciar coisas mesquinhas. Quis ser claro, quis ser forte.
- Pois bem, aí está. Eu entendi que as nossas relações deviam ser alteradas...
E outra vez hesitou, a verdade amoleceu-lhe nos lábios, sentindo aquela mulher ao seu lado a tremer de agonia.
- Alteradas, quero dizer... Podíamos transformar um capricho apaixonado, que não podia durar, numa amizade agradável, e mais nobre...
E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe fáceis, hábeis, persuasivas, através do rumor lento das rodas. Onde os podia levar aquela ligação? Ao resultado costumado. A que a um dia se descobrisse tudo, e o seu belo romance acabasse no escândalo e na vergonha; ou a que, envolvendo-os por muito tempo o segredo, ele viesse a descair na banalidade duma união quasi conjugal, sem interesse e sem requinte. De resto era certo que, continuando a encontrarem-se, aqui, em Sintra, noutros sítios, a sociedadesinha curiosa e mexeriqueira viria a perceber a sua afeição. E havia por acaso nada mais horroroso, para quem tem orgulho e delicadeza de alma, do que uns amores que todo o publico conhece, até os cocheiros de praça? Não... O bom senso, o bom gosto mesmo, tudo indicava a necessidade duma separação. Ela mesmo mais tarde lhe seria grata... Decerto, esta primeira interrupção dum habito doce era desagradável, e ele estava bem longe de se sentir feliz. Fora por isso que não tivera a coragem de lhe escrever... Enfim deviam ser fortes, e não se verem pelo menos durante alguns meses... Depois, pouco a pouco, o que era capricho frágil, cheio de inquietação, tornar-se-hia uma boa amizade, bem segura e bem duradoura.
Calou-se; e então, no silêncio, sentiu que ela, caída para o canto do coupé, como uma coisa miserável e meio morta, encolhida no seu véu, estava chorando baixo.
Foi um momento intolerável. Ela chorava sem violência, mansamente, com um choro lento, que parecia não dever findar. E Carlos só achava esta palavra banal e desenxabida:
- Que tolice, que tolice!
Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fabrica do gás. Um Americano passou alumiado, com senhoras vestidas de claro. Naquela noite de verão e de estrelas, havia gente vagueando tranquilamente entre as árvores. Ela continuava a chorar.
Aquele pranto triste, lento, correndo a seu lado, começou a comove-lo; e ao mesmo tempo quasi lhe queria mal por ela não reter essas lágrimas infindáveis que laceravam o seu coração... E ele que estava tão tranquilo, no Ramalhete, na sua poltrona, sorrindo a tudo, numa deliciosa lassidão!
Tomou-lhe a mão, querendo calma-la, apiedado, e já impaciente.
- Realmente não tem razão. É absurdo... Tudo isto é para seu bem...
Ela leve enfim um movimento, enxugou os olhos, assoou-se doloridamente por entre longos soluços... E de repente, num arranque de paixão, atirou-lhe os braços ao pescoço, prendendo-se a ele com desespero, esmagando-o contra o seu seio.
- Oh meu amor, não me deixes, não me deixes! Se tu soubesses! És a única felicidade que eu tenho na vida... Eu morro, eu mato-me!... Que te fiz eu? Ninguém sabe do nosso amor... E que soubesse! Por ti sacrifico tudo, vida, honra, tudo! tudo!...
Molhava-lhe a face com o resto das suas lágrimas; e ele abandonava-se, sentindo aquele corpo sem colete, quente e como nú, subir-lhe para os joelhos, colar-se ao seu, num furor de o repossuir, com beijos sôfregos, furiosos, que o sufocavam... Subitamente a tipóia parou. E um momento ficaram assim - Carlos imóvel, ela caída sobre ele e arquejando.
Mas a tipóia não continuava. Então Carlos desprendeu um braço, desceu o vidro; e viu que estavam defronte do Ramalhete. O homem obedecendo à ordem, dera a volta pelo Aterro, devagar, subira a rampa, retrocedera à porta da casa. Durante um instante Carlos teve a tentação de descer, acabar ali bruscamente aquele longo tormento. Mas pareceu-lhe uma brutalidade. E desesperado, detestando-a, berrou ao cocheiro:
- Outra vez ao Aterro, anda sempre!...
A tipóia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a rolar; de novo as pedras da calçada fizeram tilintir os vidros; de novo, mais suavemente, desceram a rampa de Santos.
Ela recomeçara os seus beijos. Mas tinham perdido a chama que um instante os fizera quasi irresistiveis. Agora Carlos sentia só uma fadiga, um desejo infinito de voltar ao seu quarto, ao repouso de que ela o arrancara para o torturar com estas recriminações, estes ardores entre lágrimas... E de repente, enquanto a condessa balbuciava, como tonta, pendurada do seu pescoço, - ele viu surgir na alma, viva e resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquila àquela hora na sua sala de reps vermelho, fazendo serão, confiando nele, pensando nele, relembrando as felicidades da véspera, quando a Toca, cheia de seus amores, dormia, branca entre as árvores... Teve então horror à Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repeliu-a para o canto do coupé.
- Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas relações estão acabadas, não temos mais nada que nos dizer!
Ela ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve um riso nervoso, repeliu-o também, freneticamente, pisando-lhe o braço.
- Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brasileira! Eu conheço-a, é uma aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem lhe pague as modistas!...
Ele voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; e na tipóia escura, onde já havia um vago cheiro de verbena, os olhos de ambos, sem se verem, dardejavam o ódio que os enchia... Carlos bateu raivosamente no vidro. A tipóia não parou. E a Gouvarinho, do outro lado, furiosa, magoando os dedos, procurava descer a vidraça.
- É melhor que saia! dizia ela sufocada. Tenho horror de me achar aqui, ao seu lado! Tenho horror! Cocheiro! cocheiro!
O calhambeque parou. Carlos pulou para fora, fechou de estalo a portinhola; e sem uma palavra, sem erguer o chapéu, virou costas, abalou a grandes passadas para o Ramalhete, tremulo ainda, cheio de ideias de rancor, sob a paz da noite estrelada.
Capítulo XIV
Foi num sábado que Afonso da Maia partiu para Santa Olavia. Cedo nesse mesmo dia, Maria Eduarda, que o escolhera por ser de boa estreia, instalara-se nos Olivais. E Carlos, voltando de Santa Apolónia, onde fora acompanhar o avô, com o Ega, dizia-lhe alegremente:
- Então aqui ficamos nós sós a torrar, na cidade de mármore e de lixo...
- Antes isso, respondeu o Ega, que andar de sapatos brancos, a cismar, por entre a poeirada de Sintra!
Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao Ramalhete ao anoitecer - Baptista anunciou que o Sr. Ega tinha partido nesse momento para Sintra, levando apenas livros e umas escovas embrulhadas num jornal... O Sr. Ega tinha deixado uma carta. E tinha dito: «Baptista, vou pastar.»
A carta, a lápis, numa larga folha de almaço, dizia: «Assaltou-me de «repente, amigo, juntamente com um horror à caliça de Lisboa, uma saudade «infinita da natureza e do verde. A porção de animalidade que ainda resta no meu «ser civilizado e recivilizado precisa urgentemente de espolinhar-se na relva, beber «no fio dos regatos, e dormir balançada num ramo de castanheiro. O solicito «Baptista que me remeta amanhã pelo ónibus a mala com que eu não quis «sobrecarregar a tipóia do Mulato. Eu demoro-me apenas três ou quatro «dias. O tempo de cavaquear um bocado com o Absoluto no alto dos «Capuchos, e ver o que estão fazendo os miosótis junto à meiga fonte dos Amores...»
- Pedante! rosnou Carlos, indignado com o abandono ingrato em que o deixava o Ega. E atirando a carta:
- Baptista! O Sr. Ega diz aí que lhe mandem uma caixa de charutos, dos Imperiales. Manda-lhe antes dos Flôr de Cuba. Os Imperiales são um veneno. Esse animal nem fumar sabe!
Depois de jantar Carlos percorreu o Figaro, folheou um volume de Byron, bateu carambolas solitárias no bilhar, assobiou malagueñas no terraço - e terminou por sair, sem destino, para os lados do Aterro. O Ramalhete entristecia-o, assim mudo, apagado, todo aberto ao calor da noite. Mas insensivelmente, fumando, achou-se na rua de S. Francisco. As janelas de Maria Eduarda estavam também abertas e negras. Subiu ao andar do Cruges. O menino Victorino não estava em casa...
Amaldiçoando o Ega, entrou no Grémio. Encontrou o Taveira, de paletó ao ombro, lendo os telegramas. Não havia nada novo por essa velha Europa; apenas mais uns Nihilistas enforcados; e ele Taveira ia ao Price...
- Vem tu também daí, Carlinhos! Tens lá uma mulher bonita que se mete na água com cobras e crocodilos... Eu pelo-me por estas mulheres de bichos!... Que esta é difícil, traz um chulo... Mas eu já lhe escrevi: e ela faz-me um bocado de olho de dentro da tina.
Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo falou-lhe logo do Dâmaso. Não tornara a ver essa flor? Pois essa flor andava apregoando por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo explicações humildes, covardes... Terrível, aquele Dâmaso! Tinha figura, interior, e natureza de péla! Com quanto mais força se atirava ao chão, mais ele ressaltava para o ar, triunfante!...
- Em todo o caso é uma rês traiçoeira, e deves ter cautela com ele...
Carlos encolheu os ombros, rindo.
Não, não, dizia o Taveira muito sério, eu conheço o meu Dâmaso. Quando foi da nossa pega, em casa da Lola Gorda, ele portou-se como um poltrão, mas depois ia-me atrapalhando a vida... É capaz de tudo... Antes de ontem estava eu a cear no Silva, ele veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e começou logo com umas coisas a teu respeito, umas ameaças...
- Ameaças! Que disse ele?
- Diz que te das ares de espadachim e de valentão, mas hás-de encontrar dentro em pouco quem te ensine... Que se está aí preparando um escândalo monumental... Que se não admirará de te ver brevemente com uma boa bala na cabeça...
- Uma bala?
- Assim o disse. Tu ris, mas eu é que sei... Eu, se fosse a ti, ia-me ao Dâmaso e dizia-lhe: «Dâmasosinho, flor, fique avisado que, de ora em diante, cada vez que me suceder uma coisa desagradável, venho aqui e parto-lhe uma costela; tome as suas medidas...»
Tinham chegado ao Price. Uma multidão de domingo, alegre e pasmada, apinhava-se até ás ultimas bancadas onde havia rapazes, em mangas de camisa, com litros de vinho; e eram grossas, fartas risadas, com os requebros do palhaço, rebocado de caio e vermelhão, que tocava nos pésinhos duma voltigeuse e lambia os dedos, de olhos em alvo, num gosto de mel... Descansando na sela larga de xairel dourado, a criatura, magrinha e séria, com flores nas tranças, dava a volta devagar, ao passo dum cavalo branco, que mordia o freio, levado à mão por um estribeiro; e pela arena o palhaço lambão e néscio acompanhava-a, com as mãos ambas apertadas ao coração, numa suplica babosa, rebolando languidamente os quadris dentro das vastas pantalonas, picadas de lantejoulas. Um dos escudeiros, de calça listrada de ouro, empurrava-o, num arremedo de ciúmes; e o palhaço caia, estatelado, com um estoiro de nádegas, entre os risos das crianças e os rantantans da charanga. O calor sufocava; e as fumaraças de charuto, subindo sem cessar, faziam uma neva onde tremiam as chamas largas do gás. Carlos, incomodado, abalou.
- Espera ao menos para ver a mulher dos crocodilos! gritou ainda o Taveira.
- Não posso, cheira mal, morro!
Mas à porta, de repente, foi detido pelos braços abertos do Alencar, que chegava - com outro sujeito, velho e alto, de barbas brancas, todo vestido de luto. O poeta ficou pasmado de ver ali o de seu Carlos. Fazia-o no seu solar Santa de Olavia! Vira até nos papéis públicos...
- Não, disse Carlos, o avô é que foi ontem... Eu não me sinto ainda em disposição do ir comunicar com a natureza...
Alencar riu, levemente afogueado, com um brilho de genebra no olho cavo. Ao lado, grave, o ancião de barbas calçava as suas luvas pretas.
- Pois eu é o contrario! exclamava o poeta. Estou precisado dum banho de panteismo! A bela natureza! O prado! O bosque!... De modo que talvez me mimoseie com Sintra, para a semana. Estão lá os Cohens, alugaram uma casita muito bonita, logo adiante do Victor...
Os Cohens! Carlos compreendeu então a fuga do Ega e a «sua saudade do verde.»
- Ouve lá, dizia-lhe o poeta baixo, e puxando-o pela manga, para o lado. Tu não conheces este meu amigo? Pois foi muito de teu pai, fizemos muita troça juntos... Não era nenhum personagem, era apenas um alquilador de cavalos... Mas tu sabes, cá em Portugal, sobretudo nesses tempos, havia muita bonomia, o fidalgo dava-se com o arrieiro... Mas, que diabo, tu deves conhece-lo! É o tio do Dâmaso!
Carlos não se recordava.
- O Guimarães, o que está em Paris!
- Ah, o comunista!
- Sim, muito republicano, homem de ideias humanitárias, amigo do Gambeta, escreve no Rapel... Homem interessante!... Veio aí por causa dumas terras que herdou do irmão, desse outro tio do Dâmaso que morreu há meses... E demora-se, creio eu... Pois jantamos hoje juntos, beberam-se uns liquidas, e até estivemos a falar de teu pai... Queres tu que eu to apresente?
Carlos hesitou. Seria melhor noutra ocasião mais intima, quando pudessem fumar um charuto tranquilo, e conversar do passado...
- Valeu! Hás de gostar dele. Conhece muito Victor Hugo, detesta a padraria... Espírito largo, espírito muito largo!
