segunda-feira, 6 de abril de 2009

OS MAIAS PARTE 4 (EÇA DE QUEIRÓS)

Capítulo XV
Maria Eduarda e Carlos, que ficara essa noite nos Olivais na sua casinhola, acabavam de almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sair deixara ao lado de Carlos a caixa de cigarretes e o Figaro. As duas janelas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos campos. No banco de cortiça, sob as árvores, miss Sarah costurava preguiçosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera numa intimidade conjugal, com uma simples camisa de seda e um jaquetão de flanela, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a mão, brincando-lhe com os anéis, numa lenta carícia:
- Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?
Nessa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ela mostrara o desejo enternecido de não alterar o plano da Itália e dum ninho romântico entre as flores da Isola-bela: somente agora não iam esconder a inquietação duma felicidade culpada, mas gozar o repouso duma felicidade legítima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia em que cruzara Maria Eduarda no Aterro, Carlos anelava também pelo momento de se instalar enfim no conforto dum amor sem dúvidas e sem sobressaltos:
- Eu por mim abalava amanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego de preguiça... Mas tu, dize, quando queres?
Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem retirar a mão que a longa carícia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa através da janela.
- Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardais que ainda não almoçaram...
- Não, vem cá.
Quando ela apareceu à porta, toda de branco, corada, com uma das ultimas rosas de verão metida no cinto - Maria qui-la mais perto, entre eles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabelo, perguntou, muito séria, muito comovida, se ela gostaria que Carlos viesse viver ver com elas de todo e ficar ali na Toca. Os olhos da pequena encheram-se de surpresa e de riso:
- O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suas malas, as suas coisas?...
Ambos murmuraram - «sim».
Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...
- Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que ele fosse como o papá, e que, andasse sempre conosco, e que lhe obedecêssemos ambas, e que gostássemos muito dele?
Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagara.
- Mas eu não posso gostar mais dele do que gosto!...
Ambos a beijaram, num enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa debruçando-se sobre ela, beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãe. E pareceu compreender tudo; escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:
- Queres que te chame papá, só a ti?
- Só a mim, disse ele, fechando-a toda nos braços.
E assim obtiveram o consentimento de Rosa que fugiu, atirando a porta, com as mãos cheias de bolos para os pardais.
Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e contemplando-a profundamente, até à alma, murmurou num enlevo:
- És perfeita!
Ela desprendeu-se, com melancolia, daquela adoração que a perturbava.
- Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso quiosque... Tu não tens nada que fazer, não? E que tenhas, hoje és meu... Vou já ter contigo. Leva as tuas cigarretes.
Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada do céu cinzento... E a vida pareceu-lhe adorável, duma poesia fina e triste, assim envolta naquela névoa macia onde nada resplandecia e nada cantava, e que tão favorável era para que dois corações, desinteressados do mundo e em desarmonia com ele, se abandonassem juntos ao contínuo encanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra.
- Vamos ter chuva, tio André, disse ele, passando junto do velho jardineiro que aparava o buxo.
O tio André, atarantado, arrancou o chapéu. Ah! uma gota de água era bem necessária, depois da estiagem! O torrãosinho já estava com sede! E em casa todos bons? A senhora? A menina?
- Tudo bom, tio André, obrigado.
E no seu desejo de ver todos em torno de si felizes como ele e como a terra sequiosa que ia ser consolada - Carlos meteu uma libra na mão do tio André, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre aquele ouro extraordinário que reluziu.
Quando Maria entrou no quiosque trazia um cofre de sândalo. Atirou-o para o divã: fez sentar Carlos ao lado, bem confortável, entre almofadas: acendeu-lhe uma cigarrete. Depois agachou-se aos seus pés, sobre o tapete, como na humildade de uma confissão.
- Estás bem assim? Queres que o Domingos te traga água e cognac?... Não? Então ouve agora, quero-te contar tudo...
Era toda a sua existência que ela desejava contar. Pensara mesmo em lha escrever numa carta interminável, como nos romances. Mas decidira antes tagarelar ali uma manhã inteira, aninhada aos seus pés.
- Estás bem, não estás?
Carlos esperava, comovido. Sabia que aqueles lábios amados iam fazer revelações pungentes para o seu coração e amargas para o seu orgulho. Mas a confidência da sua vida completava a posse da sua pessoa: quando a conhecesse toda no seu passado senti-la-hia mais sua inteiramente. E no fundo tinha uma curiosidade insaciável dessas coisas que o deviam pungir e que o deviam humilhar.
- Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta... Onde nasceste tu por fim?
Nascera em Viena: mas pouco se recordava dos tempos de criança, quasi nada sabia do papá, a não ser a sua grande nobreza e a sua grande beleza. Tivera uma irmãsinha que morrera de dois anos e que se chamava Heloisa. A mamã, mais tarde, quando ela era já rapariga, não tolerava que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a memória das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho... De Viena apenas recordava confusamente largos passeios de árvores, militares vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde se dançava: ás vezes durante tempos ela ficava lá só com o avô, um velhinho triste e tímido, metido pelos cantos, que lhe contara histórias de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se somente de ter atravessado um grande rumor de ruas, num dia de chuva, embrulhada em peles, sobre os joelhos dum escudeiro. As suas primeiras memórias mais nítidas datavam de Paris; a mamã, já viúva, andava de luto pelo avô; e ela tinha uma aia italiana que a levava todas as manhãs, com um arco e com uma péla, brincar aos Campos Elíseos. A noite costumava ver a mamã decotada, num quarto cheio de cetins e de luzes; e um homem louro, um pouco brusco, que fumava sempre estirado pelos sofás, trazia-lhe de vez em quando uma boneca, e chamava-lhe mademoisele Triste-coeur por causa do seu arzinho sisudo. Enfim a mamã metera-a num convento ao pé de Tours - porque nessa idade, apesar de cantar já ao piano as valsas da Bele Helène, ainda não sabia soletrar. Fora nos jardins do convento, onde havia lindos lilases, que a mamã se separara dela numa paixão de lágrimas; e ao lado esperava, para a consolar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre Superiora falara com veneração.
A mamã ao principio vinha vê-la todos os meses, demorando-se em Tours dois, três dias; trazia-lhe uma profusão de presentes, bonecas, bombons, lenços bordados, vestidos ricos, que lhe não permitia usar a regra severa do convento. Davam então passeios de carruagem pelos arredores de Tours: e havia sempre oficiais a cavalo, que escoltavam a caleche - e tratavam a mamã por tu. No convento as mestras, a Madre Superiora não gostavam destas saídas - nem mesmo que a mamã viesse acordar os corredores devotos com as suas risadas e o ruído das suas sedas; ao mesmo tempo pareciam teme-la; chamavam-lhe Madame la Comtesse. A mamã era muito amiga do general que comandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor, quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na face e aludia risonhamente a son excelente mère. Depois a mamã começou a aparecer menos em Tours. Esteve um ano longe, quasi sem escrever, viajando na Alemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e ficou toda a manhã abraçada a ela a chorar.
Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, mais ligeira, com dois grandes galgos brancos, anunciando uma romagem poética à Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ela tinha então quasi dezasseis anos: pela sua aplicação, os seus modos doces e graves, ganhara a afeição da Madre Superiora - que ás vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabelo caído em duas tranças segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar sempre ao seu lado. Le monde, dizia ela, ne vous sera bon à rien, mon enfant!... Um dia, porém, apareceu para a levar para Paris, para a mamã, uma Madame de Chavigny, fidalga pobre, de caracóis brancos, que era como uma estampa de severidade e de virtude.
O que ela chorara ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que ía encontrar em Paris!
A casa da mamã, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo - mas recoberta de um luxo sério e fino. Os escudeiros tinham meias de seda; os convidados, com grandes nomes no Nobiliário de França, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas de jogo armavam-se depois como uma distracção mais picante. Ela recolhia sempre ao seu quarto ás dez horas: Madame de Chavigny, que ficara como sua dama de companhia, ia com ela cedo ao Bois num coupé estufo de douairière. Pouco a pouco, porém, este grande verniz começou a estalar. A pobre mamã caíra sob o jugo dum Mr. de Trevernes, homem perigoso pela sua sedução pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descaiu rapidamente numa boémia mal dourada e ruidosa. Quando ela madrugava, com os seus hábitos saudáveis do convento, encontrava paletós de homens por cima dos sofás: no mármore das consoles restavam pontas de charuto entre nódoas de champagne; e nalgum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro dum bacarat talhado à claridade do sol. Depois uma noite, estando deitada, sentira de repente gritos, uma debandada brusca na escada; veio encontrar a mamã estirada no tapete, desmaiada; ela dissera-lhe apenas mais tarde, alagada em lágrimas, «que tinha havido uma desgraça»...
Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d'Antin. Aí começou a aparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de grandes bigodes, Peruanos com diamantes falsos, e condes romanos que escondiam para dentro das mangas os punhos enxovalhados... Por vezes entre esta malta vinha algum gentleman que não tirava o paletó, como num café-concerto. Um desses foi um irlandês, muito moço, Mac-Gren... Madame de Champigny deixara-as desde que faltara o coupé severo, acolchoado de cetim; e ela, só com a mãe, insensivelmente, fatalmente, fora-se misturando a essa vida tresnoitada de grogs e de bacarat.
A mamã chamava a Mac-Gren o «bebé». Era com efeito uma criança estouvada e feliz. Namorara-se dela logo com o ardor, a efusão, o ímpeto dum irlandês; e prometeu-lhe faze-la sua esposa apenas se emancipasse - porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo das liberalidades de uma avó excêntrica e rica que o adorava, e que habitava a Provença numa vasta quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir com ele, desesperado de a ver entre aqueles Valachos que cheiravam a genebra. O seu desejo era leva-la para Fontainebleau, para um cotage com trepadeiras de que falava sempre, e esperar aí tranquilamente a maioridade que lhe traria duas mil libras de renda. Decerto, era uma situação falsa: mas preferível a permanecer naquele meio depravado e brutal onde ela a cada instante corava... A esse tempo a mamã parcela ir perdendo todo o senso, desarranjada de nervos, quasi irresponsável. As dificuldades crescentes estonteavam-na; brigava com as criadas; bebia champagne «pour s'étourdir». Para satisfazer as exigências de Mr. de Trevernes empenhara as suas jóias, e quasi todos os dias chorava com ciúmes dele. Por fim houve uma penhora: uma noite tiveram de enfardelar à pressa roupa num saco, e ir dormir a um hotel. E, pior, pior que tudo! Mr. de Trevernes começava a olhar para ela dum modo que a assustava...
- Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pálido, agarrando-lhe as mãos.
Ela permaneceu um momento sufocada, com o rosto caído nos joelhos dele. Depois limpando as lágrimas que a enevoavam:
- Aí estão as cartas de Mac-Gren, nesse cofre... Tenho-as guardado sempre para me justificar a mim mesma, se me é possível... Pede-me em todas que vá para Fontainebleau; chama-me sua esposa; jura que apenas juntos iremos ajoelhar-nos diante da avó, obter a sua indulgência... Mil promessas! E era sincero... Que queres que te diga? A mamã uma manhã partiu com uma súcia para Baden. Fiquei em Paris só, num hotel... Tinha um palpite, um terror que Trevernes aparecia... E eu só! Estava tão transtornada que pensei em comprar um revólver... Mas quem veio foi Mac-Gren.
E partira com ele, sem precipitação, como sua esposa, levando todas as suas malas. A mamã de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada e trágica, amaldiçoando Mac-Gren, ameaçando-o com a prisão de Mazas, querendo esbofeteá-lo; depois rompeu a chorar. Mac-Gren, como um bebé, agarrou-se a ela aos beijos, chorando também. A mamã terminou por os apertar a ambos contra o coração, já rendida, perdoando tudo, chamando-lhes «filhos da sua alma». Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando «a patuscada de Baden», já com o plano de vir instalar-se no cotage, viver junto deles numa felicidade calma e nobre de avósinha... Era em maio; Mac-Gren, à noite, deitou um «fogo preso» no jardim.
Começou um ano quieto e fácil. O seu único desejo era que a mamã vivesse com eles sossegadamente. Diante das suas suplicas ela ficava pensativa, dizia: «Tens razão, veremos!» Depois remergulhava no torvelinho de Paris, de onde ressurgia uma manhã, num fiacre, estremunhada e aflita, com uma rica peliça sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem francos... Por fim nascera Rosa. Toda a sua ansiedade desde então fora legitimar a sua união. Mas Mac-Gren adiava, levianamente, com um medo pueril da avó. Era um perfeito bebé! Entretinha as manhãs a caçar pássaros com visco! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso: ela pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito. No começo da primavera a mamã um dia apareceu em Fontainebleau com as suas malas, sucumbida, enojada da vida. Rompera enfim com Trevernes. Mas quasi imediatamente se consolou: e começou daí a adorar Mac-Gren com uma tão larga efusão de carícias, e achando-o tão lindo, que era ás vezes embaraçadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac, jogando o besigue.
De repente rebentou a guerra com a Prússia. Mac-Gren entusiasmado, e apesar das suplicas delas, correra a alistar-se no batalhão de Zuavos de Charete; a avó de resto aprovara este rasgo de amor pela França, e fizera-lhe numa carta em verso, em que celebrava Jeane d'Arc, uma larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ela, sem lhe largar o leito, mal atendia ás noticias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras batalhas perdidas na fronteira. Uma manhã a mamã rompeu-lhe no quarto, estonteada, em camisa: o exercito capitulara em Sédan, o imperador estava prisioneiro! «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» dizia a mamã espavorida. Ela veio a Paris procurar noticias de Mac-Gren: na rua Royale teve de se refugiar num portão, diante do tumulto dum povo em delírio, aclamando, cantando a Marselhesa, em torno de uma caleche onde ia um homem, pálido como cera, com um cache-nez escarlate ao pescoço. E um sujeito ao lado, aterrado, disse-lhe que o povo fora buscar Rochefort à prisão e que estava, proclamada a República.
Nada soubera de Mac-Gren. Começaram então dias de infinito sobressalto. Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mamã causava dó, envelhecida de repente, sombria, prostrada numa cadeira, murmurando apenas: «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» E parecia na verdade o fim da França. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em wagons de gado, internados a todo o vapor para os presídios da Alemanha; os prussianos marchando sobre Paris... Não podiam permanecer em Fontainebleau; o duro inverno começava; e com o que venderam à pressa, com o dinheiro que Mac-Gren deixara, partiram para Londres.
Fora uma exigência da mamã. E em Londres ela, desorientada na enorme e estranha cidade, doente também, deixara-se levar pelas tontas ideias da mãe. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros de luxo, ao pé de Mayfair. A mamã falava em organizar ali o centro de resistência dos bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraçada pensava em criar uma casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem império, não jogavam já o bacarat. E elas em breve, sem rendimentos, gastando sempre, tinham-se achado com aquela dispendiosa casa, três criados, contas colossais e uma nota de cinco libras no fundo duma gaveta. E Mac-Gren metido dentro de Paris, com meio milhão de prussianos em redor. Foi necessário vender todas as jóias, vestidos, até as peliças. Alugaram então, no bairro pobre de Soho, três quartos mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a sua suja, solitária tristeza; uma criadita única, enfarruscada como um trapo; alguns carvões húmidos fumegando mal na chaminé; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por fim faltara mesmo o escasso shiling para pagar o lodging. A mamã não saia do catre, doente, sucumbida, chorando. Ela ás vezes ao anoitecer, escondida num water-proof, levava ao prego embrulhos de roupa (até roupa branca, até camisas!) para que ao menos não faltasse a Rosa a sua xícara deleite. As cartas que a mamã escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na Maison d'Or ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada num bocado de papel, alguma meia-libra que tinha o pavoroso sabor duma esmola. Uma noite, um sábado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mamã, perdera-se, errara na vasta Londres numa treva amarelada, a tiritar de frio, quasi com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a álcool. Para lhes fugir atirou-se para dentro dum cab que a levou a casa. Mas não tinha um peny para pagar ao cocheiro; e a patroa roncava no seu cacifro, bêbeda. O homem resmungou; ela, sucumbida, ali mesmo na porta rompeu a chorar. Então o cocheiro desceu da almofada, comovido, ofereceu-se para a levar de graça ao prego, onde ajustariam as suas contas. Foi; o pobre homem só aceitou um shiling; até mesmo supondo-a francesa grunhiu blasfémias contra os prussianos, e teimou em lhe oferecer uma bebida.
Ela no entanto procurava uma ocupação qualquer costura, bordados, traduções, cópias de manuscritos... Não achava nada. Naquele duro inverno o trabalho escasseava em Londres; surgira uma multidão de franceses, pobres como ela, lutando pelo pão... A mamã não cessava de chorar; e havia alguma coisa mais terrível que as suas lágrimas - eram as suas alusões constantes à facilidade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se é nova e se é bonita...
- Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ela, apertando as mãos amargamente.
Carlos beijou-a em silêncio, com os olhos humedecidos.
- Enfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cerco acabou. Paris estava de novo aberto... Somente a dificuldade era voltar.
- Como voltaste?
Um dia por acaso, em Regent-Street, encontrara um amigo de Mac-Gren, outro irlandês, que muitas vezes jantara com eles em Fontainebleau. Veio vê-las a Soho; diante daquela miséria, do bule de chá aguado, dos ossos de carneiro requentando sobre três brasas mortas, começou, como bom irlandês, por acusar o governo de Inglaterra e jurar uma desforra de sangue. Depois ofereceu, com os beiços já a tremer, toda a sua dedicação. O pobre rapaz batia também o lagedo numa luta tormentosa pela vida. Mas era irlandês; e partiu logo generosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar através de Londres o pouco que elas necessitavam para recolher a França. Com efeito apareceu nessa mesma noite, derreado e triunfante, brandindo três notas de banco e uma garrafa de champagne. A mamã ao ver, depois de tantos meses de chá preto, a garrafa de Clicquot encarapuçada de ouro - quasi desmaiou, de enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na estação de Charing-Cross, o irlandês levou-a para um canto, e engasgado, torcendo os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na batalha de Saint-Privat...
- Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar trabalho. Mas tudo estava ainda em confusão... Quasi imediatamente veio a Comuna... Podes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas enfim já não era Londres, nem o inverno, nem o exílio. Estávamos em Paris, sofríamos de companhia com amigos de outros tempos. Já não parecia tão terrível... Com todas estas privações a pobre Rosa começava a definhar... Era um suplício vê-la perder as cores, tristinha, mal vestida, metida numa trapeira... A mamã já se queixava da doença de coração que a matou... O trabalho que eu encontrava, mal pago, dava-nos apenas para a renda da casa, e para não morrer absolutamente de necessidade... Principiei a adoecer de ansiedade, de desespero. Lutei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se não tivesse outro regime, bom ar, algum conforto... Conheci então Castro Gomes em casa duma antiga amiga da mamã, que não perdera nada com a guerra, nem com os prussianos, e que me dava trabalhos de costura... E o resto sabe-lo... Nem eu me lembro... Fui levada... Via ás vezes Rosa, coitadinha, embrulhada num chale, muito quietinha ao seu canto, depois de rapada a sua magra tigela de sopas, e ainda com fome...
Não pôde continuar; rompeu a chorar, caída sobre os joelhos de Carlos. E ele na sua emoção só lhe podia dizer, passando-lhe as mãos tremulas pelos cabelos, que a havia de desforrar bem de todas as misérias passadas...
- Escuta ainda, murmurou ela, limpando as lágrimas. Há só uma coisa mais que te quero dizer. E é a santa verdade, juro-te pela alma de Rosa! É que nestas duas relações que tive o meu coração conservou-se adormecido... Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar nada, até que te vi... E ainda te quero dizer outra coisa...
Um momento hesitou, coberta de rubor. Passara os braços em torno de Carlos, pendurada toda dele, com os olhos mergulhados nos seus. E foi mais baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confissão de todo o seu ser:
- Além de ter o coração adormecido, o meu corpo permaneceu sempre frio, frio como um mármore...
Ele estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus lábios ficaram colados muito tempo, em silêncio, completando, numa emoção nova e quasi virginal, a comunhão perfeita das suas almas.
daí a dias Carlos e Ega vinham numa vitória, pela estrada dos Olivais, em caminho da Toca.
Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera enfim contando ao Ega o impulso de paixão que o lançara de novo e para sempre, como esposo, nos braços de Maria; e, na confiança absoluta que o prendia ao Ega, revelara-lhe mesmo miudamente a história dela, dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propôs que fossem comer as sopas à Toca. Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim começou a passar devagar a escova pelo paletó, murmurando, como durante as longas confidências de Carlos: «É prodigioso!... Que estranha coisa, a vida!»
E agora pela estrada, na aragem doce do rio, Carlos falava ainda de Maria, da vida na Toca deixando escapar do coração muito cheio o interminável cântico da sua felicidade.
- É facto, Egasinho, conheço quasi a felicidade perfeita!
- E cá na Toca ainda ninguém sabe nada?
Ninguém - a não ser Melanie, a confidente - suspeitava a profunda alteração que se fizera nas suas relações: e tinham assentado que miss Sarah e o Domingos, primeiras testemunhas da sua amizade, seriam regiamente recompensados e despedidos quando em fins de outubro eles partissem para Itália.
- E ides então casar a Roma?...
- Sim... Em qualquer lugar onde haja um altar e uma estola. Isso não falta em Itália... E é então, Ega, que reaparece o espinho de toda esta felicidade. É por isso que eu disse «quasi.» O terrível espinho, o avô! - É verdade, o velho Afonso. Tu não tens ideia como lhe hás-de fazer conhecer esse caso?...
Carlos não tinha ideia nenhuma. Sentia só que lhe faltava absolutamente a coragem de dizer ao avô: «esta mulher, com quem vou casar, teve na sua vida estes erros»... E além disso, já reflectira, era inútil. O avô nunca compreenderia os motivos complicados, fatais, iniludíveis que tinham arrastado Maria. Se lhos contasse miudamente o avô veria ali um romance confuso e frágil, antipático à sua natureza forte e cândida. A fealdade das culpas feri-lo-hia, exclusivamente; e não lhe deixaria apreciar, com serenidade, a irresistibilidade das causas. Para perceber este caso dum carácter nobre apanhado dentro duma implacável rede de fatalidades, seria necessário um espírito mais dúctil, mais mundano que o do avô... O velho Afonso era um bloco de granito: não se podiam esperar dele as subtis discriminações dum casuísta moderno. Da existência de Maria só veria o facto tangível: - caíra sucessivamente nos braços de dois homens. E daí decorreria toda a sua atitude de chefe de família. Para que havia ele pois de fazer ao velho uma confissão, que necessariamente originaria um conflito de sentimentos e uma irreparável separação domestica?...
- Pois não te parece, Ega?
- Fala mais baixo, olha o cocheiro.
- Não percebe bem o português, sobretudo o nosso estilo... Pois não te parece?
Ega raspava fósforos na sola para acender o charuto. E resmungava:
- Sim, o velho Afonso é granítico...
Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em esconder ao avô o passado de Maria - e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria. Casavam secretamente em Itália. Regressavam: ela para a rua de S. Francisco, ele filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos levava o avô a casa da sua boa amiga, que conhecera em Itália, M. de Mac-Gren. Para o prender logo lá estavam os encantos de Maria, todas as graças dum interior delicado e sério, jantarinhos perfeitos, ideias justas, Chopin, Beetoven, etc. E, para completar a conquista de quem tão enternecidamente adorava crianças, lá estava Rosa... Enfim, quando o avô estivesse namorado de Maria, da pequena, de tudo - ele, uma manhã, dizia-lhe francamente: «Esta criatura superior e adorável teve uma queda no seu passado; mas eu casei com ela; e, sendo tal como é, não fiz bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?» E o avô, perante esta terrível irremediabilidade do facto consumado, com toda a sua indulgência de velho enternecido a defender Maria - seria o primeiro a pensar que, se esse casamento não era o melhor segundo as regras do mundo, era decerto o melhor segundo os interesses do coração...
- Pois não te parece, Ega?
Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em resumo, adoptara para com o avô a complicada combinação que Maria Eduarda tentara para com ele - e imitava sem o sentir os subtis raciocínios dela.
- E acabou-se, continuava Carlos. Se ele na sua indulgência aceitar tudo, bravo! dá-se uma grande festa no Ramalhete... Senão, foi-se! passaremos a viver cada um para seu lado, fazendo ambos prevalecer a superioridade de duas coisas excelentes: o avô as tradições do sangue, eu os direitos do coração.
E, vendo o Ega ainda silencioso:
- Que te parece? Dize lá. Tu andas tão falto de ideias, homem!
O outro sacudiu a cabeça, como despertando.
- Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, nós somos dois homens falando como homens!... Então aqui está: teu avô tem quasi oitenta anos, tu tens vinte e sete ou o quer que seja... É doloroso dize-lo, ninguém o diz com mais dor que eu, mas teu avô há de morrer... Pois bem, espera até lá. Não cases. Supõe que ela tem um pai muito velho, teimoso e caturra, que detesta o Sr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera; continua a vir à Toca, na tipóia do Mulato; e deixa teu avô acabar a sua velhice calma, sem desilusões e sem desgostos...
Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da vitória. Nunca, nesses dias de inquietação, lhe acudira ideia tão sensata, tão fácil! Sim, era isso, esperar! Que melhor dever do que poupar ao pobre avô toda a dor?... Maria de certo, como mulher, estava desejando ansiosamente a conversão do amante no marido pelo laço de estola que tudo purifica e nenhuma força desata. Mas ela mesma preferiria uma consagração legal - que não fosse assim precipitada, dissimulada... Depois, tão recta e generosa, compreenderia bem a obrigação suprema de não mortificar aquele santo velho. De resto, não conhecia ela a sua lealdade sólida e pura como um diamante? Recebera a sua palavra: desde esse momento estavam casados, não diante do sacrário e nos registos da sacristia - mas diante da honra e na inabalável comunhão dos seus corações...
- Tens razão! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens imensamente razão! Essa ideia é genial! Devo esperar... E enquanto espero?...
- Como, enquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso não é comigo!
E mais sério:
- Enquanto esperas tens esse metal vil que faz a existência nobre. Instalas tua mulher, porque desde hoje é tua mulher, aqui nos Olivais ou noutro sítio, com o gosto, o conforto e a dignidade que competem a tua mulher... E deixas-te ir! Nada impede que façais essa viagem nupcial à Itália... Voltas, continuas a fumar a tua cigarrete e a deixar-te ir. Este é o bom senso: é assim que pensaria o grande Sancho Pansa... Que diabo tens tu naquele embrulho que cheira tão bem?
- Um ananás... Pois é isso, querido: esperar, deixar-me ir. É uma ideia!
Uma ideia! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com efeito enredar-se numa meada de amarguras domesticas, por um excesso de cavalheirismo romântico? Maria confiava nele; era rico, era moço; o mundo abria-se ante eles fácil e cheio de indulgências. Não tinha senão a deixar-se ir.
- Tens razão, Ega! E Maria é a primeira a achar isto cheio de senso e de oportunismo. Eu tenho uma certa pena em adiar a instalação da minha vida e do meu home. Mas, acabou-se! Antes de tudo que o avô seja feliz... E para celebrar o advento desta ideia, Deus queira que Maria nos tenha um bom jantar!
Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda. Incomodava-o esse enleio, esse rubor que ela não poderia ocultar - certa que, como confidente de Carlos, ele conhecia a sua vida, as suas misérias, as suas relações com Castro Gomes. Por isso hesitara em vir à Toca. Mas também, não aparecer mais a Maria Eduarda seria marcar com um relevo quasi ofensivo o desejo caridoso de não molestar o seu pudor... Por isso decidira «dar o mergulho duma vez». Quem, senão ele, deveria ser o mais apressado em estender a mão à noiva de Carlos?... Além disso tinha uma infinita curiosidade de ver no seu interior, à sua mesa, essa criatura tão bela, com a sua graça nobre de Deusa moderna! Mas saltou da vitória muito embaraçado.
Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada nos degraus do jardim. Teve um sobressalto, corou toda, com efeito, ao avistar o Ega que procurava atarantadamente o monóculo: o aperto de mão que trocaram foi mudo e tímido: mas Carlos, alegremente, desembrulhara o ananás - e na admiração dele todo o constrangimento se dissipou.
- Oh! é magnífico!
- Que cor, que luxo de tons!
- E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.
Ega não voltara à Toca desde a noite fatal da soirée dos Cohens em que ele ali tanto bebera e delirara tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo dum temporal, o grog do Craft, a ceia de peru...
- Já aqui sofri muito, minha senhora, vestido de Mefistófeles!...
- Por causa de Margarida?
- Por quem se há de sofrer neste apaixonado mundo, minha senhora, senão por Margarida ou por Fausto?
Mas Carlos quis que ele admirasse os esplendores novos da Toca. E foi já com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que só viesse assim à Toca no fim do verão e no fim das flores. Ega êxtaseou-se ruidosamente. Enfim, perdera a Toca o seu ar regelado e triste de museu! Já ali se podia palrar livremente!
- Isto é um bárbara, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror à arte! É um Ibero, é um Semita...
Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Ariano! E por isso mesmo não podia viver numa casa, em que cada cadeira tinha a solenidade sorumbática de antepassados com cabeleira...
- Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do século dezoito lembram antes a ligeireza, o espírito, a graça de maneiras...
- V. Exc.ª acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, esses rococós lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada! nós vivemos numa Democracia! E não há para exprimir a alegria simples, sólida e bonacheirona da Democracia, como largas poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!...
Assim numa risonha, ligeira discussão sobre bric-à-brac, desceram ao jardim.
Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na mão. Ega, que conhecia já os seus ardores nocturnos, cravou-lhe sofregamente o monóculo; e enquanto Maria se abaixara a cortar um gerânio, exprimiu a Carlos num gesto mudo a sua admiração por aquele beicinho escarlate, aquele seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto do caramanchão, encontraram Rosa que se balouçava. Ega pareceu deslumbrado com a sua beleza, a sua frescura mate de camélia branca. Pediu-lhe um beijo. Ela exigiu primeiro, muito séria, que ela tirasse o vidro do olho.
- Mas é para te ver melhor! é para te ver melhor!...
- Então porque não trazes um em cada olho? Assim só me vês metade...
Encantadora! Encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada e impudente. Maria resplandecia.
E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo à sopa, falando-se de campo e dum chalet que ele desejava construir em Sintra, nos Capuchos, dissera - «quando nos casarmos». E Ega aludiu a esse futuro do modo mais grato ao coração de Maria. Agora que Carlos se instalava para sempre numa felicidade estável (dizia ele) era necessário trabalhar! E relembrou então a sua velha ideia do Cenaculo, representado por uma Revista que dirigisse a literatura, educasse o gosto, elevasse a política, fizesse a civilização, remoçasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espírito, pela sua fortuna (até pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a direcção deste movimento. E que profunda alegria para o velho Afonso da Maia!
Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida toda de inteligência e de actividade, reabilitaria supremamente aquela união mostrando-lhe a influência fecunda e purificadora.
- Tem razão, tem bem razão! exclamava ela com ardor.
- Sem contar, acrescentava o Ega, que o país precisa de nós! Como muito bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o país não tem pessoal... Como há de te-lo, se nós, que possuímos as aptidões, nos contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos átomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biografia dum átomo!... No fim, este diletantismo é absurdo. Clamamos por ai, em botequins e livros, «que o país é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas ideias?... V. Exc.ª não conhece este país, minha senhora. É admirável! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas, banais, toscas, reles, rotineiras... É necessário pô-la em mãos de artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!...
Carlos ria, preparando numa travessa o ananás com sumo de laranja e vinho da Madeira. Mas Maria não queria que ele risse. A ideia do Ega parecia-lhe superior, inspirada num alto dever. Quasi tinha remorsos, dizia ela, daquela preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cerrado de afeição serena, queria-o ver trabalhar, mostrar-se, dominar...
- Com efeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou. E agora...
Mas o Domingos servia o ananás. E o Ega provou e rompeu em clamores de entusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delícia!
- Como fazes tu isto? Com Madeira...
- E génio! exclamou Carlos. Delicioso, não é verdade? Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela civilização valeria este prato de ananás! É para estas coisas que eu vivo! Eu não nasci para fazer civilização...
- Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flores dessa planta da civilização que a multidão rega com o seu suor! No fundo também eu, menino!
Não, não! Maria não queria que falassem assim!
- Esses ditos estragam tudo. E o Sr. Ega, em lugar de corromper Carlos, devia inspira-lo...
Ega protestou requebrando o olho, já lânguido. Se Carlos necessitava uma musa inspiradota e benéfica não podia ser ele, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava toute trouvée!
- Ah, com efeito!... Quantas paginas belas, quantas nobres ideias se não podem produzir num paraíso destes!...
E o seu gesto mole e acariciador indicava a Toca, a quietação dos arvoredos, a beleza de Maria. Depois na sala, enquanto Maria tocava um nocturno de Chopin e Carlos e ele acabavam os charutos à porta do jardim vendo nascer a lua - Ega declarou que, desde o começo do jantar, estava com ideias de casar!... Realmente não havia nada como o casamento, o interior, o ninho...
- Quando penso, menino, murmurou ele mordendo sombriamente o charuto, que quasi todo um ano da minha vida foi dado àquela israelita devassa que gosta de levar bordoada...
- Que faz ela em Sintra? perguntou Carlos.
- Ensopa-se na crápula. Não há a menor dúvida que dá todo o seu coração ao Dâmaso... Tu sabes o que nestes casos significa o termo coração... Viste já imundície igual? É simplesmente obscena!
- E tu adora-la, disse Carlos.
O outro não respondeu. Depois, dentro, num ódio repentino da boémia e do romantismo, entoou louvores sonoros à família, ao trabalho, aos altos deveres humanos - bebendo copinhos de cognac. Á meia noite, ao sair, tropeçou duas vezes na rua de acácias, já vago, citando Proudhon. E quando Carlos o ajudou a subir para a vitória, que ele quis descoberta para ir comunicado com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braço para lhe falar da Revista, dum forte vento de espiritualidade e de virtude viril que se devia fazer soprar sobre o país... Por fim, já estirado no assento, tirando o chapéu à aragem da noite:
- E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas a inglesa... Há vícios deliciosos naquelas pestanas baixas... Vê se ma arranjas... Vá lá, bate lá, cocheiro! Caramba, que beleza de noite!
Carlos ficara encantado com este primeiro jantar de amizade na Toca. Ele tencionava não apresentar Maria aos seus íntimos senão depois de casado e à volta de Itália. Mas agora a «união legal» estava já no seu pensamento adiada, remota, quasi dispersa no vago. Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se ir... E no entanto, Maria e ele não poderiam isolar-se ali todo um longo inverno, sem o calor sociável de alguns amigos em redor. Por isso uma manhã, encontrando o Cruges, que fora o vizinho de Maria e outrora lhe dava noticias da «lady inglesa», pediu-lhe para vir jantar à Toca no domingo.
O maestro apareceu numa tipóia, à tardinha, de laço branco e de casaca: e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e Ega começaram logo a enche-lo de mal-estar. Toda a mulher, além das Lolas e Conchas, o atarantava, o emudecia: Maria, «com o seu porte de grande-dame», como ele dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou diante dela, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar, por lembrança de Carlos, foram-lhe mostrar a quinta. O pobre maestro, roçando a casaca mal feita pela folhagem dos arbustos, fazia esforços ansiosos por murmurar algum elogio «á beleza do sítio»; mas escapavam-lhe então inexplicavelmente coisas reles, em calão: «vista catita»! «é pitada»! Depois ficava furioso, coberto de suor, sem compreender como se lhe babavam dos lábios esses ditos abomináveis, tão contrários ao seu gosto fino de artista. Quando se sentou à mesa sofria um negríssimo acesso de spleen e mudez! Nem uma controvérsia que Maria arranjara caridosamente para ele sobre Wagner e Verdi pôde descerrar-lhe os lábios empedernidos. Carlos ainda tentou envolve-lo na alegria da mesa - contando a ida a Sintra, quando ele procurava Maria na Lawrence, e em vez dela achara uma matrona obesa, de bigode, de cãosinho ao colo, ralhando com o homem em espanhol. Mas a cada exclamação de Carlos - «Lembras-te, Cruges?», «Não é verdade, Cruges?» - o maestro, rubro, grunhia apenas um sim avaro. Terminou por estar ali, ao lado de Maria, como um trambolho fúnebre. Estragou o jantar. Combinara-se para depois do café um passeio pelos arredores, num break. E Carlos já tomara as guias, Maria na almofada acabava de abotoar as luvas - quando Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do break, correu a buscar o paletó. Nesse mesmo momento sentiram um trote de cavalo na estrada - e apareceu o marquês.
Foi uma surpresa para Carlos, que o não vira durante esse verão. O marquês parou logo, tirando profundamente, ao ver Maria, o seu largo chapéu desabado.
- Imaginava-o pela Golegã! exclamou Carlos. Foi até o Cruges que me disse... Quando chegou vossê?
chegara na véspera. La fora ao Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha aos Olivais ver um dos Vargas que tinha casado, se instalara ali perto, a passar o noivado...
- Quem, o gordo, o das corridas?
- Não, o magro, o das regatas.
Carlos, debruçado da almofada, examinava a éguasita do marquês, pequena, bem estampada, dum baio escuro e bonito.
- Isso é novo?
- Uma facasita do Darque... Quer-ma vossê comprar? Sou já um pouco pesado para ela, e isto mete-se a um dog-cart...
- Dê lá uma volta.
O marquês deu a volta, bem posto na sela, avantajando a égua. Carlos achou-lhe «boas acções». Maria murmurou - «Muito bonita, uma cabeça fina...» Então Carlos apresentou o marquês de Souzela a madame Mac-Gren. Ele chegou a égua à roda, descoberto, para apertar a mão a Maria: e à espera do Ega que se eternizava lá dentro, ficaram falando do verão, de Santa Olavia, dos Olivais, da Toca... Há que tempos o marquês ali não passava! A ultima vez fora vítima da excentricidade do Craft...
- Imagine V. Exc.ª, disse ele a Maria Eduarda, que esse Craft me convida a almoçar. Venho, e o hortelão diz-me que o Sr. Craft, criado e cozinheiro, tudo partira para o Porto; mas que o Sr. Craft deixara um cartaz na sala... Vou à sala, e vejo dependurado ao pescoço dum ídolo japonês uma folha de papel com estas palavras pouco mais ou menos: «O deus Tchi tem a honra de convidar o Sr. marquês, em nome de seu amo ausente, a passar à sala de jantar onde encontrará, num aparador, queijo e vinho, que é o almoço que basta ao homem forte.» E foi com efeito o meu almoço... Para não estar só, partilhei-o com o hortelão.
- Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo.
- Pode crer, minha senhora... Convidei-o a jantar, e quando ele apareceu, vindo daqui da Toca, o meu guarda-portão disse-lhe que o Sr. marquês fora para longe, e que não havia nem pão nem queijo... Resultado: o Craft mandou-me uma dúzia de magníficas garrafas de Chambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a ver...
O deus Tchi la estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos convidou o marquês a revisitar nessa noite, à volta da casa do Vargas, o seu velho amigo Tchi.
O marquês veio, ás dez horas - e foi um serão encantador. Conseguiu sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o com mão de ferro para o piano; Maria cantou; palrou-se com graça; e aquele esconderijo de amor ficou alumiado até tarde, na sua primeira festa de amizade.
Estas reuniões alegres foram ao principio, como dizia o Ega, dominicais: mas o outono arrefecia, bem depressa se despiriam as árvores da Toca, e Carlos acumulou-as duas vezes por semana, nos velhos dias feriados da Universidade, domingos e quintas. Tinha descoberto uma admirável cozinheira alsaciana, educada nas grandes tradições, que servira o bispo de Strasburgo, e a quem as extravagâncias dum filho e outras desgraças tinham arrojado a Lisboa. Maria, de resto, punha na composição dos seus jantares uma ciência delicada: o dia de vir à Toca era considerado pelo marquês «dia de civilização».
A mesa resplandecia; e as tapeçarias representando massas de arvoredos punham em redor como a sombra escura dum retiro silvestre onde por um capricho se tivessem acendido candelabros de prata. Os vinhos saiam da frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisas da terra e do céu se grulhava com fantasia - menos de «política portuguesa», considerada conversa indecorosa entre pessoas de gosto.
Rosa aparecia ao café, exalando do seu sorriso, dos bracinhos nús, dos vestidos brancos tufados sobre as meias de seda preta, um bom aroma de flor. O marquês adorava-a, disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria em casamento e lhe andava compondo havia tempo um soneto. Ela preferia o marquês: achava o Ega «muito...» - e completava o seu pensamento com um gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega «era muito retorcido».