O poeta sacudiu ardentemente as duas mãos de Carlos. O Sr. Guimarães ergueu de leve o seu chapéu, carregado de crepe.
Todo o caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seu pai e nesse passado, assim rememorado e estranhamente ressurgido pela presença daquele patriarca, antigo alquilador, que fizera com ele tantas troças! E isto trazia conjuntamente outra ideia, que nesses últimos dias já o atravessara, pertinaz e torturante, dando-lhe, no meio da sua radiante felicidade, um sombrio arrepio de dor... Carlos pensava no avô.
Estava agora decidido que Maria Eduarda e ele partiriam para Itália, nos fins de outubro. Castro Gomes, na sua ultima carta do Brasil, seca e pretensiosa, falava «em aparecer por Lisboa, com as elegâncias do frio, lá para meado de novembro»; e era necessário antes disso que estivessem já longe, entre as verduras da Isola Bela, escondidos no seu amor e separados por ele do mundo como pelos muros dum claustro. Tudo isto era fácil, considerado quasi legitimo pelo seu coração, e enchia a sua vida de esplendor... Somente havia nisto um espinho - o avô!
Sim, o avô! Ele partia com Maria, ele entrava na ventura absoluta; mas ia destruir de uma vez e para sempre a alegria de Afonso, e a nobre paz que lhe tornava tão bela a velhice. Homem de outras eras, austero e puro, como uma dessas fortes almas que nunca desfaleceram - o avô, nesta franca, viril, rasgada solução dum amor indominável, só veria libertinagem! Para ele nada significava o esponsal natural das almas, acima e fora das ficções civis; e nunca compreenderia essa subtil ideologia sentimental, com que eles, como todos os transviados, procuravam azular o seu erro. Para Afonso haveria apenas um homem que leva a mulher de outro, leva a filha de outro, dispersa uma família, apaga um lar, e se atola para sempre na concubinagem: todas as subtilezas da paixão, por mais finas, por mais fortes, quebrar-se-iam, como bolas de sabão, contra as três ou quatro ideias fundamentais de Dever, de Justiça, de Sociedade, de Família, duras como blocos de mármore, sobre que assentara a sua vida quasi durante um século... E seria para ele como o horror duma fatalidade! Já a mulher de seu filho fugira com um homem, deixando atrás de si um cadáver; seu neto agora fugia também, arrebatando a família de outro: é a história da sua casa tornava-se assim uma repetição de adultérios, de fugas, de dispersões, sob o bruto aguilhão da carne!... Depois as esperanças que Afonso fundara nele - considera-las-hia tombadas, mortas no lodo! Ele passava a ser para sempre, na imaginação angustiada do avô, um foragido, um inutilizado, tendo partido todas as raizes que o prendiam ao seu solo, tendo abdicado toda a acção que o elevaria no seu país, vivendo por hotéis de refúgio, falando línguas estranhas, entre uma família equivoca crescida em torno dele como as plantas de uma ruína... Sombrio tormento, implacável e sempre presente, que consumiria os derradeiros anhos do pobre avô!... Mas, que podia ele fazer? Já o dissera ao Ega. A vida é assim! Ele não tinha o heroismo nem a santidade que tornam fácil o sacrifício... E depois os dissabores do avô, de que provinham? De preconceitos. E a sua felicidade, justo Deus, tinha direitos mais largos, fundados na natureza!... chegara ao fim do Aterro. O rio silencioso fundia-se na escuridão. Por ali entraria em breve do Brasil, o outro - que nas suas cartas se esquecia de mandar um beijo a sua filha! Ah, se ele não voltasse! Uma onda providencial podia leva-lo... Tudo se tornaria tão fácil, perfeito e límpido! De que servia na vida esse ressequido? Era como um saco vazio que caísse ao mar! Ah, se ele morresse!... E esquecia-se, enlevado numa visão em que a imagem de Maria o chamava, o esperava, livre, serena, sorrindo e coberta de luto...
No seu quarto, Baptista, vendo-o atirar-se para uma poltrona com um suspiro de fadiga, de desconsolação, - disse, depois de tossir risonhamente, e dando mais luz ao candeeiro:
- Isto agora, sem o Sr. Ega, parece um bocadinho mais só...
- Está só, está triste, murmurou Carlos. É necessário sacudirmo-nos... Eu já te disse que talvez fôssemos viajar este inverno...
O menino não lhe tinha dito nada.
- Pois talvez vamos a Itália... Apetece-te voltar a Itália?
Baptista reflectiu.
- Eu, da outra vez não vi o Papa... E antes de morrer não se me dava de ver o Papa...
- Pois sim, há de se arranjar isso, hás-de ver o Papa.
Baptista, depois dum silêncio, perguntou, lançando um olhar ao espelho:
- Para ver o Papa vai-se de casaca, creio eu?
- Sim, recomendo-te a casaca... O que tu devias ter, para esses casos, era um habito de Cristo... Hei de ver se te arranjo um habito de Cristo.
Baptista ficou um instante assombrado. Depois fez-se escarlate, de emoção:
- Muito agradecido a V. Exc.ª Há por aí gente que o tem, ainda talvez com menos merecimentos que eu... Dizem que até há barbeiros...
- Tens razão, replicou Carlos muito sério. Era uma vergonha. O que hei de ver se te arranjo com efeito é a comenda da Conceição.
Todas as manhãs, agora, Carlos percorria o poeirento caminho dos Olivais. Para poupar aos seus cavalos a soalheira ia na tipóia do Mulato, o batedor favorito do Ega - que recolhia a parelha na velha cavalariça da Toca, e, até à hora em que Carlos voltava ao Ramalhete, vadiava pelas tabernas.
Ordinariamente ao meio dia, ao acabar de almoçar, Maria Eduarda, ouvindo rodar o trem na estrada silenciosa, vinha esperar Carlos à porta da casa, no topo dos degraus ornados de vasos e resguardados por um fresco toldo de fazenda cor de rosa. Na quinta usava sempre vestidos claros; ás vezes trazia, à antiga moda espanhola, uma flor entre os cabelos; o forte e fresco ar do campo avivava com um brilho mais quente o mate ebúrneo do seu rosto; - e assim, simples e radiante, entre sol e verdura, ela deslumbrava Carlos cada dia com um encanto inesperado e maior. Cerrando o portão de entrada, que rangia nos gonzos, Carlos sentia-se logo envolvido num «extraordinário conforto moral», como ele dizia, em que todo o seu ser se movia mais facilmente, fluidamente, numa permanente impressão de harmonia e doçura... Mas o seu primeiro beijo era para Rosa, que corria pela rua de acácias ao seu encontro, com uma onda de cabelo negro a bater-lhe os ombros, e Niniche ao lado, pulando e ladrando de alegria. Ele erguia Rosa ao colo. Maria de longe sorria-lhes, sob o toldo cor de rosa. Em redor tudo era luminoso, familiar e cheio de paz.
A casa dentro resplandecia com um arranjo mais delicado. Já se podia usar o salão nobre, que perdera o seu ar rígido de museu, exalando a tristeza dum luxo morto: as flores que Maria punha nos vasos, um jornal esquecido, as lãs de um bordado, o simples roçar dos seus frescos vestidos, tinham comunicado já um subtil calor de vida e de aconchego aos mais empertigados contadores do tempo de Carlos V, revestidos de ferro brunido: - e era ali que eles ficavam conversando enquanto não chegava a hora das lições de Rosa.
A essa hora aparecia miss Sarah, séria e recolhida - sempre de preto, com uma ferradura de prata em broche sobre o colarinho direito de homem. Recuperara as suas cores fortes de boneca, e as pestanas baixas tinham uma timidez mais virginal sob o liso dos bandós puritanos. Gordinha, com o peito de pomba farta estalando dentro do corpete severo, mostrava-se toda contente da vida calma e lenta de aldeia. Mas aquelas terras trigueiras de olivedo não lhe pareciam campo: «é muito seco, é muito duro,» dizia ela, com uma indefinida saudade dos verdes molhados da sua Inglaterra, e dos céus de névoa, cinzentos e vagos.
Davam duas horas; e começavam logo nos quartos de cima as longas lições de Rosa. Carlos e Maria iam então refugiar-se numa intimidade mais livre, no quiosque japonês, que uma fantasia de Craft, o seu amor do Japão, construíra ao pé da rua de acácias, aproveitando a sombra e o retiro bucólico de dois velhos castanheiros. Maria afeiçoara-se àquele recanto, chamava-lhe o seu pensadoiro. Era todo de madeira, com uma só janelinha redonda, e um telhado agudo à japonesa, onde roçavam os ramos - tão leve que através dele nos momentos de silêncio se sentiam piar as aves. Craft forrára-o todo de esteiras finas da índia; uma mesa de charão, algumas faianças do Japão, ornavam-no sobriamente; o tecto não se via, oculto por uma colcha de seda amarela, suspensa pelos quatro cantos, em laços, como o rico dossel de uma tenda; - e todo o ligeiro quiosque parecia ter sido armado só com o fim de abrigar um divã baixo e fofo, duma languidez de serralho, profundo para todos os sonhos, amplo para todas as preguiças...
Eles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na presença de miss Sarah, Maria Eduarda com um bordado ou uma costura. Mas bordado e livro caiam logo no chão - e os seus lábios, os seus braços uniam-se arrebatadamente. Ela escorregava sobre o divã: Carlos ajoelhava numa almofada, tremulo, impaciente depois da forçada reserva diante de Rosa e diante de Sarah - e ali ficava, abraçado à sua cintura, balbuciando mil coisas pueris e ardentes, por entre longos beijos que os deixavam frouxos, com os olhos cerrados, numa doçura de desmaio. Ela queria saber o que ele tinha feito durante a longa, longa noite de separação. E Carlos nada tinha a contar senão que pensara nela, que sonhara com ela... Depois era um silêncio: os pardais piaram, as pombas arrulhavam por cima do leve telhado: e Niniche, que os acompanhava sempre, seguia os seus murmúrios, os seus silêncios, enroscada a um canto, com um olho negro, reluzindo desconfiadamente por entre as repas prateadas.
Fora, por aqueles dias de calma, sem aragem, a quinta seca, dum verde empoeirado, dormia com as folhagens imóveis, sob o peso do sol. Da casa branca, através das persianas fechadas, vinha apenas o som amodorrado das escalas que Rosa fazia no piano. E no quiosque havia também um silêncio satisfeito e pleno - somente quebrado por algum doce suspiro de lassidão que saia do divã, de entre as almofadas de seda, ou algum beijo mais longo e dum remate mais profundo... Era Niniche que os tirava daquele suave entorpecimento, farta de estar ali quieta, encerrada entre as madeiras quentes, num ar mole já repassado desse aroma indefinido em que havia jasmim.
Lenta, e passando as mãos no rosto Maria erguia-se - mas para cair logo aos pés de Carlos, no seu reconhecimento infinito... Meu Deus, o que lhe custava então esse momento de separação! Para que havia de ser assim? Parecia tão pouco natural, esposos como eram, que ela ficasse ali toda a noite, sozinha, com o seu desejo dele, e ele fosse, sem as suas carícias, dormir solitariamente ao Ramalhete!... E ainda se demoravam muito tempo, numa mudez de êxtase, em que os olhos húmidos, trespassando-se, continuavam o beijo insaciado que morrera nos seus lábios cansados. Era Niniche que os fazia sair por fim trotando impacientemente da porta para o divã, rosnando, ameaçando ladrar.
Muitas vezes ao recolherem Maria tinha uma inquietação. Que pensaria miss Sarah desta sesta assim enclausurada, sem um rumor, com a janela do pavilhão cerrada? Melanie, desde pequena ao serviço de Maria, era uma confidente: o bom Domingos, um imbecil, não contava: mas miss Sarah?... Maria confessava sorrindo que se sentia um pouco humilhada, ao encontrar depois à mesa os cândidos olhos da inglesa sob os seus bandós virginais... Está claro! se a boa miss tivesse a ousadia de resmungar ou franzir de leve a testa, recebia logo secamente a sua passagem no Royal Mail para Southampton! Rosa não a lamentaria, Rosa não lhe tinha afeição. Mas, enfim, era tão séria, admirava tanto a senhora! Ela não gostava de perder a admiração duma rapariga tão séria. E assim decidiram despedir miss Sarah, regiamente paga, e substitui-la, mais tarde, em Itália, por uma governante alemã, para quem eles fossem como casados, «Monsieur et Madame...»
Mas pouco a pouco o desejo duma felicidade mais intima, mais completa, foi crescendo neles. Não lhes bastava já essa curta manhã no divã com os pássaros cantando por cima, a quinta cheia de sol, tudo acordado em redor: apeteciam o longo contentamento duma longa noite, quando os seus braços se pudessem enlaçar sem encontrar o estofo dos vestidos, e tudo dormisse em torno, os campos, a gente e a luz... De resto era bem fácil! A sala de tapeçarias, comunicado com a alcova de Maria, abriu sobre o jardim por uma porta envidraçada; a governante, os criados, subiam ás dez horas para os seus quartos no andar alto; a casa adormecia profundamente; Carlos tinha uma chave do portão; e o único cão, Niniche, era o confidente fiel dos seus beijos...
Maria desejava essa noite tão ardentemente como ele. Uma tarde ao escurecer, voltando dum fresco passeio nos campos, experimentaram ambos essa dupla chave - que Carlos já prometia mandar dourar: e ele ficou surpreendido ao ver que o velho portão, que ouvira sempre ranger abominavelmente, rolava agora nos gonzos com um silêncio oleoso.