- Aí está! exclamava ele. Porque eu sou mais civilizado que o outro! É a simplicidade não compreendendo o requinte.
- Não, desgraçado! exclamavam do lado. É porque és impresso!... É a natureza repelindo a convenção!...
Bebia-se à saúde de Maria: ela sorria, feliz entre os seus novos amigos, divinamente bela, quasi sempre de escuro, com um curto decote onde resplandecia o incomparável esplendor do seu colo.
Depois organizaram-se solenidades. Num domingo, em que os sinos repicavam e a distância foguetes esfuziavam no ar - Ega lamentou que os seus austeros princípios filosóficos o impedissem de festejar também aquele santo de aldeia, que fora decerto em vida um caturra encantador, cheio de ilusões e doçura... Mas de resto, acrescentou, não teria sido num dia assim, fino e seco, sob um grande céu cheio de sol, que se feriu a batalha das Termópilas? Porque não se atiraria uma girândola de foguetes em honra de Leónidas e dos trezentos? E atirou-se a girândola pela eterna gloria de Esparta.
Depois celebraram-se outras datas históricas. O aniversario da descoberta da Vénus de Milo foi comemorado com um balão que ardeu. Noutra ocasião o marquês trouxe de Lisboa, apinhados numa tipóia, fadistas famosos, o Pintado, o Vira-vira e o Gago: e depois de jantar, até tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de Portugal.
Quando estavam sós, Carlos e Maria passavam as suas manhãs no quiosque japonês - afeiçoados àquele primeiro retiro dos seus amores, pequeno e apertado, onde os seus corações batiam mais perto um do outro. Em lugar das esteiras de palha Carlos revestira-o com as suas formosas colchas da índia, cor de palha e cor de pérola. Um dos maiores cuidados dele, agora, era embelezar a Toca: nunca voltava de Lisboa sem trazer alguma figurinha de Saxe, um marfim, uma faiança, como noivo feliz que aperfeiçoa o seu ninho.
Maria no entanto não cessava de lembrar os planos intelectuais do Ega: queria que ele trabalhasse, ganhasse um nome: seria isso o orgulho íntimo dela, e sobretudo a alegria suprema do avô. Para a contentar (mais que para satisfazer as suas necessidades de espírito) Carlos recomeçara a compor alguns dos seus artigos de medicina literária para a Gazeta Medica. Trabalhava no quiosque, de manhã. Trouxera para lá rascunhos, livros, o seu famoso manuscrito da Medicina antiga e moderna. E por fim achara um grande encanto em estar ali, com um leve casaco de seda, as suas cigarretes ao lado, um fresco murmúrio de arvoredo em redor - cinzelando as suas frases, enquanto ela ao lado bordava silenciosa. As suas ideias surgiam com mais originalidade, a sua forma ganhava em colorido, naquele estreito quiosque acetinado que ela perfumava com a sua presença. Maria respeitava este trabalho como coisa nobre e sagrada. De manhã, ela mesma espanejava os livros do leve pó que a aragem soprava pela janela; dispunha o papel branco, punha cuidadosamente penas novas; e andava bordando uma almofada de penas e cetim para que o trabalhador estivesse mais confortável na sua vasta cadeira de couro lavrado.
Um dia oferecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, entusiasmado com a letra dela, quasi comparável à lendária letra do Dâmaso, ocupava-a agora incessantemente como copista, sentindo mais amor por um trabalho a que ela se associava. Quantos cuidados se dava a doce criatura! Tinha para isso um papel especial, dum tom macio de marfim: e, com o dedinho no ar, ia desenrolando as pesadas considerações de Carlos sobre o Vitalismo e o Transformismo na graça delicada duma renda... Um beijo pagava-a de tudo.
As vezes Carlos dava lições a Rosa - ora de história, contando-lha familiarmente como um conto de fadas; ora de geografia, interessando-a pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm entre as ruínas dos santuários. Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda, cheia de religião, escutava aquele ser bem-amado ensinando sua filha. Deixava escapar das mãos o trabalho - e o interesse de Carlos, a enlevada atenção de Rosa sentada aos pés dele, bebendo aquelas belas histórias de Joana d'Arc ou das caravelas que foram à índia, fazia resplandecer nos seus olhos uma névoa de lágrimas felizes...
Desde o meado de outubro Afonso da Maia falava da sua partida de Santa Olavia, retardada apenas por algumas obras que começara na parte velha da casa e nas cocheiras: porque ultimamente invadira-o a paixão de edificar - sentindo-se remoçar, como ele dizia, no contacto das madeiras novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam também em abandonar os Olivais. Carlos não poderia por dever doméstico permanecer ali instalado desde que o avô recolhesse ao Ramalhete. Além disso aquele fim de outono ia escuro e agreste; e a Toca era agora pouco bucólica, com a quinta desfolhada e alagada, uma névoa sobre o rio, e um fogão único no gabinete de cretones - além da sumptuosa chaminé da sala de jantar, que, por entre os seus Núbios de olhos de cristal, soltava uma fumaraça odiosa quando o Domingos a tentava acender.
Numa dessas manhãs, Carlos, que ficara até tarde com Maria, e depois no seu delgado casebre mal pudera dormir com um temporal de vento e água desencadeado de madrugada - ergueu-se ás nove horas, veio à Toca. As janelas do quarto de Maria conservavam-se ainda cerradas; a manhã clareara; a quinta lavada, meio despida, no ar fino e azul, tinha uma linda e silenciosa graça de inverno. Carlos passeava, olhando os vasos onde os crisântemos floriam, quando retiniu a sineta do portão. Era o toque do carteiro. Justamente ele escrevera dias antes ao Cruges, perguntando se estaria desocupado para os primeiros frios de dezembro o andar da rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir, acompanhado por Niniche. Mas o correio, nessa manhã, consistia apenas numa carta do Ega e dois números de jornal cintados - um para ele, outro para «Madame Castro Gomes, na quinta do Sr. Craft, aos Olivais».
Caminhando sob as acácias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da véspera, com a data «á noite, à pressa». E dizia: «- Lê, nesse trapo que te «mando, esse superior pedaço de prosa que lembra Tácito. Mas não te «assustes; eu suprimi, mediante pecúnia, toda a tiragem, com excepção «de dois números mais que foram, um para a Toca, outro (oh «lógica suprema dos hábitos constitucionais!) para o Paço, para o chefe do «Estado!... Mas esse mesmo não chegará ao seu destino. Em todo o caso «desconfio de que esgoto saiu esse enxurro e precisamos providenciar! «Vem já! Espero-te até ás duas. E, como Iago dizia a Cassio - mete dinheiro na bolsa.»
Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a Corneta do Diabo: e na impressão, no papel, na abundancia dos itálicos, no tipo gasto, todo ele revelava imundície e malandrice. Logo na primeira pagina duas cruzes a lápis marcavam um artigo que Carlos, num relance, viu salpicado com o seu nome. E leu isto: «- Ora viva, sô Maia! «Então já se não vai ao consultório, nem se vêem os doentes do bairro, «sô janota? - Esta piada era botada no Chiado, à porta da «Havaneza, ao Maia, ao Maia dos cavalos ingleses, um tal Maia do «Ramalhete, que abarrota por aí de catita; e o pai Paulino que «tem olho e que passava nessa ocasião ouviu a seguinte «cornetada: - É que o sô Maia acha que é mais «quente viver nas fraldas duma brasileira casada, que nem é «brasileira nem é casada, e a quem o papalvo pôs casa, aí para o lado dos «Olivais, para estar ao fresco! Sempre os há neste mundo!... Pensa «o homem que botou conquista; e cá a rapaziada de gosto ri-se, porque o «que a gaja lhe quer não são os lindos olhos, são as lindas louras... «O simplório, que bate aí pilecas bifes, que nem que fosse o «marquês, o verdadeiro Marquês, imaginava que se estava «abiscoitando com uma senhora do chic, e do boulevard de Paris, e «casada, e titular!... E no fim (não, esta é para a gente deixar estoirar o «bandulho a rir!) no fim descobre-se que a tipa era uma cocote «safada, que trouxe para aí um brasileiro já farto dela para a «passar cá, aos belos lusitanos... E caiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! «Ainda assim o sô Maia só apanhou os restos de outro, porque a «tipa já antes dele se enfeitar, tinha pandegado à larga, «aí para a rua de S. Francisco com um rapaz da fina, que se safou «também, porque cá como nós só aprecia a bela espanhola. Mas «não obsta a que o sô Maia seja traste! - Pois se assim é, dissemos «nós, cautelinha, porque o diabo cá tem a sua Corneta preparada «para cornetear por esse mundo as façanhas do Maia das «conquistas. Ora viva, sô Maia!»
Carlos ficou imóvel entre as acácias, com o jornal na mão, no espanto furioso e mudo dum homem que subitamente recebe na face uma grossa chapada de lodo! Não era a cólera de ver o seu amor assim aviltado na publicidade chula dum jornal sórdido: era o horror de sentir aquelas frases em calão, pandilhas, afadistadas, como só Lisboa as pode criar, pingando fétidamente, à maneira de sebo, sobre si, sobre Maria, sobre o esplendor da sua paixão... Sentia-se todo emporcalhado. E uma única ideia surgiu através da sua confusão matar o bruto que escrevera aquilo.
Mata-lo! Ega sustara a tiragem da folha, Ega pois conhecia o foliculário. Nada importava que aqueles números, que tinha na mão, fossem os únicos impressos. Recebera lama na face. Que a injuria fosse espalhada nas praças numa profusa publicidade ou lhe fosse atirada só a ele escondidamente num papel único, era igual... Quem tanto ousara tinha de cair, esmagado!
Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos à janela da cozinha areava pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe falou de ir buscar um calhambeque aos Olivais, o bom Domingos consultou o relógio:
- V. Exc.ª tem às onze horas a caleche do Torto que a senhora mandou cá estar para ir a Lisboa...
Carlos, com efeito, recordou-se que Maria na véspera planeara ir à Aline e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente nesse dia em que ele precisava ficar livre - ele e a sua bengala! Mas Melanie, passando então com um jarro de água quente, disse que a senhora ainda se não vestira, que talvez nem fosse a Lisboa... E Carlos recomeçou a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras.
Sentou-se por fim no banco de cortiça, descintou a Corneta sobrescritada para Maria, releu lentamente a prosa imunda: e, nesse número que lhe fora destinado a ela, todo aquele calão lhe pareceu mais ultrajante, intolerável, punível só com sangue. Era monstruoso, na verdade, que sobre uma mulher, quieta, inofensiva no silêncio da sua casa, alguém ousasse tão brutalmente arremessar esse lodo ás mãos cheias! E a sua indignação alargava-se do foliculário que babara aquilo - até à sociedade que, na sua decomposição, produzira o foliculário. Decerto toda a cidade sofria a sua vermina... Mas só Lisboa, só a horrível Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calão, podia produzir uma Corneta do Diabo.
E, no meio desta alta cólera de moralista, uma dor perpassava, precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sórdido neste canto do mundo - mas, em suma, havia no artigo da Corneta uma calunia? Não. Era o passado de Maria, que ela arrancara de si como um vestido roto e sujo, que ele mesmo enterrara muito fundo, deitando-lhe por cima o seu amor e o seu nome - e que alguém desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora ameaçava para sempre a sua vida como um terror sobre ela suspenso. Debalde ele perdoara, debalde ele esquecera. O mundo em redor sabia. E a todo o tempo o interesse ou a perversidade poderiam refazer o artigo da Corneta.
Ergueu-se, abalado. E então ali, sob essas árvores desfolhadas, onde durante o verão, quando elas se enchiam de sombra e de murmúrio, ele passeara com Maria, esposa eleita da sua vida - Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que dele descendessem lhe permitiam em verdade casar com ela...
Dedicar-lhe toda a sua afeição, toda a sua fortuna, certamente! Mas casar... E se tivesse um filho? O seu filho, já homem, altivo e puro, poderia um dia ler numa Corneta do Diabo que sua mãe fora amante dum brasileiro, depois de ser amante dum irlandês. E se seu filho lhe viesse gritar, numa bela indignação, «é uma calunia?» - ele teria de baixar a cabeça, murmurar - «é uma verdade!» E seu filho veria para sempre colada a si aquela mãe de quem o mundo ignorava os martírios e os encantos - mas de quem conhecia cruelmente os erros.
E ela mesma! Se ele apelasse para a sua razão, alta e tão recta, mostrando-lhe as zombarias e as afrontas de que uma vil Corneta do Diabo poderia um dia trespassar o filho que deles nascesse - ela mesma o desligaria alegremente do seu voto, contente em entrar no Ramalhete pela escadinha secreta forrada de veludo cor de cereja, contanto que em cima a esperasse um amor constante e forte... Nunca ela tornara, em todo o verão, a aludir a uma união diferente dessa em que os seus corações viviam tão lealmente, tão confortavelmente. Não, Maria não era uma devota, preocupada «do pecado mortal»! Que lhe podia importar a estola banal do padre?...
Sim; mas ele que lhe pedira essa consagração na hora mais comovida do seu longo amor, iria dizer-lhe agora - «foi uma criancice, não pensemos mais nisso, desculpa?» Não; nem o seu coração o desejava! Antes pendia todo para ela... Pendia todo para ela, num enternecimento mais generoso e mais quente - enquanto a sua razão assim arengava, cautelosa e austera. Ele tinha naquela alma o seu culto perfeito, naqueles braços a sua voluptuosidade magnífica; fora dali não havia felicidade; a única sabedoria era prender-se a ela pelo derradeiro elo, o mais forte, o seu nome, embora as Cornetas do Diabo atroassem todo o ar. E assim afrontaria o mundo numa soberba revolta, afirmando a omnipotência, o reino único da Paixão... Mas primeiro mataria o foliculário! - Passeava, esmagava a relva. E todos os seus pensamentos se resolviam por fim em fúria contra o infame que babara sobre o seu amor, e durante um instante introduzia na sua vida tanta incerteza e tanto tormento!
Maria ao lado abriu a janela. Estava vestida de escuro para sair; e bastou o brilho terno do seu sorriso, aqueles ombros a que o estofo justo modelava a beleza cheia e quente - para que Carlos detestasse logo as dúvidas desleais e covardes, a que se abandonara um momento sob as árvores desfolhadas... Correu para ela. O beijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildade dum perdão que se implora.
- Que tens tu, que estás tão sério?
Ele sorriu. Sério, no sentido de solene, não estava. Talvez secado. Recebera uma carta do Ega, uma das eternas complicações do Ega. E precisava ir a Lisboa, ficar lá naturalmente toda a noite...
- Toda a noite? exclamou ela com um desapontamento, pousando-lhe as mãos sobre os ombros.
- Sim, é bem possível, um horror! Nos negócios do Ega há fatalmente o inesperado... Tu com efeito vais a Lisboa?
- Agora, com mais razão... Se me queres.
- O dia esta bonito... Mas há de fazer frio na estrada.
Maria justamente gostava desses dias de inverno, cheios de sol, com um arzinho vivo e arrepiado. Tornavam-na mais leve, mais esperta.
- Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almoço, minha filha... O pobre Ega deve estar a uivar de impaciência.
Enquanto Maria correra a apressar o Domingos - Carlos, através da relva húmida, foi ainda lentamente até ao renque baixo de arbustos que daquele lado fechava a Toca como uma sebe. Aí a colina descia, com quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chaminé de fabrica que fumegava: para além era o azul fino e frio do rio: depois os montes, dum azul mais carregado, com a casaria branca da povoação aninhada à beira da água, nítida e suave na transparência do ar macio. Parou um momento, olhando. E aquela aldeia de que nunca soubera o nome, tão quieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo repentino de sossego e de obscuridade, num canto assim do mundo, à beira de água, onde ninguém o conhecesse nem houvesse Cornetas do Diabo, e ele pudesse ter a paz dum simples e dum pobre debaixo de quatro telhas, no seio de quem amava...
Maria gritou por ele da janela da sala de jantar, onde se debruçara a apanhar uma das ultimas rosas trepadeiras que ainda floriam.
- Que lindo tempo para viajar, Maria! - disse Carlos chegando, através da relva.
- Lisboa é também muito linda, agora, havendo sol...
- Pois sim, mas o Chiado, a coscuvilhice, os politiquetes, as gazetas, todos os horrores... A mim está-me positivamente a apetecer uma cubata na África!
O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche do Torto começou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite. Logo adiante da vila, na descida, cruzaram um coupé que trepava num trote esfalfado. Maria julgou avistar nele de relance o chapéu branco e o monóculo do Ega... Pararam. E era com efeito o Ega, que reconhecera também a caleche da Toca, vinha já saltitando as lamas com longas pernadas de cegonha, chamando por Carlos.
Ao ver Maria ficou atrapalhado:
- Que bela surpresa! Eu ia para lá... Vi o dia tão bonito disse comigo...
- Bem, paga a tua tipóia, vem conosco! atalhou Carlos que trespassava o Ega, com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo daquela brusca chegada aos Olivais.
Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraçado, sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso da Corneta, começou, sob os olhos de Carlos que o não deixavam, a falar do inverno, das inundações do Riba-Tejo... Maria lera. Uma desgraça, duas crianças afogadas nos berços, gados perdidos, uma grande miséria! Por fim Carlos não se conteve:
- Eu lá recebi a tua carta...
Ega acudiu:
- Arranja-se tudo! Está tudo combinado! E com efeito eu não vim senão por um sentimento bucólico...
Muito discretamente Maria olhara para o rio. Ega fez então um gesto rápido com os dedos significando «dinheiro, só questão de dinheiro». Carlos sossegou: e Ega voltou a falar dos inundados do Riba-Tejo e do sarau literário e artístico que em beneficio deles se «ia cometer» no salão da Trindade... Era uma vasta solenidade oficial. Tenores do parlamento, rouxinóis da literatura, pianistas ornados com o habito de S. Tiago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo ia entrar em fogo. Os reis assistiam, já se teciam grinaldas de camélias para pendurar na sala. Ele, apesar de demagogo, fora convidado para ler um episódio das Memórias dum Átomo: recusara-se, por modéstia, por não encontrar nas Memórias nada tão suficientemente palerma que agradasse à capital. Mas lembrara o Cruges; e o maestro ia ribombar ou arrulhar uma das suas Meditações. Além disso havia uma poesia social pelo Alencar. Enfim, tudo prenunciava uma imensa orgia...
- E a Sr.ª D. Maria, acrescentou ele, devia ir!... É sumamente pitoresco. Tinha V. Exc.ª ocasião de ver todo o Portugal romântico e liberal, à la besogne, engravatado de branco, dando tudo que tem na alma!
- Com efeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges toca, se o Alencar recita, é uma festa nossa...
- Pois está claro! gritou Ega, procurando o monóculo, já excitado. Há duas coisas que é necessário ver em Lisboa... Uma procissão do Senhor dos Passos e um sarau poético!
Rolavam então pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que parasse no começo da rua do Alecrim: eles apeavam-se e tomavam de lá o Americano para o Ramalhete.
Mas a tipóia estacou antes da calçada, rente ao passeio, em frente duma loja de alfaiate. E nesse instante achava-se aí parado, calçando as suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas de apóstolo, todo vestido de luto. Ao ver Maria, que se inclinara à portinhola, o homem pareceu assombrado; depois, com uma leve cor na face larga e pálida, fitou gravemente o chapéu, um imenso chapéu de abas recurvas, à moda de 1830, carregado de crepe.
- Quem é? perguntou Carlos.
- É o tio do Dâmaso, o Guimarães, disse Maria, que corara também. É, curioso, ele aqui!
Ah, sim! o famoso Mr. Guimarães, o do Rapel, o íntimo de Gambeta! Carlos recordava-se de ter já encontrado aquele patriarca no Price com o Alencar. Cumprimentou-o também; o outro ergueu de novo com uma gravidade maior o seu sombrio chapéu de carbonário. Ega entalara vivamente o monóculo para examinar esse lendário tio do Dâmaso, que ajudava a governar a França: e depois de se despedirem de Maria, quando a caleche já subia a rua do Alecrim e eles atravessavam para o Hotel Central, ainda se voltou seduzido por aqueles modos, aquelas barbas austeras de revolucionário...
- Bom tipo! E que magnífico chapéu, hein! Donde diabo o conhece a Sr.ª D. Maria?
- De Paris... Este Mr. Guimarães era muito da mãe dela. A Maria já me tinha falado nele. É um pobre diabo. Nem amigo de Gambeta, nem coisa nenhuma... Traduz noticias dos jornais espanhóis para o Rapel, e morre de fome...
- Mas então, o Dâmaso?
- O Dâmaso é um trapalhão. Vamos nós ao nosso caso... Essa imundície que me mandaste, a Corneta Dize lá.
Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a história da imundície. Fora na véspera à tarde que recebera no Ramalhete a Corneta?. Ele já conhecia o papelucho, já privara mesmo com o proprietário e redactor - o Palma, chamado Palma Cavalão para se distinguir de outro benemérito chamado Palma Cavalinho. Compreendeu logo que se a prosa era do Palma a inspiração era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da casa da rua de S. Francisco, nem da Toca... Não era natural que escrevesse por deleite intelectual um documento que só lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fora-lhe simplesmente encomendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por este sólido principio correra a procurar o Palma Cavalão no seu antro.
- Também lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.
Tanto não... Fui perguntar à secretaria da Justiça a um sujeito que esteve associado com ele num negócio de Almanaques religiosos...
Fora pois ao antro. E encontrara as coisas dispostas pelas mãos hábeis duma Providencia amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis números, a máquina, esfalfada na pratica daquelas maroteiras, desmanchara-se. Além disso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe encomendara o artigo, por divergência na seriissima questão de pecúnia. De sorte que apenas ele propôs comprar a tiragem do jornal - o jornalista estendeu logo a mão larga, de unhas roídas, tremendo de reconhecimento e de esperança. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais dez...
- É caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, não regateei bastante... E enquanto a dizer quem é o cavalheiro que encomendou o artigo, o Palma, coitado, afirma que tem uma rapariga espanhola a sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, que Lisboa está caríssima, que a literatura neste desgraçado país...
- Quanto quer ele?
- Cem mil reis. Mas, ameaçando-o com a polícia, talvez desça a quarenta.
- Promete os cem, promete tudo, contanto que eu tenha o nome... Quem te parece que seja?
Ega encolheu os ombros, deu um risco lento no chão com a bengala. E mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador da Corneta devia ser alguém familiar com Castro Gomes; alguém frequentador da rua de S. Francisco; alguém conhecedor da Toca; alguém que tinha, por ciúme ou vingança, um desejo ferrenho de magoar Carlos; alguém que sabia a história de Maria; e enfim alguém que era um covarde...
- Estás a descrever o Dâmaso! exclamou Carlos, pálido e parando.
Ega encolheu de novo os ombros, tornou a riscar o chão:
- Talvez não... Quem sabe! Enfim, nós vamos averigua-lo com certeza, porque, para terminar a negociação, fiquei de me ir encontrar com o Palma ás três horas no Lisbonense... E o melhor é vires também. Trazes tu dinheiro?
- Se for o Dâmaso, mato-o! murmurou Carlos.
E não trazia suficiente dinheiro. Tomaram uma tipóia para correr ao escritório do Vilaça. O procurador fora a Mafra, a um baptizado. Carlos teve de ir pedir cem mil reis ao velho Cortez, alfaiate do avô. Quando perto das quatro horas se apearam à entrada do Lisbonense, no largo de Santa Justa, o Palma no portal, com um jaquetão de veludo coçado e calça de casimira clara colado à coxa, acendia um cigarro. Estendeu logo rasgadamente a mão a Carlos - que lhe não tocou. E Palma Cavalão, sem se ofender, com a mão abandonada no ar, declarou que ia justamente sair, cansado já de esperar em cima diante dum grog frio. De resto sentia que o Sr. Maia se incomodasse em vir ali...
- Eu arranjava cá o negociosinho com o amigo Ega... Em todo o caso, se os senhores querem, vamos lá para cima para um gabinete, que se está mais à vontade, e toma-se outra bebida.
Subindo a escada lôbrega, Carlos recordava-se de ter já visto aquela luneta de vidros grossos, aquela cara balofa cor de cidra... Sim, fora em Sintra, com o Euzebiosinho e duas espanholas, nesse dia em que ele farejara pelas estradas silenciosas, como um cão abandonado, procurando Maria!... Isto tornou-lhe mais odioso o Sr. Palma. Em cima entraram num cubículo, com uma janela gradeada por onde resvalava uma luz suja de saguão. Na toalha da mesa, salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um galheteiro que tinha moscas no azeite. O Sr. Palma bateu as palmas, mandou vir genebra. Depois dando um grande puxão ás calças:
- Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu já disse cá ao amigo Ega, em todo este negócio...
Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da bengala na borda da mesa.
- Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o Sr. Palma por me dizer quem lhe encomendou o artigo da Corneta?
- Dizer quem o encomendou, e prova-lo! acudiu o Ega, que examinava na parede uma gravura onde havia mulheres nuas à beira de água. Não nos basta o nome... O amigo Palma, está claro, é de toda a confiança... Mas enfim, que diabo, não é natural que nós acreditássemos se o amigo nos dissesse que tinha sido o Sr. D. Luís de Bragança!
Palma encolheu os ombros. Está visto que havia de dar provas. Ele podia ter outros defeitos, trapalhão não! Em negócios era todo franqueza e lisura... E, se se entendessem, ali as entregava logo, essas provas que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e de escachar! Tinha a carta do amigo que lhe encomendara a piada: a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta: o rascunho do artigo a lápis...
- Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos.
O Palma ficou um momento indeciso, ajeitando as lunetas com os dedos moles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: e então o redactor da Corneta ofereceu a «bebida» rasgadamente, puxou mesmo cadeiras para aqueles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram - Carlos de pé junto da mesa onde terminara por pousar a bengala, Ega passando a outra gravura onde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado saiu, Ega acercou-se, tocou com bonomia no ombro do jornalista:
- Cem mil reis são uma linda soma, Palma amigo! E olhe que se lhe oferecem por delicadeza consigo. Porque artiguinhos como este da Corneta apresentados na Boa-Hora, levam à grilheta!... Está claro, este caso é outro, vossê não teve intenção de ofender; mas levam à grilheta!... Foi assim que o Severino marchou para a África. Ali no porãosinho dum navio, com ração de marujo e chibatadas. Desagradável, muito desagradável. Por isso eu quis que tratássemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.
Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de açúcar dentro do copo de genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil reis...
Imediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um punhado de libras, que começou a deixar cair em silêncio uma a uma dentro dum prato. E Palma Cavalão, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetão, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monograma de prata sob uma enorme coroa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeu três papéis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o monóculo sôfrego, teve um brado de triunfo. Reconhecera a letra do Dâmaso!
Carlos examinou os papéis lentamente. Era uma carta do Dâmaso ao Palma, curta e em calão, remetendo o artigo, recomendando-lhe «que o apimentasse». Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo Dâmaso, com entrelinhas. Era a lista, escrita pelo Dâmaso, das pessoas que deviam receber a Corneta: vinha lá a Gouvarinho, o ministro do Brasil, D. Maria da Cunha, El-Rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, varias autoridades, e a Fanceli prima-dona...