Veio nessa mesma noite - tendo deixado na vila para o levar ao amanhecer a caleche do Mulato, um batedor discreto, que ele cevava de gorjetas. O céu, mole e abafado, não tinha uma estrela; e sobre o mar lampejava a espaços, mudamente, a lívidez dum relâmpago. Caminhando com inúteis cautelas rente do muro Carlos sentia, nesta proximidade duma posse tão desejada, uma melancolia, cerrada de ansiedade, que vagamente o acobardava. Abriu quasi a tremer o portão: e mal dera alguns passos estacou, ouvindo ao fundo Niniche ladrar furiosamente. Mas tudo emudeceu; e da janela do canto, sobre o jardim, surgiu uma claridade que o sossegou. Foi encontrar Maria, com um roupão de rendas, junto da porta envidraçada, sufocando quasi entre os braços Niniche que ainda rosnava. Estava toda medrosa, numa impaciência de o sentir ao seu lado: e não quis recolher logo: um momento ficaram ali, sentados nos degraus, com Niniche que aquietara e lambia Carlos. Tudo em redor era como uma infinita mancha de tinta; só lá em baixo, perdida e mortiça, surdia da treva alguma luzinha vacilando no alto dum mastro. Maria, aconchegada a Carlos, refugiada nele, deu um longo suspiro: e os seus olhos mergulhavam inquietos naquela mudez negra, onde os arbustos familiares do jardim, toda a quinta, parecia perder a realidade, sumida, diluída na sombra.
- Porque não havemos de partir já para a Itália? perguntou ela de repente, procurando a mão de Carlos. Se tem de ser, porque não há de ser já?... Escusávamos de ter estes segredos, estes sustos!
- Sustos de que, meu amor? Estamos aqui tão seguros como na Itália, como na China... De resto podemos partir mais depressa, se quiseres... Dize tu um dia, marca um dia!
Ela não respondeu, deixando cair docemente a cabeça sobre o ombro de Carlos. Ele acrescentou, devagar:
- Em todo o caso, compreendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olavia, ver o avô...
Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridão como recebendo dela o presságio dum futuro, onde tudo seria confuso e escuro também.
- Tu tens Santa Olavia, tens teu avô, tens os teus amigos... Eu não tenho ninguém!
Carlos estreitou-a a si, enternecido.
- Não tens ninguém! Isso dito a mim! Nem chega a ser injustiça, nem chega a ser ingratidão! É nervoso; e é também o que os ingleses chamam a «impudente adulteração dum facto.»
Ela ficara aninhada no peito de Carlos, como desfalecida.
- Não sei porque, queria morrer...
Um largo brilho de relâmpago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova. Os molhos de velas de duas serpentinas, batendo os damascos e os cetins amarelos, embebiam o ar tépido, onde errava um perfume, numa refulgência ardente de sacrário: e as bretanhas, as rendas do leito já aberto punham uma casta alvura de neve fresca nesse luxo amoroso e cor de chama. Fora, para os lados do mar, um trovão rolou lento e surdo. Mas Maria já o não ouviu, caída nos braços de Carlos. Nunca o desejara, nunca o adorara tanto! Os seus beijos ansiosos pareciam tender mais longe que a carne, trespassa-lo, querer sorver-lhe a vontade e a alma: - e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabelos soltos, divina na sua nudez, ela lhe apareceu realmente como a Deusa que ele sempre imaginara, que o arrebatava enfim, apertado ao seu seio imortal, e com ele pairava numa celebração de amor, muito alto, sobre nuvens de ouro...
Quando saiu, ao amanhecer, chovia. Foi encontrar o Mulato a dormir numa taberna, bêbedo. Teve de o meter dentro do carro; e foi ele que governou até ao Ramalhete, embrulhado numa manta do taberneiro, encharcado, cantarolando, esplendidamente feliz.
Passados dias, passeando com Maria nos arredores da Toca, Carlos reparou numa casita, à beira da estrada, com escritos: e veio-lhe logo a ideia de a alugar, para evitar aquela desagradável partida de madrugada com o Mulato estremunhado, borracho, despedaçando o trem pelas calçadas. Visitaram-na: havia um quarto largo, que com tapete e cortinas podia dar um refugio confortável. Tomou-a logo - e Baptista veio ao outro dia, com móveis numa carroça, arranjar este novo ninho. Maria disse, quasi triste:
- Mais outra casa!
- Esta, exclamou Carlos rindo, é a ultima! Não, é a penúltima... Temos ainda a outra, a nossa, a verdadeira, lá longe, não sei onde...
Começaram a encontrar-se todas as noites. Ás nove e meia, pontualmente, Carlos deixava a Toca, com o seu charuto aceso: e Domingos, adiante, de lanterna, vinha fechar o portão, tirar a chave. Ele recolhia devagar à sua «choupana» onde o servia um criadito, filho do jardineiro do Ramalhete. Sobre um tapete solto, deitado no velho soalho, havia apenas, além do leito, uma mesa, um sofá de riscadinho, duas cadeiras de palha; e Carlos entretinha as horas que o separavam ainda de Maria, escrevendo para Santa Olavia e sobretudo ao Ega, que se eternizava em Sintra.
Recebera duas cartas dele, falando quasi somente do Dâmaso. O Dâmaso aparecia em toda a parte com a Cohen; o Dâmaso tornara-se grotesco em Sintra, numa corrida de burros; o Dâmaso arvorara capacete e véu em Sitiais; o Dâmaso era uma besta iramundo; o Dâmaso, no pátio do Victor, de perna traçada, dizia familiarmente «a Rachel»; era um dever de moralidade publica dar bengaladas no Dâmaso!... Carlos encolhia os ombros, achando estes ciúmes indignos do coração do Ega. E então por quem! Por aquela lambisgóia de Israel, melada e molenga, sovada a bengala! «Se com efeito, escrevera ele ao Ega, ela desceu de ti até ao Dâmaso, tens só a fazer como se fosse um charuto que te caísse à lama: não o podes naturalmente levantar: deves deixar fuma-lo em paz ao garoto que o apanhou: enfurecer-te com o garoto ou com o charuto, é de imbecil.» Mas ordinariamente, quando respondia, falava só ao Ega dos Olivais, dos seus passeios com Maria, das conversas dela, do encanto dela, da superioridade dela... Ao avô não achava que dizer; nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recomendava-lhe que não se fatigasse, mandava saudades para os hospedes, e dava-lhe recados do Manuelzinho- que ele nunca via.
Quando não tinha que escrever, estirava-se no sofá, com um livro aberto, os olhos no ponteiro do relógio. Á meia noite saia, encafuado num gabão de Aveiro, e de varapau. Os seus passos ressoavam, solitários na mudez dos campos, com uma indefinida melancolia de segredo e de culpa...
Numa dessas noites, de grande calor, Carlos cansado adormeceu no sofá: e só despertou, em sobressalto, quando o relógio na parede dava tristemente duas horas. Que desespero! Aí ficava perdida a sua noite de amor! E Maria decerto à espera, angustiada, imaginando desastres!... Agarrou o cajado, abalou, correndo pela estrada. Depois, ao abrir subtilmente o portão da quinta, pensou que Maria teria adormecido: Niniche podia ladrar: os seus passos, entre as acácias, abafaram-se, mais cautelosos. E de repente sentiu ao lado, sob as ramagens, vindo do chão, de entre a erva, um resfolgar ardente de homem, a que se misturavam beijos. Parou, varado: e o seu ímpeto logo foi esmagar a cacete aqueles dois animais, enroscados na relva, sujando brutamente o poético retiro dos seus amores. Uma alvura de saia moveu-se no escuro: uma voz soluçava, desfalecida - oh yes, oh yes... Era a inglesa!
Oh santo Deus, era a inglesa, era miss Sarah! Apagando os passos, atordoado, Carlos escoou-se pelo portão, cerrou-o mansamente, foi esperar adiante, num recanto do muro, sob as ramarias duma faia, sumido na sombra. E tremia de indignação. Era preciso contar imediatamente a Maria aquele grande horror! Não queria que ela consentisse um momento mais essa impura fêmea, junto de Rosa, roçando a candidez do seu anjo... Oh, era pavorosa uma tal hipocrisia, assim astuta e metódica, sem se desconcertar jamais! Havia dias apenas, vira a criatura desviar os olhos duma gravura de Ilustração, onde dois castos pastores se beijavam num arvoredo bucólico! E agora rugia, estirada na erva!
Na estrada escura, do lado do portão, brilhou um lume de cigarro. Um homem passou, forte e pesado, com uma manta aos ombros. Parecia um jornaleiro. A boa miss Sarah não escolhera! Bem lavada, toda correcta, com os seus bandós puritanos, aceitava um qualquer, rude e sujo, desde que era um macho! E assim os embaíra, meses, com aquelas suas duas existências, tão separadas, tão completas! De dia virginal, severa, corando sempre, com a Bíblia no cesto da costura: à noite a pequena adormecia, todos os seus deveres sérios acabavam, a santa transformava-se em cabra, chale aos ombros, e lá ia para a relva, com qualquer!... Que belo romance para o Ega!
Voltou; tornou a abrir devagarinho o portão: de novo subiu, amolecendo os passos, a sombria rua de acácias. Mas agora ia sentindo uma hesitação em contar a Maria aquele horror. A seu pesar pensava que também Maria o esperava, com o leito aberto, no silêncio da casa adormecida; e que também ele penetrava ali, as escondidas, como o homem da manta... De certo era bem diferente! Toda a imensurável diferença que vai do divino ao bestial... E todavia receava despertar os melindrosos escrúpulos de Maria, mostrando-lhe, paralelo ao seu amor cheio de requintes e passado entre brocados cor de ouro, aquele outro rude amor, secreto e ilegítimo como o dela, e arrastado brutamente na relva... Era como mostrar-lhe um reflexo da sua própria culpa, um pouco esfumada, mais grosseira, mas parecida nos seus contornos, lamentavelmente parecida... Não, não diria nada. E a pequena?... Oh, nas suas relações com Rosa a criatura continuaria a ser, como sempre, a puritana laboriosa, grave e cheia de ordem.
A porta envidraçada sobre o jardim tinha ainda luz: ele atirou aos vidros uma pouca de terra solta, depois bateu de leve. Maria apareceu, mal embrulhada num roupão, juntando os cabelos que se tinham desenrolado, e meia adormecida.
- Porque vieste tão tarde? Carlos beijou longamente os seus belos olhos pesados, quasi cerrados.
- Adormeci estupidamente, a ler... Depois, quando entrei pareceu-me ouvir passos na quinta, andei a rebuscar... Era imaginação, tudo deserto.
- Precisávamos ter um cão de fila, murmurou ela, espreguiçando-se.
Sentada à beira do leito, com os braços caídos e adormentados, sorria da sua preguiça.
- Estás tão fatigada, filha! queres tu que me vá embora?...
Ela puxou-o para o seu seio perfumado e quente.
- Je veux que tu m'aimes beaucoup, beaucoup, et longtemps...
Ao outro dia Carlos não fora a Lisboa, e apareceu cedo na Toca. Melanie, que andava espanejando o quiosque, disse-lhe que Madame, um pouco cansada, tinha justamente tomado o seu chocolate na cama. Ele entrou no salão: defronte da janela aberta, sentada no banco de cortiça, miss Sarah costurava, à sombra das árvores.
- Good morning, disse-lhe Carlos, chegando-se ao peitoril, todo curioso de a observar.
- Good morning, sir, respondeu ela com o seu ar modesto e tímido.
Carlos falou do calor. Miss Sarah já àquela hora o achava intolerável. Felizmente a vista do rio, lá em baixo, refrescava...
Sobretudo a noite passada, insistiu Carlos acendendo a cigarrete, fora tão abafada! Ele mal pudera dormir. E ela?
Oh, ela dormira dum sono só. Carlos quis saber se tivera bonitos sonhos.
- Oh yes, sir.
- Oh yes! mas agora um yes púdico, sem gemidos, com os olhos baixos. E tão correcta, tão pregada, fresca como se nunca tivesse servido!... Positivamente era extraordinária! E Carlos, torcendo o bigode, pensava que ela devia ter um seiosinho bem alvo e bem redondinho!
Assim ia passando o verão nos Olivais. No começo de setembro, Carlos soube por uma carta do avô que Craft devia chegar a Lisboa, num sábado, ao Hotel Central: e correu lá cedo, logo nessa manhã, a ouvir as novidades de Santa Olavia. Achou Craft já a pé, diante do espelho, fazendo a barba. A um canto do sofá, Euzebiosinho, que viera na véspera à noite de Sintra e estava também no Hotel, limpava as unhas com um canivete, em silêncio, coberto de negro.
Craft vinha encantado com Santa Olavia. Nem compreendia como Afonso, beirão forte, tolerava a rua de S. Francisco, e o quintalejo abafado do Ramalhete. Tinha-se passado regiamente! O avô, cheio de saúde, duma hospitalidade que lembrava Abraão e a Bíblia. O Sequeira óptimo comendo tanto que ficava inútil depois de jantar, a estoirar e a gemer no fundo duma poltrona. Lá conhecera o velho Travassos, que falava sempre com os olhos cheios de lágrimas do «talento do seu caro colega Carlos.» E o marquês esplêndido, com abraços de primo a todos os fidalgotes de Lamego, e apaixonado por uma barqueira... De resto soberbos jantares, alguns tiros aos coelhos, uma romaria, danças de raparigas no adro, guitarradas, esfolhadas, todo o doce idílio português...
- Mas a respeito de Santa Olavia temos a falar mais seriamente, disse por fim Craft, entrando na alcova, a ensaboar a cabeça.
- E tu, perguntou então Carlos, voltando-se para o Euzebiosinho. Tens estado em Sintra, hein? Que se faz lá?... O Ega?
O outro ergueu-se guardando o canivete, ajeitando as lunetas.
- Lá está no Victor, muito engraçado, comprou um burro... Lá está o Dâmaso também... Mas esse pouco se vê, não larga os Cohens... Enfim tem-se passado menos mal, com bastante calor...
- Tu estavas outra vez com a mesma prostituta, a Lola?
Euzebiosinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sério! O Palma é que lá tinha aparecido com uma rapariga portuguesa... Tinha agora um jornal, A Corneta do Diabo.
- A Corneta...?
- Sim, do Diabo, disse o Euzebiosinho. É um jornal de pilhérias, de picuinhas... Ele já existia, chamava-se o Apito; mas agora passou para o Palma; ele vai-lhe aumentar o formato, e meter-lhe mais chalaça...
- Enfim, disse Carlos, qualquer coisa sebácea e imunda como ele...
Craft reapareceu, enxugando a cabeça. E enquanto se vestia, falou de uma viagem que agora o tentava, que estivera planeando em Santa Olavia. Como já não tinha a Toca, e a sua casa ao pé do Porto necessitava longas obras, ia passar o inverno ao Egipto, subindo o Nilo, em comunicação espiritual com a antiguidade Faraónica. Depois talvez se adiantasse até Bagdad, a ver o Eufrates, e os sítios de Babilónia...
- Por isso eu lhe vi ali, na mesa, exclamou Carlos, um livro, Ninive e Babilónia... Que diabo, você gosta disso? Eu tenho horror a raças e a civilizações defuntas... Não me interessa senão a Vida.
- É que você é um sensual, disse Craft. E a propósito de sensualidade e de Babilónia, quer vir você almoçar ao Bragança? Eu tenho de lá encontrar um inglês, o meu homem das minas... Mas havemos de ir pela rua do Ouro, que quero trepar um instante à caverna do meu procurador... E a caminho, que é meio dia!
Deixaram o Euzebiosinho, em baixo na sala, ajeitando as suas lúgubres lunetas negras diante dos telegramas. E apenas saíra o pátio, Craft travou do braço de Carlos, e disse-lhe que as coisas sérias a respeito de Santa Olavia - era o visível, profundo desgosto do avô por ele não ter lá aparecido.
- Seu avô não me disse nada, mas eu sei que ele está muitíssimo magoado com você. Não há desculpa, são umas horas de viagem... Você sabe como ele o adora... Que diabo! Est modus in rebus.
- Com efeito, murmurou Carlos. Eu devia ter lá ido... Que quer você, amigo?... Enfim acabou-se, é necessário fazer um esforço!... Talvez parta para a semana com o Ega.
- Sim, homem, dê-lhe esse alegrão... Esteja lá umas semanas...
- Est modus in rebus. Hei de ver se lá estou uns dias.
A caverna do procurador era defronte do Monte-Pio. Carlos esperava, havia momentos, dando por diante das lojas uma volta lenta - quando de repente avistou Melanie, a sair o portão do Monte-Pio, com uma matrona gorda, de chapéu roxo. Surpreendido, atravessou a rua. Ela estacou como apanhada, fazendo-se toda vermelha; e nem deixou vir a pergunta; balbuciou logo que Madame lhe dera licença para vir a Lisboa, e ela andava acompanhando aquela amiga... Uma velha caleche, de parelha branca, estava encalhada ali, contra o passeio. Melanie saltou para dentro, à pressa. A traquitana rodou aos solavancos para o Terreiro do Paço.
Carlos via-a desaparecer, pasmado. E Craft, que voltara, olhando também, reconheceu no lamentável calhambeque a caleche do Torto, dos Olivais, onde ele ás vezes costumava vir «janotar a Lisboa».
- Era alguém lá da Toca? perguntou.
Uma criada, disse Carlos, ainda espantado daquele estranho embaraço de Melanie.
E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a voz no rumor da rua:
- Ouça lá! O Euzebiosinho disse-lhe alguma coisa a meu respeito, Craft?
O outro confessou que Euzebiosinho, apenas lhe aparecera no quarto, rompera logo, mascando as palavras, a informa-lo da misteriosa vida de Carlos nos Olivais...
- Mas eu fi-lo calar, acrescentou Craft, declarando-lhe que era tão pouco curioso que nem mesmo quisera ler nunca a História Romana... Em todo o caso você deve ir a Santa Olavia.
Carlos, com efeito, logo nessa noite falou a Maria da visita que devia ao avô. Ela, muito séria, aconselhou-lha também, arrependida de o ter retido assim, egoisticamente e tanto tempo, longe dos outros que o amavam.
- Mas ouve, querido, não é por muito tempo, não?
- Por dois ou três dias, quando muito. E naturalmente, trago até o avô. Não está lá a fazer nada, e eu não estou para a maçada de voltar lá...
Maria então lançou-lhe os braços ao pescoço, e baixo, timidamente, confessou-lhe um grande desejo que tinha... Era ver o Ramalhete! Queria visitar os quartos dele, o jardim, todos esses recantos, onde tantas vezes ele pensara nela, e se desesperara, sentindo-a distante e inacessível...
- Dize, queres? Mas é necessário que seja antes de vir teu avô. Queres?
- Acho um encanto! Há só um perigo. É eu não te deixar sair mais e ficar a devorar-te na minha caverna.
- Prouvera a Deus!
Combinaram então que ela fosse jantar ao Ramalhete, no dia da partida de Carlos para Santa Olavia. Á noitinha levava-o no coupé a Santa Apolónia; depois seguia para os Olivais.
Foi no sábado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e o seu coração batia com a deliciosa perturbação dum primeiro encontro, quando sentiu parar a carruagem de Maria e os seus vestidos escuros roçarem o veludo cor de cereja que forrava a escada discreta dos seus quartos. O beijo que trocaram, na ante-câmara, teve a profunda doçura dum primeiro beijo!
Ela foi logo ao toucador tirar o chapéu, dar um jeito ao cabelo. Ele não cessava de a beijar; abraçava-a pela cinta; e com os rostos juntos sorriam para o espelho, enlevados no brilho da sua mocidade. Depois, impaciente, curiosa, ela percorreu os quartos, miudamente, até à alcova de banho; leu os títulos dos livros, respirou o perfume dos frascos, abriu os cortinados de seda do leito... Sobre uma cómoda Luís XV havia uma salva de prata, transbordando de retratos que Carlos se esquecera de esconder, a coronela de hussards de amazona, madame Rughel decotada, outras ainda. Ela mergulhou as mãos, com um sorriso triste, na profusão daquelas recordações... Carlos, rindo, pediu-lhe que não olhasse «esses enganos do seu coração».
Porque não? dizia Maria, séria. Sabia bem que ele não descera das nuvens, puro como um serafim. Havia sempre fotografias no passado dum homem. De resto tinha a certeza que nunca amara as outras como a sabia amar a ela.
- Até é uma profanação falar em amor quando se trata dessas coisas de acaso, murmurou Carlos. São quartos de estalagem onde se dorme uma vez...
No entanto Maria considerava longamente a fotografia da coronela de hussards. Parecia-lhe bem linda! Quem era? Uma francesa?
- Não, de Viena. Mulher dum correspondente meu, homem de negócios... Gente tranquila, que vivia no campo...
- Ah, Vienense... Dizem que tem um grande encanto as mulheres de Viena!
Carlos tirou-lhe a fotografia da mão. Para que haviam de falar de outras mulheres? Existia em todo o vasto mundo uma mulher única, e ele tinha-a ali abraçada sobre o seu coração.
Foram então percorrer todo o Ramalhete, até ao terraço. Ela gostou sobretudo do escritório de Afonso, com os seus damascos de câmara de prelado, a sua feição severa de paz estudiosa.
- Não sei porque, murmurou dando um olhar lento ás estantes pesadas e ao Cristo na cruz, não sei porque, mas teu avô faz-me medo!
Carlos riu. Que tonteira! O avô se a conhecesse, fazia-lhe logo a corte rasgadamente... O avô era um santo! E um lindo velho!
- Teve paixões?
- Não sei, talvez... Mas creio que o avô foi sempre um puritano.
Desceram ao jardim, que lhe agradou também, quieto e burguês, com a sua cascatasinha chorando num ritmo doce. Sentaram-se um instante sob o velho cedro, junto a uma mesa rústica de pedra, onde estavam entalhadas letras mal distinctas e uma data antiga; o chalrar das aves nos ramos pareceu a Maria mais doce que o de todas as outras aves que ouvira; depois arranjou um ramo para levar como relíquia.
Mesmo em cabelo foram ver defronte as cocheiras: o guarda-portão ficou de boné na mão, embasbacado para aquela senhora tão linda, tão loira, a primeira que via entrar no Ramalhete! Maria acariciou os cavalos, e fez uma festa grata e mais longa à Tunante, que tantas vezes levara Carlos à rua de S. Francisco. Ele via nestas simples coisas as graças incomparáveis duma esposa perfeita.
Recolheram pela escada particular de Carlos - que Maria achava «misteriosa» com aqueles veludos grossos cor de cereja, forrando-a como um cofre, e abafando todo o rumor de saias. Carlos jurou que nunca ali passara outro vestido - a não ser o do Ega, uma vez, mascarado de varina.
Depois deixou-a no quarto, um momento para ir dar ordens ao Baptista: mas quando voltou encontrou-a a um canto do sofá, tão descaída, tão desanimada, que lhe arrebatou as mãos, cheio de inquietação.
- Que tens, amor? Estás doente?
Ela ergueu lentamente os olhos que brilhavam numa névoa de lágrimas.
Pensar que tu vais deixar por mim esta linda casa, o teu conforto, a tua paz, os teus amigos... É uma tristeza, tenho remorsos!
Carlos ajoelhara ao seu lado, sorrindo dos seus escrúpulos, chamando-lhe tonta, secando-lhe num beijo as lágrimas que rolavam... Considerava-se ela então valendo menos que a cascata do jardim e alguns tapetes usados?...
- O que eu tenho pena é de te sacrificar tão pouco, minha querida Maria, quando tu sacrificas tanto!
Ela encolheu os ombros, amargamente.
- Eu!
Passou-lhe as mãos entre os cabelos, puxou-o brandamente para o seu seio - e dizia, baixo, como falando ao seu próprio coração, acalmando-lhe as incertezas e as dúvidas:
- Não, com efeito, nada vale no mundo senão o nosso amor! Nada mais vale! Se ele é verdadeiro, se é profundo, tudo mais é vão, nada mais importa...
A sua voz morreu entre os beijos de Carlos, que a levava abraçada para o leito - onde tentas vezes desesperava dela como duma deusa intangível.
Ás cinco horas pensaram em jantar. A mesa fora posta numa saleta que Carlos quisera em tempo revestir de colchas de cetim cor de pérola e botão de ouro. Mas não estava ainda arranjada; as paredes conservavam o seu papel verde-escuro; e Carlos pusera ali ultimamente o retrato de seu pai - uma teia banal, representando um moço pálido, de grandes olhos, com luvas de camurça amarela e um chicote na mão.
Era Baptista que os servia, já com um fato claro de viagem. A mesa, redonda e pequena, parecia uma cesta de flores; o champagne gelava dentro dos baldes de prata; no aparador a travessa de arroz doce tinha as iniciais de Maria.
Aqueles lindos cuidados fizeram-na sorrir, enternecida. Depois reparou no retrato de Pedro da Maia: e interessou-se, ficou a contemplar aquela face descorada, que o tempo fizera lívida, e onde pareciam mais tristes os grandes olhos de árabe, negros e lânguidos.
- Quem é? perguntou.
- É meu pai.
Ela examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. Não achava que Carlos se parecesse com ele. E voltando-se muito séria, enquanto Carlos desarrolhava com veneração uma garrafa de velho Chambertin:
- Sabes tu com quem te pareces ás vezes?... É extraordinário, mas é verdade. Pareces-te com minha mãe!
Carlos riu, encantado duma parecença que os aproximava mais, e que o lisonjeava.
- Tens razão, disse ela, que a mamã era formosa... Pois é verdade, há um não sei quê na testa, no nariz... Mas sobretudo certos jeitos, uma maneira de sorrir... Outra maneira que tu tens de ficar assim um pouco vago, esquecido... Tenho pensado nisto muitas vezes...
Baptista entrava com uma terrina de louça do Japão. E Carlos, alegremente, anunciou um jantar à portuguesa. Mr. Antoine, o chef francês, fora com o avô. Ficara a Michaela, outra cozinheira de casa, que ele achava magnífica, e que conservava a tradição da antiga cozinha freirática do tempo do Sr. D. João V.
- Assim, para começar, minha querida Maria, aí tens tu um caldo de galinha, como só se comia em Odivelas, na cela da madre Paula, em noites de noivado místico...
E o jantar foi encantador. Quando Baptista se retirava, eles apertavam-se rapidamente a mão por cima das flores. Nunca Carlos a achara tão linda, tão perfeita: os seus olhos pareciam-lhe irradiar uma ternura maior: na singela rosa que lhe ornava o peito via a superioridade do seu gosto. E o mesmo desejo invadiu-os a ambos, de ficarem ali eternamente, naquele quarto de rapaz, com jantarinhos portugueses à moda de D. João V, servidos pelo Baptista de jaquetão.
- Estou com uma vontade de perder o comboio! disse Carlos como implorando a sua aprovação.
- Não, deves ir... é necessário não sermos egoístas... Somente não te descuides, manda-me todos os dias um grande telegrama... Que os telégrafos foram unicamente inventados para quem se ama e está longe, como dizia a mamã.
Então Carlos gracejou de novo sobre a sua parecença com a mãe dela. E baixando-se a remexer a garrafa de champagne dentro do gelo:
- É curioso não mo teres dito antes... Também tu nunca me falaste de tua mãe...
Um pouco de sangue roseou a face de Maria Eduarda. Oh, nunca falara da mamã, porque nunca viera a propósito...
- De resto não havia coisas muito interessantes a contar, acrescentou. A mamã era uma senhora da ilha da Madeira, não tinha fortuna, casou...
- Casou em Paris?
- Não, casou na Madeira com um austríaco que fora lá acompanhar um irmão tísico... Era um homem muito distinto, viu a mamã, que era lindíssima, gostaram um do outro, et voilà...
Dissera isto sem erguer os olhos do prato, lentamente, cortando uma asa de frango.
- Mas então, exclamou Carlos, se teu pai era austríaco, meu amor, tu és também austríaca... És talvez uma dessas vienenses que tu dizes que tem um tão grande encanto...
Sim, talvez, segundo essas coisas dos códigos, era austríaca. Mas nunca conhecera o pai, vivera sempre com a mamã, falara sempre português, considerava-se portuguesa. Nunca estivera na Áustria, nem sabia mesmo alemão...
- Não tiveste irmãos?
- Sim, tive, uma irmãsinha que morreu em pequena... Mas não me lembra. Tenho em Paris o retrato dela... Bem linda!
Nesse momento em baixo, na calçada, uma carruagem, a trote largo, estacou. Carlos, surpreendido, correu à janela com o guardanapo na mão.
- É o Ega! exclamou. É aquele velhaco que chega de Sintra!
Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pé, ambos se olharam, hesitando... Mas o Ega era como um irmão de Carlos. Ele esperava só que o Ega recolhesse de Sintra para o levar à Toca. Melhor seria que o encontro se desse ali, natural, franco e simples...
- Baptista! gritou Carlos, sem vacilar mais. Dize ao Sr. Ega que estou a jantar, que entre para aqui.
Maria sentara-se, vermelha, dando um jeito rápido aos ganchos do cabelo, arranjado à pressa, um pouco desmanchado.
A porta abriu-se, - e o Ega parou, assombrado, intimidado, de chapéu branco, de guarda-sol branco, e com um embrulho de papel pardo na mão.
- Maria, disse Carlos, aqui tens enfim o meu grande amigo Ega.
E ao Ega disse simplesmente:
- Maria Eduarda.
Ega ia largar atarantadamente o embrulho para apertar a mão que Maria Eduarda lhe estendia, corada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas de Sintra rolou, esmagando-se, sobre as flores do tapete. Então todo o embaraço findou através duma risada alegre - enquanto o Ega, desolado, abria os braços sobre as ruínas do seu doce.
- Tu já jantaste? perguntou Carlos.
Não, não tinha jantado. E via já ali uns ovos moles nacionais, que o encantavam, enfastiado como vinha da horrível cozinha do Victor. Oh, que cozinha! Pratos lúgubres, traduzidos do francês em calão, como as comedias do Ginásio!
- Então avança! exclamou Carlos. Depressa, Baptista!... Traze o caldo de galinha! Oh, ainda temos tempo!... Tu sabes que vou hoje para Santa Olavia?
Está claro que sabia, recebera a carta dele, e por isso viera... Mas não podia jantar ainda, assim coberto do pó da estrada, e com um jaquetão de bucólica...
- Dize que me guardem o caldo, Baptista! Olha, dize que me guardem tudo, que eu trago uma fome de pastor da Arcádia!...
O Baptista servira o café. E a carruagem da senhora, que os devia levar a Santa Apolónia, esperava já à porta com a maleta. Mas Ega agora queria conversar, afirmou que tinham tempo, tirou o relógio. Estava parado. E ele declarou logo que no campo se regulava pelo sol, como as flores e como as aves...
- Fica agora em Lisboa? perguntou-lhe Maria Eduarda.
- Não, minha senhora, só o tempo de cumprir o meu dever de cidadão, subindo duas ou três vezes o Chiado... Depois volto para a relva. Sintra começa a ser interessante para mim, agora que não está ninguém... Sintra, de verão, com burgueses, parece-me um idílio com nódoas de sebo.
Mas Baptista oferecia a Carlos a chartreuse - dizendo que s. Exc.ª não se devia demorar se não tencionava perder o comboio, de propósito. Maria ergueu-se logo para ir dentro pôr o chapéu. E os dois amigos, sós, ficaram um momento calados, enquanto Carlos acendia devagar o charuto.
- Tu quanto tempo te demoras? perguntou por fim o Ega.
- Três ou quatro dias. E tu não voltes para Sintra antes que eu chegue, precisamos comunicar... Que diabo tens tu feito lá?
O outro encolheu os ombros.
- Tenho sorvido ar puro, colhido florinhas, murmurado de vez em quando «que lindo que isto é!» etc.
Depois, debruçado sobre a mesa, picando com um palito uma azeitona:
- De resto, nada... O Dâmaso lá está! Sempre com a Cohen, como te mandei dizer... Está claro que não há nada entre eles, aquilo é só para mim, para me irritar... É um canalha aquele Dâmaso! Eu só quero um pretexto. Esgano-o!
Deu um puxão forte aos punhos, com uma cor de cólera no rosto queimado:
- Eu, está claro, falo-lhe, aperto-lhe a mão, chamo-lhe «amigo Dâmaso», etc. Mas só quero um pretexto! É necessário aniquilar aquele animal. É um dever de moralidade, de asseio publico, de gosto varrer aquela bola de lama humana!
- Quem esteve por lá mais? perguntou Carlos.
- Que te interesse?... A Gouvarinho. Mas vi-a uma só vez. Aparecia pouco, coitada, agora que andava de luto.
- De luto?
- Por ti.
Calou-se. Maria entrava, com o véu descido, acabando de apertar as luvas. Então Carlos, suspirando, resignado, estendeu os braços ao Baptista para ele lhe vestir um casaco leve de jornada. Ega ajudava, pedindo um abraço filial para Afonso, e recados para o gordo Sequeira.
Foi acompanha-los a baixo, em cabelo: e fechou ele a portinhola, prometendo a Maria Eduarda uma visita à Toca, apenas Carlos voltasse desses penhascos do Douro...
- Não vás para Sintra antes de eu voltar! gritou-lhe ainda Carlos. E a Michaela que tome conta em ti!
- Al right, al right, dizia o Ega. Boa jornada! Criado de V. Exc.ª, minha senhora... Até à Toca!
O coupé partiu. Ega subiu ao seu quarto, onde outro criado lhe estava preparando o banho. Na saleta deserta, entre as flores e os restos do jantar, as velas continuavam a arder solitárias, fazendo ressaltar no painel escuro a palidez de Pedro da Maia, e a melancolia dos seus olhos.
No sábado seguinte, perto das duas horas, Carlos e Ega, ainda à mesa do almoço, acabavam os seus charutos, falando de Santa Olavia. Carlos chegara de lá essa madrugada, só. O avô decidira ficar entre as suas velhas árvores até ao fim do outono que ia tão luminoso e tão macio...
Carlos fora-o encontrar muito alegre, muito forte - apesar de ter sido obrigado, por causa dum toque de reumatismo, a abandonar enfim o seu culto da água fria. E esta maciça, resplandecente saúde do velho fora um alívio para o coração de Carlos: parecia-lhe assim mais fácil, menos ingrata, a sua partida com Maria para Itália, em outubro. Além disso achara um truc, como ele dizia ao Ega, para realizar o supremo desejo da sua vida sem magoar o avô, sem lhe turbar a paz da velhice. Era um truc, simples. Consistia em partir ele só para Madrid, no começo duma certa «viagem de estudo», para que já preparara o avô em Santa Olavia. Maria ficava na Toca, durante um mês. Depois tomava o paquete para Bordéus: e era aí que Carlos se reunia com ela, a começarem essa existência de felicidade e romance que as flores da Itália deviam perfumar... Na primavera ele voltava a Lisboa, deixando Maria instalada no seu ninho: e então, pouco a pouco, ia revelando ao avô aquela ligação, a que o prendia a honra, e que o forçaria agora a viver regularmente longos meses numa outra terra que se tornara a pátria do seu coração. E que havia de dizer o avô? Aceitar esse romance, a que não veria os lados desagradáveis, esbatido assim pela distância e pela névoa da paixão. Seria para Afonso uma vaga e mal sabida coisa de amor que se passava em Itália... Poderia lamenta-la apenas por lhe levar pontualmente todos os anos o neto para longe; e cada ano se consolaria pensando na curta duração dos idílios humanos. De resto Carlos contava com essa larga benevolência que amolece as almas mais rígidas quando apenas alguns passos as separam do túmulo... Enfim o seu truc parecia-lhe bom. Ega, em resumo, aprovou o truc.
Depois, mais alegremente, falaram da instalação desse amor. Carlos permanecia na sua ideia romântica um cotage à beira dum lago. Mas Ega não aprovava o lago. Ter todos os dias diante dos olhos uma água sempre mansa e sempre azul, parecia-lhe perigoso para a durabilidade da paixão. Na quietação continua duma paisagem igual, dois amantes solitários, dizia ele, não sendo botânicos nem pescando à linha, vêem-se forçados a viver exclusivamente do desejo um do outro, e a tirar daí todas as suas ideias, sensações, ocupações, gracejos e silêncios... E, que diabo, o mais forte sentimento não pode dar para tanto! Dois amantes, cuja única profissão é amarem-se, deviam procurar uma cidade, uma vasta cidade, tumultuosa e criadora, onde o homem tenha durante o dia os clubs, o cavaco, os museus, as ideias, o sorriso de outras mulheres - e a mulher tenha as ruas, as compras, os teatros, a atenção de outros homens; de sorte que à noite, quando se reúnem, não tendo passado o infindável dia a observarem-se um no outro e a si próprios, trazendo cada um a vibração da vida forte que atravessaram - achem um encanto novo e verdadeiro no aconchego da sua solidão, e um sabor sempre renovado na repetição dos seus beijos...
- Eu, continuava Ega, erguendo-se, se levasse para longe uma mulher, não era para um lago, nem para a Suissa, nem para os montes da Sicília; era para Paris, para o boulevard dos Italiano, ali à esquina do Vaudevile, com janelas deitando para a grande vida, a um passo do Figaro, do Louvre, da Filosofia e da blague... Aqui tens tu a minha doutrina!... E aí temos nós o amigo Baptista com o correio.
Não era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazia numa salva: e vinha tão perturbado que anunciou «um sujeito, ali fora, na antecâmara, numa carruagem, à espera...»
Carlos olhou o bilhete, empalideceu terrivelmente. E ficou a revira-lo, lento e como atordoado, entre os dedos que tremiam... Depois, em silêncio, atirou-o ao Ega por cima da mesa.
- Caramba! murmurou Ega, assombrado.
Era Castro Gomes!
Bruscamente Carlos erguera-se, decidido.
- Manda entrar... Para o salão grande!
Baptista apontou para o jaquetão de flanela com que Carlos tinha almoçado, e perguntou baixo se s. Exc.ª queria uma sobrecasaca.
- Traze.
Sós, Ega e Carlos olharam-se um instante, ansiosamente.
- Não é um desafio, está claro, balbuciou Ega.
Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem chamava-se Joaquim Alvares de Castro Gomes: por baixo tinha escrito a lápis «Hotel Bragança»... Baptista voltara com a sobrecasaca: e Carlos, abotoando-a devagar, saiu sem outra mais palavra ao Ega, que ficara de pé junto da mesa, limpando estupidamente as mãos ao guardanapo.
No salão nobre, forrado de brocados cor de musgo de outono, Castro Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado à borda do sofá, a esplêndida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bela e forte no seu vestido de veludo escarlate de caçadora inglesa. Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapéu branco na mão, sorrindo, pedindo perdão de estar assim a pasmar familiarmente para aquele soberbo Constable... Com um gesto rígido, Carlos, muito pálido, indicou-lhe o sofá. Saudando e risonho Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa trazia um botão de rosas, os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto chupado, queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabelos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar de secura, de fadiga.
- Eu possuo também em Paris um Constable muito chic, disse ele, sem embaraço, num tom arrastado, cheio de rr, que o sotaque brasileiro adocicava. Mas é apenas uma pequena paisagem, com duas figurinhas. É um pintor que não me diverte, a dizer a verdade... Todavia da muito tom a uma galeria. É necessário te-lo.
Carlos, defronte numa cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os joelhos, conservava a imobilidade dum mármore. E, perante aquele modo afável, uma ideia ia-o atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe já nos olhos largos que não tirava de sobre o outro, uma irreprimivel chama de cólera. Carlos Gomes decerto não sabia nada! chegara, desembarcara, correra aos Olivais, dormira nos Olivais! Era o marido, era novo, tivera-a já nos braços - a ela! E agora ali estava, tranquilo, de flor ao peito, falando de Constable! O único desejo de Carlos, nesse instante, era que aquele homem o insultasse.
No entanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista...
- O motivo porém que me traz é tão urgente, que cheguei esta manhã ás dez horas do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui!... E esta mesma noite, se puder, parto para Madrid.
Fez-se um alívio infinito no coração de Carlos. Ainda não vira então Maria Eduarda, aqueles secos lábios não a tinham tocado! E saiu enfim da sua rigidez de mármore, teve um movimento atento, aproximando de leve a cadeira.
Castro Gomes no entanto, tendo pousado o chapéu, tirara do bolso interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monograma de ouro; e, vagaroso, procurava entre os papéis uma carta... Depois, com ela na mão, muito tranquilamente:
- Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escrito anónimo... Mas não creia V. Exc.ª que foi ele que me levou a atravessar à pressa o Atlântico. Seria o maior dos ridículos... E desejo também afirmar-lhe que todo o conteúdo dele me deixou perfeitamente indiferente... Aqui o tem. Quer V. Exc.ª lê-lo, ou quer que eu leia?
Carlos murmurou com um esforço:
- Leia V. Exc.ª
Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre os dedos.