Palma no entanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear os olhos aos documentos por cima do ombro de Carlos:
- Recolha o bago, amigo Palma! Negócios são negócios, e o baguinho está aí a arrefecer!
Então, ao palpar o ouro, Palma Cavalão comoveu-se. Palavra, caramba, se soubesse que se tratava dum cavalheiro como o Sr. Maia não tinha aceitado o artigo! Mas então!... Fora o Euzébio Silveira, rapaz amigo, que lhe viera falar. Depois o Salcede. E ambos com muitas lérias, e que era uma brincadeira, e que o Maia não se importava, e isto e aquilo, e muita promessa... Enfim deixara-se tentar. E tanto o Salcede como o Silveira se tinham portado pulhamente.
- Foi uma sorte que se escangalhasse a máquina! Senão estava agora entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba, tinha desgosto! Mas acabou-se! O mal não foi grande, e sempre se fez alguma coisa pela porca da vida.
Vivamente, com um olhar, recontara o dinheiro na palma da mão: depois esvaziou a genebra, dum trago consolado e ruidoso. Carlos guardara as cartas do Dâmaso, levantava já o fecho da porta. Mas voltou-se ainda, numa derradeira averiguação:
- Então esse meu amigo Euzébio Silveira também se meteu no negócio?...
O Sr. Palma, muito lealmente, afiançou que o Euzébio lhe falara apenas em nome do Dâmaso!
- O Euzébio, coitado, veio só como embaixador... Que o Dâmaso e eu não vamos muito na mesma bola. Ficámos esquisitos, desde uma pega em casa da Biscainha. Aqui para nós, eu prometi-lhe dois estalos na cara, e ele embuchou. Passados tempos tornámos a falar, quando eu fazia o High-life na Verdade. Ele veio-me pedir com bons modos, em nome do conde de Landim, para eu dar umas piadas catitas sobre um baile de anos... Depois, quando o Dâmaso fez também anos, eu dei outra piadita. Ele pagou a ceia, ficámos mais calhados... Mas é traste... E lá o Euzebiosinho, coitado, veio só de embaixador.
Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou o cubículo. O redactor da Corneta ainda baixou a cabeça para a porta; depois, sem se ofender, voltou alegremente à genebra, dando outro puxão ás calças. Ega no entanto acendia devagar o charuto.
- Vossê agora é que redige o jornal todo, Palma?
- O Silvestre, também...
- Que Silvestre?
- O que está com a Pingada. Vossê não conhece, creio eu. Um rapazola magro, que não é feio... Sensaborão, escreve uma palhada... Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de Gabelas, que ele chama a sua cabeluda... Que o Silvestre ás vezes tem graça! E sabe, sabe coisas da sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices... Vossê nunca leu nada dele? Chocho. Tenho sempre de lhe arranjar o estilo... Neste número é que havia um folhetinzito meu, catita, cá à moderna, como eu gosto, ali com a piadinha realista a bater... Enfim fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe agradeço. Quando quiser, eu e a Corneta ás ordens!
Ega estendeu-lhe a mão:
- Obrigado, digno Palma! E adiós!
- Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemérito homem com infinito salero.
Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.
- E agora? perguntou Ega, à portinhola.
- Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Dâmaso...
Carlos já esboçara sumariamente o plano dessa liquidação. Queria mandar desafiar o Dâmaso como autor comprovado dum artigo de jornal que o injuriava. O duelo devia ser à espada ou ao florete, um desses ferros cujo lampejo, na sala de armas do Ramalhete, fazia empalidecer o Dâmaso. Se contra toda a verosimilhança ele se batesse, Carlos fazia-lhe algures, entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse meses na cama. Senão a única explicação que Carlos aceitaria do Sr. Salcede seria um documento em que ele escrevesse esta coisa simples: «Eu abaixo assinado declaro que sou um infame.» E para estes serviços Carlos contava com o Ega.
- Agradeço! agradeço! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando as mãos, faiscando de jubilo.
No entanto, dizia ele, a etiqueta fúnebre reclamava outro padrinho; e lembrou o Cruges, moço passivo e maleável. Mas era impossível encontrar o maestro, porque invariavelmente a criada afirmava que o menino Victorino não estava em casa... Decidiram ir ao Grémio, mandar de lá um bilhete chamando o Cruges - «para um caso urgente de amizade e de arte».
- Com quê, dizia o Ega continuando a esfregar as mãos enquanto a tipóia trotava para a rua de S. Francisco, com quê, demolir o nosso Dâmaso?
- Sim, é necessário acabar com esta perseguição. Chega a ser ridículo... E com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por algum tempo. Eu preferia a estocada. Senão deixo-te a ti arranjar os termos duma carta forte...
- Hás de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.
No Grémio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por ele na sala das Ilustrações. O conde de Gouvarinho e Steinbroken conversavam de pé, no vão duma janela. E foi uma surpresa. O ministro da Finlândia abriu os braços para o cher Maia, que ele não vira desde a partida de Afonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente, reatando uma certa camaradagem que entre eles se formara nesse verão, em Sintra: mas o aperto de mão a Carlos foi seco e curto. Já dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho murmurara de leve e de passagem «um como está, Maia?» em que se sentia arrefecimento. Ah! já não eram essas efusões, essas palmadas enternecidas pelos ombros, dos tempos em que Carlos e a condessa fumavam cigarretes na cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos abandonara a Sr.ª condessa de Gouvarinho, a rua de S. Marçal e o cómodo sofá em que ela caia com um rumor de saias amarrotadas - o marido amuava, como abandonado também.
- Tenho tido saudade das nossas belas discussões em Sintra! disse ele, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outrora pertencia ao Maia. Tivemo-las de primeira ordem!
Eram realmente «pegas tremendas» no pátio do Victor sobre literatura, sobre religião, sobre moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por causa da divindade de Jesus.
- É verdade! acudiu o Ega. Vossê nessa noite parecia ter ás costas uma opa de irmão do Senhor dos Passos!
O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos não, graças a Deus! Ninguém melhor do que ele sabia que nesses sublimes episódios do Evangelho reinava bastante lenda... Mas enfim eram lendas que serviam para consolar a alma humana. É o que ele objectara nessa noite ao amigo Ega... Sentiam-se a filosofia e o racionalismo capazes de consolar a mãe que chora? Não. Então...
-Em todo o caso, tivemo-las brilhantes! concluiu ele olhando o relógio. E, eu confesso, uma discussão elevada sobre religião, sobre metafísica, encanta-me... Se a política me deixasse vagares dedicava-me à filosofia... Nasci para isso, para aprofundar problemas.
Steinbroken no entanto, esticado na sua sobre-casaca azul, com um raminho de alecrim ao peito, tomara as mãos de Carlos:
- Mais vous êtes encore devenu plus fort!... Et Afonso da Maia, toujours dans ses terres?... Est-ce qu'on ne va pas le voir un peu cet hiver?
E imediatamente lamentou não ter visitado Santa Olavia. Mas quê! a família real instalara-se em Sintra; ele fora forçado a acompanha-la, fazer a sua corte... Depois necessitara ir de fugida a Inglaterra de onde acabava de chegar, havia dias.
Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Ilustrada...
- Vous avez lu ça? Oh oui, on a été très aimable, très aimable pour moi à la Gazete...
Tinham-lhe anunciado a partida, depois a chegada, com palavras de amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta afeição sincera que liga Portugal e a Finlândia... «Mais enfin on avait été charmant, charmant!...»
- Seulement- ajuntou ele, sorrindo com finura e voltando-se também para o Gouvarinho - on a fait une petite erreur... On a dit que j'étais venu de Southampton par le Royal Mail... Ce n'est pas vrai, non! Je me suis embarqué à Bordeaux dans les Messageries. J'ai même pensé à écrire à Mr. Pinto, redacteur de la Gazete, qui est un charmant garçon... Puis, j'ai reflechi, je me suis dit: «Mon Dieu, on va croire que je veux doner une leçon de exactitude à la Gazete c'est très grave...» Alors, voilà, très prudement, j'ai gardé le silence... Mais enfin c'est une erreur: je me suis embarqué à Bordeaux.
Ega murmurou que a História se encarregaria um dia de rectificar esse facto. O ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia desejar, por polidez, que a História se não incomodasse. E então o Gouvarinho, que acendera o charuto, espreitara outra vez o relógio, perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do ministério e da crise.
Foi uma surpresa para ambos, que não tinham lido os jornais... Mas, exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em pleno remanso, com as câmaras fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo de outono?
O Gouvarinho encolheu os ombros com reserva. Houvera na véspera, à noitinha, uma reunião de ministros; nessa manhã o presidente do conselho fora ao paço, fardado, determinado a «largar o poder»... Não sabia mais. Não conferenciara com os seus amigos, nem mesmo fora ao seu Centro. Como noutras ocasiões de crise, conservara-se retirado, calado, esperando... Ali estivera toda a manhã, com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.
Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriótica...
- Porque enfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...
- Exactamente por isso, acudiu o conde com uma cor viva na face, não desejo pôr-me em evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a minha experiência, a minha palavra, o meu nome são necessários, os meus correligionários sabem onde eu estou, venham pedir-mos...
Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas políticas, começou logo a retrair-se para o fundo da janela, limpando os vidros da luneta, recolhido, já impenetrável, no grande recato neutral que competia à Finlândia. Ega no entanto não saia do seu espanto. Mas porque caia, porque caia assim um governo com maioria nas câmaras, sossego no país, o apoio do exercito, a benção da Igreja, a protecção do Comptoir d'Escompte?...
O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pêra, e murmurou esta razão:
- O ministério estava gasto.
- Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo.
O conde hesitou. Como uma vela de sebo não diria... Sebo subentendia obtusidade... Ora neste ministério sobrava o talento. Incontestavelmente havia lá talentos pujantes...
- Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao ar. É extraordinário! Neste abençoado país todos os políticos têm imenso talento. A oposição confessa sempre que os ministros, que ela cobre de injurias, têm, à parte os disparates que fazem, um talento de primeira ordem! Por outro lado a maioria admite que a oposição, a quem ela constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de robustíssimos talentos! De resto todo o mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta portanto este facto supra-cómico: um país governado com imenso talento, que é de todos na Europa, segundo o consenso unânime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a ver: que como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!
O conde sorria com bonomia e superioridade a estes exageros de fantasista. E Carlos, ansioso por ser amável, atalhou, acendendo o charuto no dele:
- Que pasta preferiria você, Gouvarinho, se os seus amigos subissem? A dos Estrangeiros, está claro...
O conde fez um largo gesto de abnegação. Era pouco natural que os seus amigos necessitassem da sua experiência política. Ele tornara-se sobretudo um homem de estudo e de teoria. Além disso não sabia bem se as ocupações da sua casa, a sua saúde, os seus hábitos lhe permitiriam tomar o fardo do governo. Em todo o caso, decerto, a pasta dos Estrangeiros não o tentava...
- Essa, nunca! prosseguiu ele, muito compenetrado. Para se poder falar de alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, é necessário ter por traz um exercito de duzentos mil homens e uma esquadra com torpedos. Nós, infelizmente, somos fracos... E eu, para papéis subalternos, para que venha um Bismarck, um Gladstone, dizer-me «há de ser assim», não estou!... Pois não acha, Steinbroken?
O ministro tossiu, balbuciou:
- Certainement... C'est très grave... C'est excessivement grave...
Ega então afirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interesse geográfico pela África, faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado...
Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.
- Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente noção da moral cristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros... Enfim o melhor está feito. Em todo o caso há ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso soa dar. Em Luanda precisava-se bem um teatro normal como elemento civilizador!
Nesse momento um criado veio anunciar a Carlos - que o Sr. Cruges estava em baixo, no portal, à espera. Imediatamente os dois amigos desceram.
- Extraordinário, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada.
- E este, observou Carlos com um imenso desdém de mundano, é um dos melhores que há na política. Pensando mesmo bem, e metendo a roupa branca em linha de conta, este é talvez o melhor.
Acharam o Cruges à porta, de jaquetão claro, embrulhando um cigarro. E Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa vestir uma sobrecasaca preta. O maestro arregalava os olhos.
- É jantar?
- É enterro.
E rapidamente, sem aludir a Maria, contaram ao maestro que o Dâmaso publicara num jornal, a Corneta do Diabo (cuja tiragem eles tinham suprimido, não sendo possível por isso mostrar o número imundo) um artigo em que a coisa mais doce que se chamava a Carlos era pulha. Portanto Ega e ele Cruges iam a casa do Dâmaso pedir-lhe a honra ou a vida.
- Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?... Que eu dessas coisas não entendo.
- Tens, explicou Ega, de ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o sobrolho. Depois vir comigo; não dizer nada; tratar o Dâmaso por «V. Exc.ª»; assentar em tudo o que eu propuser; e nunca desfranzir o sobrolho nem despir a sobrecasaca...
Sem outra observação, Cruges partiu a cobrir-se de cerimónia e de negro. Mas no meio da rua retrocedeu:
- Ó Carlos, olha que eu falei lá em casa. Os quartos do primeiro andar estão livres, e forrados de papel novo...
- Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!... O maestro abalara, quando diante do Grémio estacou a todo o trote uma caleche. De dentro saltou o Teles da Gama que, ainda com a mão no fecho da portinhola, gritou aos dois amigos:
- O Gouvarinho? está lá em cima?
- Está... Novidade fresca?
- Os homens caíram. Foi chamado o Sá Nunes!