- Como V. Exc.ª vê, é a carta anónima em todo o seu horror: papel de mercearia, pautadinho de azul; caligrafia reles; tinta reles; cheiro reles. Um documento odioso. E aqui está como ele se exprime: «Um homem «que teve a honra de apertar a mão de V. Exc.ª» Eu dispensava a honra... «que teve a hora de apertar a mão de V. Exc.ª e de apreciar o seu «cavalheirismo, julga dever preveni-lo que sua mulher é, à vista de toda a «Lisboa, a amante dum rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da «Maia, que vive numa casa ás Janelas Verdes, chamada o Ramalhete. Este «herói, que é muito rico, comprou expressamente uma quinta nos Olivais, «onde instalou a mulher de V. Exc.ª e onde a vai ver todos os dias, ficando «ás vezes, com escândalo da vizinhança, até de madrugada. Assim o nome «honrado de V. Exc.ª anda pelas lamas da capital.» É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar, porque o sei, que tudo quanto ela diz é incontestavelmente exacto... O Sr. Carlos da Maia é pois publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante dessa senhora.
Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços, numa aceitação inteira de todas as responsabilidades:
- Não tenho então nada a dizer a V. Exc.ª senão que estou ás suas ordens!...
Uma fugitiva onda de sangue avivou a palidez morena de Castro Gomes. Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente:
- Perdão... O Sr. Carlos da Maia sabe, tão bem como eu, que se isto tivesse de ter uma solução, violenta, eu não viria aqui pessoalmente, a sua casa, ler-lhe este papel... A coisa é inteiramente outra.
Carlos recaíra na cadeira, assombrado. E agora a lentidão adocicada daquela voz ia-se-lhe tornando intolerável. Um confuso terror do que viria desses lábios, que sorriam com uma palidez impertinente, quasi fazia estalar o seu pobre coração. E era um desejo brutal de lhe gritar que acabasse, que o matasse, ou que saísse daquela sala, onde a sua presença era uma inutilidade ou uma torpeza!...
O outro passou os dedos no bigode, e prosseguiu, devagar, arranjando as suas palavras com cuidado e com precisão:
- O meu caso é este, Sr. Carlos da Maia. Há pessoas em Lisboa que me não conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brasil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher desse Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradável, sobretudo por ser falso. E V. Exc.ª compreende que eu não devo continuar a arrastar por mais tempo a fama de marido infeliz, visto que a não mereço, e que a não posso legalmente ter... É por isso que aqui venho, muito francamente, de gentleman para gentleman, dizer-lhe, como tenho intenção de dizer a outros, que aquela senhora não é minha mulher.
Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da Maia. Mas ele conservava uma face muda, impenetrável, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente na lívidez que a cobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a cabeça, como acolhendo placidamente aquela revelação, que tornava outra qualquer palavra entre eles desnecessária e vã.
Mas Castro Gomes encolhera de leve os ombros, com uma lânguida resignação, como quem atribue tudo à malícia dos Destinos.
- São as ridículas cenas da vida... O Sr. Carlos da Maia está daí a ver as coisas. É a velha, a clássica história... Há três anos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado de ir ao Brasil, trouxe-a a Lisboa para não vir sozinho. Fomos para o hotel Central. V. Exc.ª compreende perfeitamente que eu não fui fazer confidências ao gerente do estabelecimento. Aquela senhora vinha comigo, dormia comigo, portanto, para todos os efeitos do hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de Castro Gomes tomou enfim um amante... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes, mesmo nas circunstâncias mais particularmente desagradáveis para Castro Gomes... E, meu Deus! não podemos realmente condena-la muito... Achava-se por acaso revestida duma excelente posição social e dum nome puro, seria mais que humano que o seu amor da verdade a levasse, apenas conhecia alguém, a declarar que posição e nome eram de empréstimo e ela era apenas «Fulana de tal, amigada...» De resto, sejamos justos, ela não era moralmente obrigada a dar semelhantes explicações ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou à matrona que lhe alugava a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguém, a não ser a um pai que lhe quisesse apresentar sua filha, saída do convento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas lhe deixei usar o meu nome. Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ela tomou a governante inglesa. As inglesas são tão exigentes!... Aquela, sobretudo, uma rapariga tão séria... Enfim tudo isso passou... O que importa agora é que eu lhe retiro solenemente o nome que lhe emprestara; e ela fica apenas com o seu, que é Madame Mac-Gren.
Carlos ergueu-se, lívido. E com as mãos fincadas nas costas da cadeira tão fortemente, que quasi lhe esgaçava o estofo:
- Mais nada, creio eu?
Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate brutal que o despediu.
- Mais nada, disse ele tomando o chapéu e levantando-se muito vagarosamente. Devo apenas acrescentar, para evitar a V. Exc.ª suspeitas injustas, que aquela senhora não é uma menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que ali anda não é minha filha... Eu conheço a mãe somente há três anos... Vinha dos braços dum qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injuria, que era uma mulher que eu pagava.
Completara com esta palavra a humilhação do outro. Estava deliciosamente desforrado. Carlos, mudo, abrira o reposteiro da sala, numa sacudidela brusca. E, diante desta nova rudeza que revelava só mortificação, Castro Gomes foi perfeito: saudou, sorriu, murmurou:
- Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pesar de ter feito o conhecimento de V. Exc.ª por um motivo tão desagradável... Tão desagradável para mim.
Os seus passos desafogados e leves perderam-se na ante-câmara, entre as tapeçarias. Depois em baixo uma portinhola bateu, uma carruagem rodou na calçada...
Carlos ficara caído numa cadeira, junto da porta, com a cabeça entre as mãos. E de todas aquelas palavras de Castro Gomes, que ainda lhe ressoavam em redor, adocicadas e lentas, só lhe restava o sentimento atordoado de uma coisa muito bela, resplandecendo muito alto, e que caia de repente, se fazia em pedaços na lama, salpicando-o todo de nódoas intoleráveis... Não sofria: era simplesmente um assombro de todo o seu ser perante este fim imundo dum sonho divino... Unira a sua alma arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre nuvens de ouro; de repente uma voz passava, cheia de rr; as duas almas rolavam, batiam num charco; e ele achava-se tendo nos braços uma mulher que não conhecia, e que se chamava Mac-Gren!
Mac-Gren! era a Mac-Gren!
Ergueu-se, com os punhos fechados; e veio-lhe uma revolta furiosa de todo o seu orgulho contra essa ingenuidade que o trouxera meses tímido, tremulo, ansioso, seguindo à maneira duma estrela aquela mulher, que qualquer em Paris, com mil francos no bolso, poderia ter sobre um sofá, fácil e nua! Era horrível! E recordava agora, afogueado de vergonha, a emoção religiosa com que entrava na sala de reps vermelho da rua de S. Francisco: o encanto enternecido com que via aquelas mãos, que ele julgava as mais castas da terra, puxarem os fios de lã no bordado, num constante trabalho de mãe laboriosa e recolhida; a veneração espiritual com que se afastava da orla do seu vestido, igual para ele à túnica duma Virgem cujas pregas rígidas nem a mais rude bestialidade ousaria desmanchar de leve! Oh imbecil, imbecil!... E todo esse tempo ela sorria consigo daquela simpleza de provinciano do Douro! Oh! tinha vergonha agora das flores apaixonadas que lhe trouxera! Tinha vergonha das «excelências» que lhe dera!
E seria tão fácil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que aquela deusa, descida das nuvens, estava amigada com um brasileiro! Mas quê! a sua paixão absurda de romântico pusera-lhe logo, entre os olhos e as coisas flagrantes e reveladoras, uma dessas névoas douradas que dão ás montanhas mais rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa! Porque escolhera ela precisamente para seu médico, na sua casa e na sua intimidade, o homem que na rua a fitara com um fulgor de desejo na face? Porque é que nas suas longas conversas, nas manhãs da rua de S. Francisco, não falara jamais de Paris, dos seus amigos e das coisas da sua casa? Porque é que ao fim de dois meses, sem preparação, sem todas essas progressivas evidencias do amor que cresce e desabrocha como uma flor, se lhe abandonara de chofre, toda pronta, apenas ele lhe disse o primeiro «amo-te»?... Porque lhe aceitara uma casa já mobilada, com a facilidade com que lhe aceitava os ramos? E outras coisas ainda, pequeninas, mas que não teriam escapado ao mais simples: jóias brutais, dum luxo grosseiro de cocote: o livro da Explicação de sonhos, à cabeceira da cama; a sua familiaridade com Melanie... E agora até o ardor dos seus beijos lhe parecia vir menos da sinceridade da paixão - que da ciência da voluptuosidade!... Mas tudo acabara, providencialmente! A mulher que ele amara e as suas seduções esvaíam-se de repente no ar como um sonho, radiante e impuro, de que aquele brasileiro o viera acordar por caridade! Esta mulher era apenas a Mac-Gren... O seu amor fora, desde que a vira, como o próprio sangue das suas veias; e escoava-se agora todo através da ferida incurável e que nunca mais fecharia, feita no seu orgulho!
Ega apareceu à porta do salão, ainda pálido:
- Então?
Toda a cólera de Carlos fez explosão:
- Extraordinário, Ega, extraordinário! A coisa mais abjecta, a coisa mais imunda!
- O homem pediu-te dinheiro?
- Pior!
- E, passeando arrebatadamente, Carlos desabafou, contou tudo, sem reticências, com as mesmas palavras cruas do outro, - que assim repetidas e avivadas pelos seus lábios, lhe descobriam motivos novos de humilhação e de nojo.
- Já por acaso sucedeu a alguém coisa mais horrível? exclamou por fim, cruzando violentamente os braços diante do Ega, que se abatera no sofá, assombrado. Podes tu conceber um caso mais sórdido? E bem mais burlesco? É para estalar o coração. E é para rebentar a rir. Estupendo! Aí, nesse sofá, aí onde tu estás, o homenzinho, muito amável, de flor ao peito, a dizer: «Olhe que aquela criatura não é minha mulher, é uma criatura que eu pago...» Compreendes isto bem! Aquele sujeito paga-a... Quanto é o beijo? Cem francos. Aí estão cem francos... É de morrer!
E recomeçou no seu passeio, desvairado, desabafando mais, recontando tudo, sempre com as palavras do Castro Gomes, que ele deformava ainda numa brutalidade maior...
- Que te parece, Ega? Dize lá. Que fazias tu? É horrível, hein?
Ega, que limpava pensativamente o vidro do monóculo, hesitou, terminou por dizer que, considerando as coisas com superioridade, como homens do seu tempo e «do seu mundo», elas não ofereciam nem motivos de cólera, nem motivos de dor...
- Então não compreendes nada! gritou Carlos, não percebes o meu caso!
Sim, sim, Ega compreendia claramente que era horrível para um homem, no momento em que ia ligar com adoração o seu destino ao duma mulher, saber que outros a tinham tido a tanto por noite... Mas isso mesmo simplificava e amenizava as coisas. O que fora um drama complicado tornava-se uma distracção bonançosa. Ficava Carlos, desde logo, aliviado do remorso de ter desorganizado uma família: já não tinha de se exilar, a esconder o seu erro, num buraco florido da Itália; já o não prendia a honra para sempre a uma mulher a quem talvez não o prenderia para sempre o amor. Tudo isto, que diabo! eram, vantagens.
- E a dignidade dela! exclamou Carlos.
Sim, mas a diminuição de dignidade e pureza não era na verdade grande, porque antes da visita de Castro Gomes já ela era uma mulher que foge do seu marido - o que, sem mesmo usar termos austeros, nem é muito puro nem muito digno... Decerto, tudo isso era uma humilhação irritante - não superior todavia à dum homem que tem uma Madona que contempla com religião, supondo-a de Rafael, e que descobre um dia que a tela divina foi fabricada na Baia por um sujeito chamado Castro Gomes! Mas o resultado íntimo e social parecia-lhe ser este: Carlos até aí tivera uma bela amante com inconvenientes, e agora tinha sem inconvenientes uma bela amante...
- O que tu deves fazer, meu caro Carlos...
- O que eu vou fazer é escrever-lhe uma carta, remetendo-lhe o preço de dois meses que dormi com ela...
- Brutalidade romântica!... Isso já vem na Dama das Camélias... Sobretudo é não ver com boa filosofia as nuances.
O outro atalhou, impaciente:
- Bem, Ega, não falemos mais nisso... Eu estou horrivelmente nervoso!... Até logo. Tu jantas em casa, não é verdade? Bem, até logo.
Saia atirando a porta, quando Ega agora tranquilo, disse, erguendo-se muito lentamente do sofá:
- O homenzinho foi para lá.
Carlos voltou-se, com os olhos chamejantes:
- Foi para os Olivais? Foi ter com ela?
Sim, pelo menos mandara a tipóia à quinta do Craft. Ega, para conhecer esse Sr. Castro Gomes, fora meter-se no cubículo do guarda-portão. E vira-o descer, acender um charuto... Era com efeito um desses rastaquouèros que, nesse infeliz Paris que tudo tolera, vêem ao Café de la Paix às duas horas para tomar a sua groseile, tesos e embrutecidos... E fora o guarda-portão que lhe dissera que o sujeito parecia muito alegre e mandara o cocheiro bater para os Olivais...
Carlos parecia aniquilado:
- Tudo isso é nojento!... No fim talvez até se entendam ambos... Estou como tu dizias aqui há tempos: «Caiu-me a alma a uma latrina, preciso um banho por dentro!»
Ega murmurou melancolicamente:
- Essa necessidade de banhos morais está-se tornando com efeito tão frequente!... Devia haver na cidade um estabelecimento para eles.
Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folha branca de papel, em que ia escrever a Maria Eduarda, já tinha a data desse dia, depois - Minha senhora, numa letra que ele se esforçara por traçar firme e serena: - e não achava outra palavra. Estava bem decidido a mandar-lhe um cheque de duzentas libras, paga esplendidamente ultrajante das semanas que passara no seu leito. Mas queria juntar duas linhas regeladas, impassíveis, que a ferissem mais que o dinheiro: não encontrava senão frases de grande cólera, revelando um grande amor.
Olhava a folha branca: e a banal expressão Minha senhora dava-lhe uma saudade dilacerante por aquela a quem na véspera ainda dizia «minha adorada», pela mulher que se não chamava ainda Mac-Gren, que era perfeita, e que uma paixão indomável, superior à razão, entontecera e vencera. E o seu amor por essa Maria Eduarda, nobre e amante, que se transformara na Mac-Gren, amigada e falsa, era agora maior infinitamente, desesperado por ser irrealizável - como o que se tem por uma morta e que palpita mais ardente junto da frialdade da cova. Oh! se ela pudesse ressurgir outra vez, limpa, clara, do lodo em que afundara, outra vez Maria Eduarda, com o seu casto bordado!... De que amor mais delicado a cercaria, para a compensar das afeições domesticas que ela deixasse de merecer! Que veneração maior lhe consagraria - para suprir o respeito que o mundo superficial e afectado lhe retirasse! E ela tinha tudo para reter amor e respeito - tinha a beleza, a graça, a inteligência, a alegria, a maternidade, a bondade, um incomparável gosto... E com todas estas qualidades doces e fortes - era apenas uma intrujona!
Mas porque? porque? Porque entrara ela nesta longa fraude, tramada dia a dia, mentindo em tudo, desde o pudor que fingia até ao nome que usava!
Apertava a cabeça entre as mãos, achava a vida intolerável. Se ela mentia - onde havia então a verdade? Se ela o traia assim, com aqueles olhos claros, o universo podia bem ser todo uma imensa traição muda. Punha-se um molho de rosas num vaso, exalava-se dele a peste! Caminhava-se para uma relva fresca, ela escondia um lamaçal! E para que, para que mentira ela? Se, desde o primeiro dia em que o vira, tremulo e rendido, a contemplar o seu bordado como se contempla uma acção de santidade - lhe tivesse dito que não era esposa do Sr. Castro Gomes, mas só amante do Sr. Castro Gomes - teria a sua paixão sido menos viva, menos profunda? Não era a estola do padre que dava beleza ao seu corpo e valor ás suas carícias... Para que fora então essa mentira tenebrosa e descarada - que lhe fazia supor agora que eram imposturas os seus mesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!... E com este longo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira por um corpo por que outros davam apenas um punhado de libras! E por esta mulher, tarifada ás horas como as caleches da Companhia, ele ia amargurar a velhice do avô, estragar irreparavelmente o seu destino, cortar a sua livre acção de homem!
Mas porque? Porque fora esta farsa banal, arrastada por todos os palcos de ópera cómica, da cocote que se finge senhora? Porque o fizera ela, com aquele falar honesto, o puro perfil e a doçura de mãe? Por interesse? Não. Castro Gomes era mais rico do que ele, mais largamente lhe podia satisfazer o apetite mundano de toiletes, de carruagens... Sentia ela que Castro Gomes a ia abandonar, e queria ter ao lado aberta e pronta outra bolsa rica? Então mais simples teria sido dizer-lhe: «eu sou livre, gosto de ti, toma-me livremente, como eu me dou.» Não! Havia ali alguma coisa secreta, tortuosa, impenetrável... O que daria por a conhecer!
E então pouco a pouco foi surgindo nele o desejo de ir aos Olivais... Sim, não lhe bastaria desforrar-se arrogantemente, atirando-lhe ao regaço um cheque embrulhado numa insolência! O que precisava, para sua plena tranquilidade, era arrancar do fundo daquela turva alma o segredo daquela torpe farsa... Só isso amansaria o seu incomparável tormento. Queria entrar outra vez na tóca, ver como era aquela outra mulher que se chamava Mac-Gren, e ouvir as suas palavras. Oh! iria sem violência, sem recriminações, muito calmo, sorrindo! Só para que ela lhe dissesse qual fora a razão daquela mentira tão laboriosa, tão vã... Só para lhe perguntar serenamente: «Minha rica senhora para quer foi toda esta intrujice?» E depois vê-la chorar... Sim, tinha esta ansiedade cheia de amor de a ver chorar. A agonia que ele sentira no salão cor de musgo do outono, enquanto o outro arrastava os rr, queria vê-la repetida nesse seio, onde ele até aí dormira tão docemente, esquecido de tudo, e que era belo, tão divinamente belo!...
Bruscamente, decidido, deu um puxão à campainha. Baptista apareceu todo abotoado na sua sobrecasaca, com um ar resoluto, como armado e pronto a ser útil naquela crise que adivinhava...
- Baptista, corre ao hotel Central e pergunta se já entrou o Sr. Castro Gomes!... Não, escuta... Põe-te à porta do Central, e espera até que entre aquele sujeito que aqui esteve... Não, é melhor perguntar!... Enfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou ou está no hotel. E apenas estejas bem certo disso, volta aqui, à desfilada, numa tipóia... Um batedor seguro, que é para me levar depois aos Olivais!...
Imediatamente, dada esta ordem, serenou. Era já um alívio imenso não ter de escrever a carta, e achar palavras acerbas que a deviam dilacerar. Rasgou o papel devagar. Depois fez o cheque de duzentas libras, ao portador. Ele mesmo lho levaria... Oh, decerto, não lho atirava romanticamente ao regaço... Deixa-lo-hia sobre uma mesa, sobrescritado a Madame Mac-Gren... E de repente sentiu uma compaixão por ela. Via-a já, abrindo o envelope com duas grandes lágrimas, lentas, caladas, a rolarem-lhe na face... E os seus próprios olhos se humedeceram.
Nesse momento Ega, de fora, perguntou se era importuno.
- Entra! gritou.
E continuou passeando, calado, com as mãos nos bolsos: o outro, em silêncio também, foi encostar-se à janela sobre o jardim.
- Preciso escrever ao avô a dizer-lhe que cheguei, murmurou Carlos por fim, parando junto da mesa.
- Dá-lhe recados meus.
Carlos sentara-se, tomara languidamente a pena: mas bem depressa a arremessou: cruzou as mãos por detrás da cabeça no espaldar da cadeira, cerrou os olhos, como exausto.
- Sabes uma coisa que me parece certa? disse de repente o Ega da janela. Quem escreveu a carta anónima ao Castro Gomes foi o Dâmaso!
Carlos olhou para ele:
- Achas?... Sim, talvez... Com efeito quem havia de ser?
- Não foi mais ninguém, menino. foi o Dâmaso!
Carlos então recordou o que lhe contara o Taveira - as alusões misteriosas do Dâmaso a um escândalo que se estava armando, uma bala que ele devia receber na cabeça... O Dâmaso, portanto, tinha como certa a vinda do brasileiro, depois um duelo...
- É necessário esmagar esse infame! exclamou Ega, subitamente furioso. Não há segurança, não há paz na nossa vida enquanto esse bandido viver!...
Carlos não respondeu. E o outro prosseguia, transtornado, já todo pálido, deixando transbordar ódios cada dia acumulados:
- Eu não o mato porque não tenho um pretexto!... Se tivesse um pretexto, uma insolência dele, um olhar atrevido, era meu, esborrachava-o!... Mas tu precisas fazer alguma coisa, isto não pode ficar assim! Não pode! É necessário sangue... Vê tu que infâmia, uma carta anónima!... Temos a nossa paz, a nossa felicidade, tudo exposto constantemente aos ataques do Sr. Dâmaso. Não pode ser. Eu o que tenho pena é de não ter um pretexto! Mas tem-lo tu, aproveita, e esmaga-o!
Carlos encolheu vagamente os ombros:
- Merecia chicotadas, com efeito... Mas ele realmente só tem sido velhaco comigo por causa das minhas relações com essa senhora; e como isso é um caso acabado, tudo o que se prende com ele finda também. Parce sepultis... E no fim era ele que tinha razão, quando dizia que ela era uma intrujona...
Atirou uma punhada à mesa, ergueu-se, e com um sorriso amargo, num tédio infinito de tudo:
- Era ele, era o Sr. Dâmaso Salcede que tinha razão!...
Toda a sua cólera revivera, mais áspera, a esta ideia. Olhou o relógio. Tinha pressa de a ver, tinha pressa de a injuriar!...
- Escreveste-lhe? perguntou o Ega.
- Não, vou lá eu mesmo.
Ega pareceu espantado. Depois recomeçou a passear, calado, com os olhos no tapete.
Ia escurecendo quando Baptista voltou. Vira o Sr. Castro Gomes apear-se no hotel e mandar descer as suas bagagens: - e a tipóia, para levar o menino aos Olivais, esperava em baixo.
- Bem, adeus! disse Carlos procurando atarantadamente um par de luvas.
- Não jantas?
- Não.
daí a pouco rodava pela estrada dos Olivais. Já se acendera o gás. E inquieto, no estreito assento, acendendo nervosamente cigarretes que não fumava, sofria já a perturbação daquele encontro difícil e doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por «minha senhora», se por «minha boa amiga», com uma superior indiferença. E ao mesmo tempo sentia por ela uma compaixão indefinida, que o amolecia. Diante destes seus modos regelados, via-a já toda pilada, a tremer, com os olhos cheios de água. E estas lágrimas que apetecera, agora que estava tão perto de as ver correr, enchiam-no só de comoção e de dó... Durante um momento mesmo pensou em retroceder. Por fim seria muito mais digno escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre e secamente! Poderia não lhe mandar o cheque, - afronta brutal de homem rico. Apesar de embusteira era mulher, cheia de nervos, cheia de fantasia, e amara-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era mais digno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido, incisivas e precisas. Sim, devia-lhe ter dito - que se estava pronto a dar a sua vida a uma mulher que se lhe abandonara por paixão, estava decidido a não sacrificar nem os seus vagares a uma mulher que lhe cedera por profissão. Era mais simples, era terminante... E depois não a via, não teria de suportar a tortura das explicações e das lágrimas.
Então veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar, reflectir um instante, mais calmamente, no silêncio das rodas. O cocheiro não ouviu: o trote largo da parelha continuou batendo a estrada escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, à maneira que reconhecia, esbatidos na sombra, aqueles sítios onde tantas vezes passara com o coração em festa, quando a sua paixão estava em flor, uma cólera nova voltava - menos contra a pessoa de Maria Eduarda, que contra essa mentira que fora obra dela, e que vinha estragar irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essa mentira que agora odiava - vendo-a como uma coisa material e tangível, de um peso enorme, feia e cor de ferro, esmagando-lhe o coração. Oh! Se não fosse essa coisa pequenina e inolvidável que estava entre eles, como um indestructível bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus braços, senão com a mesma crença pelo menos com o mesmo ardor! Esposa do outro ou amante do outro - no fim que importava? Não era por faltar aos beijos que lhe dera esse a consagração dum padre, rosnada em latim - que a sua pele estava mais poluída por eles, ou tinha a menos frescura? Mas havia a mentira, a mentira inicial, dita no primeiro dia em que fora à rua de S. Francisco, e que como um fermento podre ficava estragando tudo daí por diante, doces conversas, silêncios, passeios, sestas no calor da quinta, murmúrios de beijos morrendo entre os cortinados cor de ouro... Tudo manchado, tudo contaminado por aquela mentira primeira que ela dissera sorrindo, com os seus tranquilos olhos límpidos...
Abafava. Ia a descer a vidraça que faltava a correia - quando a tipóia parou de repente, na estrada solitária... Abriu a portinhola. Uma mulher com um chale pela cabeça falava ao cocheiro.
- Melanie!
- Ah, monsieur!
Carlos saltou precipitadamente. Era já próximo da quinta, na volta de estrada, onde o muro fazia um recanto sob uma faia, defronte de sebes de piteiras resguardando campos de olivedo. Carlos gritou ao cocheiro que seguisse e esperasse no portão da quinta. E ficou ali, no escuro, com Melanie encolhida no seu chale.
Que estava ela ali a fazer? Melanie parecia transtornada: contou que vinha procurar à vila uma carruagem, porque a senhora queria ir a Lisboa, ao Ramalhete... Ela julgara a tipóia vazia.
E apertava as mãos, dando as graças, com um imenso alívio. Ah! que felicidade, que felicidade ter ele vindo!... A senhora estava aflita, nem jantara, perdida de choro. O Sr. Castro Gomes aparecera lá inesperadamente... A senhora, coitadinha, queria morrer!
Então Carlos, caminhando rente ao muro, interrogou Melanie. Como viera o outro? que dissera? como se despedira?... Melanie não ouvira nada. O Sr. Castro Gomes e a senhora tinham conversado sós no pavilhão japonês. Á saída é que vira o Sr. Castro Gomes dizer adeus a madame, muito sossegado, muito amável, rindo, falando de Niniche... A senhora, essa, parecia como morta, tão pálida! Quando o outro partiu, ia tendo um desmaio.
Estavam próximo do portão da Toca. Carlos retrocedeu, respirando fortemente, com o chapéu na mão. E agora todo o seu orgulho se ia sumindo sob a violência da sua ansiedade. Queria saber! E perguntava, deixava Melanie nas coisas dolorosas da sua paixão... Dites toujours, Melanie, dites! Sabia a senhora que Castro Gomes estivera com ele no Ramalhete, lhe confessara tudo?...
Claramente que sabia, por isso chorava - dizia Melanie. Ah, ela bem repetira à senhora que era melhor contar a verdade! Era muito amiga dela, servia-a desde pequena, vira nascer a menina... E tinha-lho dito, até já nos Olivais!
Carlos curvava a cabeça na escuridão do muro. Melanie tinha-lho dito! Assim ela e a criada discutiam ambas, acamaradadas, o embuste em que andava presa a sua vida! E aquelas revelações de Melanie, que suspirava com o chale sobre o rosto, abatiam os últimos pedaços desse sonho, que ele erguera tão alto, entre nuvens de ouro. Nada restava. Tudo jazia em estilhaços, no lodo imundo.
Um momento, com o coração cheio de fadiga, pensou em voltar a Lisboa. Mas para além daquele negro muro estava ela, perdida de choro, querendo morrer... E lentamente recomeçou a caminhar para o portão.