E enfiou pelo pátio, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar até ao portão do Cruges. As janelas do primeiro andar estavam abertas, sem cortinas. Carlos, erguendo para lá os olhos, pensava nessa tarde das corridas em que ele viera no faeton, de Belém, para ver aquelas janelas: ia então escurecendo, por traz dos stores fechados surgira uma luz, ele contemplara-a como uma estrela inacessível... Como tudo passa!
Retrocederam para o Grémio. Justamente o Gouvarinho e Teles atiravam-se à pressa para dentro da caleche que esperara. Ega parou, deixou cair os braços:
- Lá vai o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a Dama das Camélias no sertão! Deus se amerceie de nós!
Mas o Cruges apareceu enfim de chapéu alto, entalado numa sobrecasaca solene, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na tipóia estreita e dura. Carlos ia leva-los a casa do Dâmaso. E como queria ainda jantar nos Olivais, esperaria por eles, para saber o resultado «do chinfrin», no jardim da Estrela, junto ao coreto.
- Sede rápidos e medonhos!
A casa do Dâmaso, velha e dum andar só tinha um enorme portão verde, com um arame pendente que fez ressoar dentro uma sineta triste de convento e os dois amigos esperaram muito antes que aparecesse, arrastando as chinelas, o galego achavascado que o Dâmaso (agora livre de Carlos e das suas pompas) já não trazia torturado em botins cruéis de verniz. A um canto do pátio uma portinha abria sobre a luz dum quintal, que parecia ser um deposito de caixotes, de garrafas vazias e de lixo.
O galego, que reconhecera o Sr. Ega, conduziu-os logo, por uma escadinha esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a mofo. Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade duma porta entreaberta. Quasi imediatamente Dâmaso gritou de lá:
- Ó Ega, é você? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Eu estou-me a vestir...
Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta efusão, Ega ergueu a voz da sombra do corredor, gravemente:
- Não tem dúvida, nós esperamos...
O Dâmaso insistia, à porta, em mangas de camisa, cruzando os suspensórios:
- Venha você, homem! Que diabo, eu não tenho vergonha, já estou de calças!
- Há aqui uma pessoa de cerimónia, gritou o Ega para findar.
A porta ao fundo cerrou-se, o galego veio abrir a sala. O tapete era exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor abundavam os vestígios da antiga amizade com o Maia: o retrato de Carlos a cavalo, num vistoso caixilho de flores em faiança: uma das colchas da índia das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano, arranjada por Carlos com alfinetes: e sobre um contador espanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de cetim de mulher, novo, que o Dâmaso comprara no Serra, por ter ouvido um dia a Carlos que «em todo o quarto de rapaz deve aparecer, discretamente disposta, alguma relíquia de amor...»
Sob estes retoques de chic, dados à pressa sob a influência do Maia, impertigava-se a sólida mobília do pai Salcede, de mogno e veludo azul; a console de mármore, com um relógio de bronze dourado, onde Diana acariciava um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de convites para soirées. E Cruges ia examinar estes documentos, quando os passos alegres do Dâmaso soaram no corredor. O maestro correu logo a perfilar-se ao lado do Ega, diante do canapé de veludo, teso, cómodo, com o seu chapéu alto na mão.
Ao vê-lo, o bom Dâmaso, que se abotoara todo numa sobrecasaca azul, florida por um botão de camélia, atirou risonhamente os braços ao ar:
- Então esta é que é a pessoa de cerimónia? Sempre vocês têm coisas! E eu a pôr sobrecasaca... Por pouco que não lhe afinfo com o habito de Cristo!...
Ega atalhou, muito sério:
- O Cruges não é de cerimónia, mas o motivo que aqui nos traz é delicado e grave, Dâmaso.
Dâmaso arregalou os olhos, reparando enfim naquele estranho modo dos seus amigos, ambos de negro, secos, tão solenes. E recuou, todo o sorriso se lhe apagou na face.
- Que diabo é isso? Sentem-se, sentem-se vocês...
A voz apagava-se-lhe também. Pousado à borda duma poltrona baixa, junto duma mesa coberta de encadernações ricas, com as mãos nos joelhos, ficou esperando, numa ansiedade.
- Nós vimos aqui, começou Ega, em nome do nosso amigo Carlos da Maia...
Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Dâmaso até à risca do cabelo encaracolado a ferro. E não achou uma palavra, atónito, sufocado, esfregando estupidamente os joelhos.
Ega prosseguiu, lento, direito no canapé:
- O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Dâmaso publicou, ou fez publicar, um artigo extremamente injurioso para ele e para uma senhora das relações dele na Corneta do Diabo...
- Na Corneta, eu? acudiu o Dâmaso, balbuciando. Que Corneta? Nunca escrevi em jornais, graças a Deus! Ora essa, a Corneta!...
Ega, muito friamente, tirou do bolso um maço de papéis. E veio coloca-los um por um, ao lado do Dâmaso, na mesa, sobre um magnífico volume da Bíblia de Doré.
- Aqui está a sua carta remetendo ao Palma Cavalão o rascunho do artigo... Aqui está, pela sua letra igualmente, a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta, desde o Rei até à Fanceli... Além disso nós temos as declarações do Palma. O Dâmaso é não só o inspirador, mas materialmente o autor do artigo... O nosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado, uma reparação pelas armas...
Dâmaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado - que involuntariamente Ega recuou, no receio duma brutalidade. Mas já o Dâmaso estava no meio da sala, esgazeado, com os braços trémulos no ar:
- Então o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz eu? Ele a mim é que me pregou uma partida!... Foi ele, vocês sabem perfeitamente que foi ele!...
E desabafou, num prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao peito, com os olhos marejados de lágrimas. Fora Carlos, Carlos, que o desfeitiara a ele, mortalmente! Durante todo o inverno tinha-o perseguido para que ele o apresentasse a uma senhora brasileira muito chic, que vivia em Paris, e que lhe fazia olho... E ele, bondoso como era, prometia, dizia: «Deixa estar, eu te apresento!» Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma ocasião sagrada, um momento de luto, quando ele Dâmaso fora ao Norte por causa da morte do tio, e mete-se dentro da casa da brasileira... E tanto intriga, que leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta, a ele, Dâmaso, que era íntimo do marido, íntimo de tu! Caramba, ele que devia mandar desafiar Carlos! Mas não! fora prudente, evitara o escândalo por causa do Sr. Afonso da Maia... Queixara-se de Carlos, é verdade... Mas no Grémio, na Casa Havaneza, entre rapaziada amiga... E no fim Carlos prega-lhe uma destas!
- Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!...
Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placidamente que se desviavam do ponto vivo da questão. O Dâmaso concebera, rascunhara, pagara o artigo da Corneta. Isso não o negava, nem o podia negar: as provas estavam ali, abertas sobre a mesa: eles tinham além disso a declaração do Palma...
- Esse desavergonhado! gritou o Dâmaso, levado noutra rajada de indignação que o fez redemoinhar, estonteado, tropeçando nos móveis. Esse descarado do Palma! Com esse é que eu me quero ver!... Lá a questão com o Carlos não vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com o Palma é que é! Esse traidor é que eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado ás meias libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipóias! Um ladrão que pediu o relógio ao Zeferino para figurar num baptizado, e pô-lo no prego!... E faz-me uma destas!... Mas hei de escavaca-lo! Onde é que você o viu, Ega? Diga lá, homem! Que quero ir procura-lo, hoje mesmo, corre-lo a chicotadas... Traições não, não admito a ninguém!
Ega, com a tranquilidade paciente de quem sente a presa certa, lembrou de novo a inutilidade daquelas divagações:
- Assim nunca acabamos, Dâmaso... O nosso ponto é este: o Dâmaso injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente dessa injuria, ou dá uma reparação pelas armas...
Mas o Dâmaso, sem escutar, apelava desesperadamente para o Cruges, que se não movera do sofá de veludo, esfregando, um contra o outro, com um ar arrepiado e de dor, os dois sapatos novos de verniz.
- Aquele Carlos! Um homem que se dizia meu amigo íntimo! Um homem que fazia de mim tudo! Até lhe copiava coisas... Você bem viu, Cruges. Diga! Fale, homem! Não sejam vocês todos contra mim!... Até ás vezes ia à alfândega despachar-lhe caixotes...
O maestro baixava os olhos, vermelho, num infinito mal-estar. E Ega, por fim, já farto, lançou uma intimação derradeira:
- Em resumo, Dâmaso, desdiz-se ou bate-se?
- Desdizer-me? tartamudeou o outro, empertigando-se, num penoso esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou lá homem que me desdiga!
- Perfeitamente, então bate-se...
Dâmaso cambaleou para traz, desvairado:
- Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu cá é a soco. Que venha para cá, não tenho medo dele, arrombo-o...
Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados e em riste. E queria Carlos ali para o escavacar! Não lhe faltava mais senão bater-se... E então duelos em Portugal, que acabavam sempre por troça!
Ega no entanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoara a sobrecasaca e recolhia os papéis espalhados sobre a Bíblia. Depois, serenamente, fez a ultima declaração de que fora incumbido. Como o Sr. Dâmaso Salcede recusava retractar-se e rejeitara também uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse daí por diante, fosse uma rua, fosse um teatro, lhe escarraria na face...
- Escarrar-me! berrou o outro, lívido, recuando, como se o escarro já viesse no ar.
E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre o Ega, agarrando-lhe as mãos, numa agonia:
- Ó João, ó João, tu, que és meu amigo, por quem és, livra-me desta entaladela!
Ega foi generoso. Desprendeu-se dele, empurrou-o brandamente para a poltrona, acalmando-o com palmadinhas fraternais pelo ombro. E declarou que, desde que Dâmaso apelava para a sua amizade, desaparecia o enviado de Carlos necessariamente exigente, ficava só o camarada, como no tempo dos Cohens e da vila Balzac. Queria pois o amigo Dâmaso um conselho? Era assinar uma carta afirmando que tudo o que fizera publicar na Corneta sobre o Sr. Carlos da Maia e certa senhora fora invenção falsa e gratuita. Só isto o salvava. Doutro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe na cara. E, dado esse desastre, Dâmasosinho, a não querer ser apontado em Lisboa como um incomparável cobarde, tinha de se bater à espada ou à pistola...
- Ora, em qualquer desses casos, você era um homem morto.
O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de veludo, com a face emparvecida para o Ega. Alargou molemente os braços, murmurou da profundidade do seu terror:
- Pois sim, eu assino, João, eu assino...
- É o que lhe convém... Arranje então papel. Você está perturbado, eu mesmo redijo.
Dâmaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago por sobre os móveis:
- Papel de carta? É para carta?
- Sim, está claro, uma carta ao Carlos!
Os passos do desgraçado perderam-se enfim no corredor, pesados e sucumbidos.
- Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arrepio, a mão aos sapatos.
Ega lançou-lhe um chut severo. Dâmaso voltava com o seu sumptuoso papel de monograma e coroa. Para envolver em silêncio e segredo aquele transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de veludo, desdobrando-se, mostrou o brazão de Salcede, onde havia um leão, uma torre, um braço armado, e por baixo, a letras de ouro, a sua formidável divisa: SOU FORTE! Imediatamente Ega afastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do Dâmaso...
- Eu faço o rascunho, você depois copia...
- Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluído na poltrona, passando o lenço pelo pescoço e pela face.
Ega no entanto escrevia muito lentamente, com amor. E naquele silêncio, que o embaraçava, Cruges terminou por se erguer, foi coxeando até ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho, bilhetes e fotografias. Eram as glorias sociais do Dâmaso, os documentos do chic a valer que era a paixão da sua vida: bilhetes com títulos, retratos de cantoras, convites para bailes, cartas de entrada no Hipódromo, diplomas de membro do Club Naval, de membro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos: - até pedaços cortados de jornais anunciando os anos, as partidas, as chegadas do Sr. Salcede, «um dos nossos mais distintos sportmen».
Desventuroso sportman! Aquela folha de papel, onde o Ega rascunhava, ia-o enchendo pouco a pouco dum terror angustioso. Santo Deus! Para que eram tantos apuros numa carta ao Carlos, um rapaz íntimo? Uma linha bastaria: - «Meu querido carlos, não te zangues, desculpa, foi brincadeira.» Mas não! Toda uma pagina de letra miúda com entrelinhas! Já mesmo Ega voltava a folha, molhava a pena, como se dela devessem escorrer sem cessar coisas humilhadoras! Não se conteve, estendeu a face por sobre a mesa, até o papel:
- Ó Ega, isso não é para publicar, pois não é verdade?
Ega reflectiu, com a pena no ar:
- Talvez não... Estou certo que não. Naturalmente Carlos, vendo o seu arrependimento, deixa isto esquecido no fundo duma gaveta.
Dâmaso respirou com alívio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente entre amigos! Que lá isso, mostrar o seu arrependimento, até ele desejava! Com efeito o artigo fora uma tolice... Mas então! Em questões de mulheres era assim, assomado, um leão...
Abanou-se com o lenço, desanuviado, recomeçando a achar sabor à vida. Findou mesmo por acender um charuto, levantar-se sem rumor acercar-se do Cruges - que, coxeando através das curiosidades da sala, encalhara sobre o piano e sobre os livros de música, com o pé dorido no ar.
- Então tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?
Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada.
Dâmaso ficou ali um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando um olhar inquieto à mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente, murmurou, sobre o ombro do maestro:
- Uma entaladela assim! Eu é por causa da gente conhecida... Senão não me importava! Mas veja você também se arranja as coisas e se o Carlos deixa aquilo na gaveta...
Justamente Ega erguera-se com o papel na mão e caminhava para o piano, devagar, relendo baixo.