E agora, sem resistência nenhuma do orgulho, fazia perguntas mais intimas a Melanie. Porque é que Maria Eduarda não lhe dissera a verdade?
Melanie encolheu os ombros. Não sabia: nem a senhora sabia! Estivera no Central como madame Gomes; alugara a casa da rua de S. Francisco como madame Gomes; recebera-o como madame Gomes... E assim se deixara ir, insensivelmente, conversando com ele, gostando dele, vindo para os Olivais... E depois era tarde, já não se atrevera a confessar, toda enterrada assim na mentira, com medo do desgosto...
Mas, exclamava Carlos, nunca imaginara ela que fatalmente tudo se descobriria um dia?
- Je ne sais pas, monsieur, je ne sais pas, murmurou Melanie quasi a chorar.
Depois eram outras curiosidades. Ela não esperava Castro Gomes? não supunha que ele voltasse? não costumava falar dele?...
- Oh non, monsieur, oh non!
Madame, desde que o senhor começara a ir todos os dias à rua de S. Francisco, considerara-se para sempre desligada do Sr. Castro Gomes, nem falava nele, nem queria que se falasse... Antes disso a menina chamava sempre ao Sr. Castro Gomes petit ami. Agora não lhe chamava nada. Tinham-lhe dito que já não havia petit ami...
- Ela escrevia-lhe ainda, dizia Carlos, eu sei que ela lhe escrevia...
Sim, Melanie julgava que sim... Mas cartas indiferentes. A senhora levara o seu escrúpulo a ponto de que, desde que viera para os Olivais, nunca mais gastara um ceitil das quantias que lhe mandava o Sr. Castro Gomes. As letras para receber dinheiro conservava-as intactas, entregara-lhas nessa tarde... Não se lembrava ele de a ter encontrado uma manhã à porta do Monte-Pio? Pois bem! Fora lá, com uma amiga francesa, empenhar uma pulseira de brilhantes da senhora. A senhora vivia agora das suas jóias; tinha já outras no prego.
Carlos parara, comovido. Mas então para que tinha ela mentido?
- Je ne sais pas, dizia Melanie, je ne sais pas... Mais ele vous aime bien, alez!
Estavam defronte do portão. A tipóia esperava. E, ao fundo da rua de acácias, a porta da casa aberta deixava passar a luz do corredor, frouxa e triste. Carlos julgou ver mesmo a figura de Maria Eduarda, embrulhada numa capa escura, de chapéu, atravessar nessa claridade... Ouvira decerto rodar a carruagem. Que aflita paciência seria a sua!
- Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! murmurou Carlos.
A rapariga correu. E ele, caminhando devagar sob as acácias, sentia no sombrio silêncio as pancadas desordenadas do seu coração. Subiu os três degraus de pedra - que lhe pareciam já duma casa estranha. Dentro, o corredor estava deserto, com a sua lâmpada mourisca alumiando as panóplias de touros... Ali ficou. Melanie, com o chale na mão, veio dizer-lhe que a senhora estava na sala das tapeçarias...
Carlos entrou.
Lá estava, ainda de capa, esperando de pé, pálida, com toda a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lágrimas. E correu para ele, arrebatou-lhe as mãos, sem poder falar, soluçando, tremendo toda.
Na sua terrível perturbação, Carlos achava só esta palavra, melancolicamente estúpida:
- Não sei porque chora, não sei, não há razão para chorar...
Ela pôde enfim balbuciar:
- Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa contar-te... Eu ia lá, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia ver-te... Nunca tive a coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrível... Mas escuta, não digas nada ainda, perdoa, que eu não tenho culpa!
De novo os soluços a sufocaram. E caiu ao canto do sofá, num choro brusco e nervoso, que a sacudiu toda, lhe fazia rolar sobre os ombros os cabelos mal atados.
Carlos ficara diante dela, imóvel. O seu coração parecia parado de surpresa e de dúvida, sem força para desafogar. Apenas agora sentia quanto baixo e brutal deixar-lhe o cheque - que tinha ali na carteira e que o enchia de vergonha... Ela ergueu o rosto, todo molhado, murmurou com um grande esforço:
- Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, são tantas coisas, são tantas coisas!... Tu não te vais já embora, senta-te, escuta...
Carlos puxou uma cadeira, lentamente.
- Não, aqui ao pé de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem és, tem pena, faze-me isso!
Ele cedeu à suplicação humilde e enternecedora dos seus olhos arrasados de água: e sentou-se ao outro canto do sofá, afastado dela, numa desconsolação infinita. Então, muito baixo, enrouquecida pelo choro, sem o olhar, e como num confessionário - Maria começou a falar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grandes soluços que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas mãos a face aflita.
A culpa não fora dela! não fora dela! Ele devia ter perguntado àquele homem que sabia toda a sua vida... Fora sua mãe... Era horroroso dize-lo, mas fora por causa dela que conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandês... E tinha vivido com ele quatro anos, como sua esposa, tão fiel, tão retirada de tudo e só ocupada da sua casa, que ele ia casar com ela! Mas morrera na guerra com os alemães, na batalha de Saint-Privat. E ela ficara com Rosa, com a mãe já doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao principio trabalhara... Em Londres tinha procurado dar lições de piano... Tudo falhara, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! com fome! Ah, ele não podia perceber o que isto era!... Quasi fora por caridade que as tinha repatriado para Paris... E aí conhecera Castro Gomes. Era horrível, mas que havia dela fazer! Estava perdida...
Lentamente escorregara do sofá, caíra aos pés de Carlos. E ele permanecia imóvel, mudo, com o coração rasgado por angustias diferentes: era uma compaixão tremula por todas aquelas misérias sofridas, dor de mãe, trabalho procurado, fome, que lha tornavam confusamente mais querida; e era o horror desse outro homem, o irlandês, que surgia agora, e que lha tornava de repente mais maculada...
Ela continuava falando de Castro Gomes. Vivera três anos com ele, honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em casa. Ele é que a forçava a andar em ceias, em noitadas...
E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mãos, que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!...
- Oh não, não me mandes embora! gritou ela prendendo-se a ele ansiosamente. Eu sei que não mereço nada! Sou uma desgraçada... Mas não tive coragem, meu amor! Tu és homem, não compreendes estas coisas... Olha para mim! porque não olhas para mim? Um instante só, não voltes o rosto, tem pena de mim...
Não! ele não queria olhar. Temia aquelas lágrimas, o rosto cheio de agonia. Ao calor do seio que arquejava sobre os seus joelhos, já tudo nele começava a oscilar, orgulhos, despeitos, dignidade, ciúme... E então, sem saber, a seu pesar, as suas mãos apertaram as dela. Ela cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente: e ansiosa implorava do fundo da sua miséria um instante de misericórdia.
Oh, dize que me perdoas! Tu és tão bom! Uma palavra só... Dize só que não me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao menos para mim como de antes, uma só vez!...
E eram agora os seus lábios que procuravam os dele. Então a fraqueza em que sentia afundar-se todo o seu ser encheu Carlos de cólera, contra si e contra ela. Sacudiu-a brutalmente, gritou:
- Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste, tu?
Largara-a, prostrada no chão. E de pé, deixava cair sobre ela a sua queixa desesperada:
- É a tua mentira que nos separa, a tua horrível mentira, a tua mentira somente!
Ela ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma palidez de desmaio.
- Mas eu queria dizer-to, murmurou muito baixo, muito quebrado diante dele, deixando cair os braços. Eu queria dizer-to... Não te lembras, naquele dia em que vieste tarde, quando eu falei da casa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te logo: «há uma coisa que te quero contar...» Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas o que era, que eu queria ser só tua, longe de tudo... E disseste então que havíamos de ir, com Rosa, ser felizes para algum canto do mundo... Não te lembras?... Foi então que me veio uma tentação! Era não dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, anos depois, quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te: «agora, se queres, manda-me embora.» Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentação, não resisti... Se tu não falasses em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas mal falaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperança, nem sei que! E além disso adiava aquela horrível confissão! Enfim, nem posso explicar, era como o céu que se abria, via-me contigo numa casa nossa... Foi uma tentação!... E depois era horrível, no momento em que tu me querias tanto, ir dizer-te «não faças tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido tenho...» Que te hei de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito. Era tão bom ser assim estimada... Enfim foi um mal, foi um grande mal... E agora aí está, vejo-me perdida, tudo acabou!
Atirou-se para o chão, como uma criatura vencida e finda, escondendo a face no sofá. E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente até junto dela, tinha só a mesma recriminação, a mentira, a mentira, pertinaz e de cada dia... Só os soluços dela lhe respondiam.
- Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivais, quando sabias que tu eras tudo para mim?...
Ela ergueu a cabeça fatigada:
- Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse de outro modo... Via-te já a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por aí dentro de chapéu na cabeça, a perder a afeição à pequena, a querer pagar as despesas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando. Dizia «hoje não, um dia só mais de felicidade, amanhã será...» E assim ia indo! Enfim, nem eu sei, um horror!
Houve um silêncio. E então Carlos sentiu à porta Niniche que queria entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadelinha correu, pulou para o sofá, onde Maria permanecia soluçando, enrodilhando a um canto: procurava lamber-lhe as mãos, inquieta: depois ficou plantada junto dela, como a guarda-la, desconfiada, seguindo, com os seus vivos olhos de azeviche, Carlos que recomeçara a passear sombriamente.
Um ai mais longo e mais triste de Maria fe-lo parar. Esteve um momento olhando para aquela dor humilhada... Todo abalado, com os lábios a tremer, murmurou:
- Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora nunca mais? Há esta mentira horrível sempre entre nós a separar-nos! Não teria um único dia de confiança e de paz...
- Nunca te menti senão numa coisa, e por amor de ti! disse ela gravemente do fundo da sua prostração.
- Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia acreditar... Como havia de ser, se agora mesmo quasi que nem acredito no motivo das tuas lágrimas?
Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente secos rebrilharam, revoltados e largos, no mármore da sua palidez.
- Que queres tu dizer? Que estas lágrimas tem outro motivo, estas suplicas são fingidas? Que finjo tudo para te reter, para não te perder, ter outro homem, agora que estou abandonada?...
Ele balbuciou:
- Não, não! Não é isso!
- E eu? exclamou ela, caminho para ele, dominando-o, magnífica e com um esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar nessa grande paixão que me juravas? O que é que tu amavas então em mim? Dize lá! Era a mulher de outro, o nome, o requinte do adultério, as toiletes?... Ou era eu própria, o meu corpo, a minha alma e o meu amor por ti?... Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braços são os mesmos, este peito é o mesmo... Só uma coisa é diferente: a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente maior.
- Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mãos.
Num instante Maria estava caída a seus pés, com os braços abertos para ele.
- Juro-to por alma de minha filha, por alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente, absurdamente, até à morte!
Carlos tremia. Todo o seu ser pendia para ela; e era um impulso irresistivel de se deixar cair sobre aquele seio que arfava a seus pés, ainda que ele fosse o abismo da sua vida inteira... Mas outra vez a idéia da mentira passou, regeladora. E afastou-se dela, levando os punhos à cabeça, num desespero, revoltado contra aquela coisa pequenina e indestructível que não queria sumir-se, e que se interpunha como uma barra de ferro entre ele e a sua felicidade divina!
Ela ficara ajoelhada, imóvel, com os olhos esgaseados para o tapete. Depois, no silêncio estofado da sala, a sua voz ergueu-se dolente e tremula:
- Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se acabou!... É melhor que te vás embora... Ninguém me torna a acreditar... Acabou tudo para mim, não tenho ninguém mais no mundo... Amanhã saio daqui, deixo-te tudo... Hás-de me dar tempo para arranjar... Depois, que hei de fazer, vou-me embora!
E não pôde mais, tombou para o chão, com os braços estirados, perdida de choro.
Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro, para ali caída e abandonada, parecia já uma pobre criatura, arremessada para fora de todo o lar, sozinha a um canto, entre a inclemência do mundo... Então respeitos humanos, orgulho, dignidade humana, tudo nele foi levado como por um grande vento de piedade. Viu só, ofuscando todas as fragilidades, a sua beleza, a sua dor, a sua alma sublimemente amante. Um delírio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se à sua paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os braços abertos:
- Maria, queres casar comigo?
Ela ergueu a cabeça, sem compreender, com os olhos desvairados. Mas Carlos tinha os braços abertos; e estava esperando para a fechar dentro deles outra vez, como sua e para sempre... Então levantou-se, tropeçando nos vestidos, veio cair sobre o peito dele, cobrindo-o de beijos, entre soluços e risos, tonta, num deslumbramento:
- Casar contigo, contigo? Oh Carlos... E viver sempre, sempre contigo?... Oh meu amor, meu amor! E tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser só tua? E a pobre Rosa também... Não, não cases comigo, não é possível, não valho nada! Mas se tu queres, porque não?... Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! E hás-de ser nosso amigo, meu e dela, que não temos ninguém no mundo... Oh! meu Deus, meu Deus!...
Empalideceu, escorregando pesadamente entre os braços dele, desmaiada: e os seus longos cabelos desprendidos rojavam o chão, tocados pelas luz de tons de ouro.
OBJETIVO: DISPONIBILIZAR OBRAS DA LITERATURA, TEXTOS E TAREFAS SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA .
segunda-feira, 6 de abril de 2009
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O Aluno (por ele mesmo)
O aluno não copia: compara resultados.O aluno não fala: troca opinões.O aluno não dorme: se concentra.O aluno não se distrai: examina as moscas.O aluno não falta na escola: é solicitado em outros lugares.O aluno não diz besteiras: desabafa.O aluno não masca chiclete: fortalece a mandíbula.O aluno não lê revistas na sala: se informa.O aluno não destrói o colégio: decora a escola segundo seu gosto.
(BRINCADEIRINHA!!!!!!!!)
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