- Ficou óptimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em forma de carta ao Carlos, é mais correcto. Você depois copia e assina. Ouça lá: «Exc.mo Sr... Está claro, você dá-lhe excelência, porque é um documento de honra... Exc.mo Sr. - Tendo-me V. Exc.ª, por intermédio dos seus amigos João da Ega e Victorino Cruges, manifestado a indignação que lhe causara um certo artigo da Corneta do Diabo de que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho declarar francamente a V. Exc.ª que esse artigo, como agora reconheço, não continha senão falsidades e incoerências: e a minha desculpa única está em que o compus e enviei à redacção da Corneta no momento de me achar no mais completo estado de embriaguez...»
Parou. E nem se voltou para o Dâmaso, que deixara pender os braços, rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o monóculo:
- Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a única maneira de ressalvar a dignidade do nosso Dâmaso.
E desenvolveu a sua ideia, mostrando quanto era generosa e hábil - enquanto o Dâmaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem ele queriam que o Dâmaso numa carta (que se podia tornar publica) declarasse «que caluniara por ser caluniador». Era necessário, pois, dar à calunia uma dessas causas fortuitas e ingovernáveis que tiram a responsabilidade ás acções. E que melhor, tratando-se dum rapaz mundano e femeeiro, do que estar bêbedo?... Não era vergonha para ninguém embebedar-se... O próprio Carlos, todos eles ali, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso era uma higiene e um luxo, muitos grandes homens na História bebiam de mais. Em Inglaterra era tão chic, que Pit, Fox e outros nunca falavam na Câmara dos comuns senão aos bordos. Musset, por exemplo, que bêbedo! Enfim a História, a Literatura, a Política, tudo fervilhava de piteiras... Ora, desde que o Dâmaso se declarava borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que apanhara uma carraspana e que cometera uma indiscrição... Nada mais!
- Pois não te parece, Cruges?
- Sim, talvez, que estava bêbedo, murmurou o maestro timidamente.
- Pois não lhe parece a você, francamente, Dâmaso?
- Sim, que estava bêbedo, balbuciou o desgraçado.
Imediatamente Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que é V. Exc.ª um carácter absolutamente nobre; e as outras pessoas, que nesse momento de embriaguez ousei salpicar de lama, são-me só merecedoras de veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a suceder soltar eu alguma palavra ofensiva para V. Exc.ª não lhe devia dar V. Exc.ª, ou aqueles que a escutassem, mais importância do que a que se dá a uma involuntária baforada de álcool - pois que, por um habito hereditário que reaparece frequentemente na minha família, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez... De V. Exc.ª, com toda a estima etc....» Rodou sobre os tacões, pousou o rascunho na mesa - e acendendo o charuto ao lume do Dâmaso, explicou com amizade, com bonomia, o que o determinara àquela confissão de bebedeira incorrigível e palreira. Fora ainda o desejo de garantir a tranquilidade do «nosso Dâmaso». Atribuindo todas as imprudências em que pudesse cair a um habito de intemperança hereditária, de que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo, o Dâmaso punha-se para sempre ao abrigo das provocações de Carlos...
- Você, Dâmaso, tem génio, tem língua... Um dia esquece-se, e no Grémio, sem querer, na cavaqueira depois do teatro, lá lhe escapa uma palavra contra Carlos... Sem esta precaução, aí recomeça a questão, o escarro, o duelo... Assim já Carlos não se pode queixar. Lá tem a explicação que tudo cobre, uma gota de mais, a gota tomada por impulso de borrachice hereditária... Você alcança deste modo a coisa que mais se apetece neste nosso século XIX - a irresponsabilidade!... E depois para a sua família não é vergonha, porque você não tem família. Em resumo, convem-lhe?
O pobre Dâmaso escutava-o, esmagado, enervado, sem compreender aquelas roncantes frases sobre «a hereditariedade», sobre «o século XIX». E um único sentimento vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz pachorrenta, livre de floretes e de escarros. Encolheu os ombros, sem força:
- Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar falatórios.
E abancou, meteu um bico novo na pena, escolheu uma folha de papel em que o monograma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua maravilhosa letra, com finos e grossos, duma nitidez de gravura em aço.
Ega no entanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em torno da mesa, seguindo sofregamente as linhas que traçava a mão aplicada do Dâmaso, ornada dum grosso anel de armas. E durante um momento atravessou-o um susto... Dâmaso parara, com a pena indecisa. Diabo! Acordaria enfim, no fundo de toda aquela gordura balofa, um resto escondido de dignidade, de revolta?... Dâmaso alçou para ele os olhos embaciados:
- Embriaguez é com n ou com m?
- Com um m, um m só, Dâmaso! acudiu Ega afectuosamente. Vai muito bem... Que linda letra você tem, caramba!
E o infeliz sorriu à sua própria letra - pondo a cabeça de lado, no orgulho sincero daquela soberba prenda.
Quando findou a cópia foi Ega que conferiu, pôs a pontuação. Era necessário que o documento fosse chic e perfeito.
- Quem é o seu tabelião, Dâmaso?
- O Nunes, na rua do Ouro... Porque?
- Oh! nada. É um detalhe que nestes casos se pergunta sempre. Mera cerimónia... Pois amigos, como papel, como letra, como estilo, está de apetite a cartinha!
Meteu-a logo num envelope onde rebrilhava a divisa «Sou Forte», sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapéu, batendo no ombro do Dâmaso com uma familiaridade folgazã e leve:
- Pois, Dâmaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fora de portas, numa poça de sangue! Assim é uma delícia. E adeus... Não se incomode você. Então o grande sarau sempre é na segunda-feira? Vai lá tudo, hein! Não venha cá, homem... Adeus!
Mas o Dâmaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietação que o assaltara:
- Isso não se mostra a ninguém, não é verdade, Ega?
Ega encolheu os ombros. O documento pertencia a Carlos... Mas enfim Carlos era tão bom rapaz, tão generoso!
Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Dâmaso:
- E chamei eu àquele homem meu amigo!
- Tudo na vida são desapontamentos, meu Dâmaso! foi a observação do Ega, saltando alegremente os degraus.
Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrela, Carlos já esperava ao portão de ferro, numa impaciência, por causa do jantar na Toca. Enfiou logo para dentro atropelando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse ao Loreto.
- E então, meus senhores, temos sangue?
- Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o envelope.
Carlos leu a carta do Dâmaso. E foi um imenso assombro:
- Isto é incrível!... Chega a ser humilhante para a natureza humana!
- O Dâmaso não é o género humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas tu? Que ele se batesse?
- Não sei, corta o coração... Que se há de fazer a isto?
Segundo o Ega não se devia publicar; seria criar curiosidade e escândalo em torno do artigo da Corneta que custara trinta libras a sufocar. Mas convinha conservar aquilo como uma ameaça pairando sobre o Dâmaso, tornando-o para longos anos nulo e inofensivo.
- Eu estou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: é obra tua, usa-o como quiseres...
Ega guardou-o com prazer, enquanto Carlos, batendo no joelho do maestro, queria saber como ele se portara naquele lance de honra...
- Pessimamente! gritou Ega. Com expressões de compaixão; sem linha nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a mão no sapato...
- Pudera! exclamou Cruges desafogando enfim. Vocês dizem-me que me ponha de cerimónia, calço uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde num tormento!
E não se conteve mais, arrancou o sapato, pálido, com um medonho suspiro de consolação.
No dia seguinte, depois do almoço, enquanto uma chuva grossa alagava os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no fumoir, enterrado numa poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do Dâmaso: e pouco a pouco subiu nele a mágoa de que esse colossal documento de cobardia humana, tão interessante para a fisiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado no escuro duma gaveta!... Que efeito, que soberbo efeito se aquela confissão do «nosso distinto sportman» surgisse um dia na Gazeta Ilustrada ou no novo jornal A Tarde, nas colunas do High-life, sob este título- PENDENCIA D'HONRA! E que lição, que meritório acto de justiça social!
Todo esse verão, Ega detestara o Dâmaso, certo, desde Sintra, de que ele era o amante da Cohen - e de que, por esse imbecil de grossas nádegas, esquecera ela para sempre a vila Balzac, as manhãs na colcha de cetim preto, os seus beijos delicados, os versos de Musset que lhe lia, os lunchesinhos de perdiz, tantos encantos poéticos. Mas o que lhe tornara o Dâmaso intolerável - fora a sua farófia radiante de homem preferido; o ar de posse com que passeava ao lado de Rachel pelas estradas de Sintra, vestido de flanela branca; os segredinhos que tinha sempre a cochichar-lhe sobre o ombro; e o acenosinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a ele próprio, Ega... Era odioso! Odiava-o: e através desse ódio ruminara sempre o desejo duma vingança - pancada, desonra ou ridículo que tornasse o Sr. Salcede, aos olhos de Rachel, desprezível, grotesco, chato como um balão furado...
E agora ali tinha essa carta providencial, em que o homem solenemente se declarava bêbedo. «Sou um bêbedo, estou sempre bêbedo»! Assim o dizia, no seu papel de monograma de ouro, o Sr. Salcede, num medo vil de cão gozo, rastejando com o rabo entre as pernas diante de qualquer pau!... Nenhuma mulher resistiria a isto... E havia de encafuar tão decisivo documento no fundo dum gavetão?
Publica-lo na Gazeta Ilustrada ou na Tarde não podia, infelizmente, por interesse de Carlos. Mas porque o não mostraria «em segredo», como uma curiosidade psicológica, ao Craft, ao marquês, ao Teles, ao Gouvarinho, ao primo do Cohen? Podia mesmo confiar uma cópia ao Taveira que, ressentido eternamente da questão com o Dâmaso em casa da Lola Gorda, correria a lê-la em segredo na Casa Havaneza, no bilhar do Grémio, no Silva, nos camarins de cantoras... E ao fim de uma semana a Sr.ª D. Rachel saberia inevitavelmente que o escolhido do seu coração era por confissão própria um caluniador e um bêbedo!... Delicioso!
Tão delicioso que não hesitou mais, subiu ao quarto para copiar a carta do Dâmaso. Mas quasi imediatamente um criado trouxe-lhe um telegrama de Afonso da Maia anunciando que chegava no dia seguinte ao Ramalhete. Ega teve de sair, telegrafar para os Olivais, avisar Carlos.
Carlos apareceu nessa noite, já tarde, transido de frio, com um monte de bagagens porque abandonara definitivamente os Olivais. Maria Eduarda regressava também a Lisboa, para o primeiro andar da rua de S. Francisco, tomado agora por seis meses, tapetado de novo pela mãe Cruges. E Carlos vinha muito impressionado, com profundas saudades da Toca. Depois de cear, ao fogão, acabando o charuto, relembrou infindavelmente esses dias alegres, a sua casinhola, o banho da manhã tomado dentro duma dorna, a festa do deus Tchi, as guitarradas do marquês, as longas cavaqueiras ao café com as janelas abertas e as borboletas voando em torno aos candeeiros... Fora as cordas de água, sob o vento de inverno, batiam os vidros na mudez da noite negra. Ambos terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos no lume.
- Quando esta tarde dei pela ultima vez uma volta na quinta, disse por fim Carlos, já não havia uma única folha nas árvores... Tu não sentes sempre uma grande melancolia nestes fins de outono?...
- Imensa! murmurou Ega lugubremente.
Ao outro dia a manhã clareava, limpa e branca, quando Ega e Carlos, ainda estremunhados e tiritando, se apearam em Santa Apolónia. O comboio acabava justamente de chegar; e viram logo, entre o rumor de gente que se escoava das portinholas abertas, Afonso, com o seu velho capote de gola de veludo, apegado a uma bengala, debatendo-se entre homens de boné agaloado que lhe ofereciam o Hotel Terreirense e a Pomba de Ouro. Atrás Mr. Antoine, o chefe francês, grave, de chapéu alto, trazia o cesto em que viajara o reverendo Bonifácio.
Carlos e Ega acharam Afonso mais acabado, mais pesado. Todavia gabaram-lhe muito, entre os primeiros abraços, a sua robustez de patriarca. Ele encolheu os ombros, queixando-se de ter sentido desde o fim do verão vertigens, um cansaço vago...
- Vocês é que estão excelentes, acrescentou abraçando outra vez Carlos e sorrindo ao Ega. E que ingratidão foi essa tua, John, metido aqui todo um verão sem me ir visitar?... Que tens tu feito? Que têm vocês feito?
- Mil coisas! acudiu Ega alegremente. Planos, ideias, títulos... Temos sobretudo o projecto duma Revista um aparelho de educação superior que vamos montar com uma força de mil cavalos!... Enfim logo se lhe conta tudo ao almoço.
E ao almoço, com efeito, para justificarem as suas ocupações em Lisboa, falaram da Revista como se ela já estivesse organizada e os artigos a imprimir na oficina - tanta foi a precisão com que lhe descreveram as tendências, a feição critica, as linhas de pensamento sobre que ela devia rolar... Ega já preparara um trabalho para o primeiro número - A capital dos portugueses. Carlos meditava uma série de ensaios à inglesa, sob este título - Porque falhou entre nós o sistema constitucional. E Afonso escutava, encantado com aquelas belas ambições de luta, querendo partilhar da grande obra como sócio capitalista... Mas Ega entendia que o Sr. Afonso da Maia devia descer à arena, lançar também a palavra do seu saber e da sua experiência. Então o velho riu. O quê! compor prosa, ele, que hesitava para traçar uma carta ao feitor? De resto o que teria a dizer ao seu país, como fruto da sua experiência, reduzia-se pobremente a três conselhos em três frases: aos políticos - «menos liberalismo e mais carácter»; aos homens de letras - «menos eloquência e mais ideia»; aos cidadãos em geral - «menos progresso e mais moral».
Isto entusiasmou o Ega! Justamente, aí estavam as verdadeiras feições da reforma espiritual que a Revista devia pregar! Era necessário toma-las como moto simbólico, inscreve-las em letras góticas no frontispício - porque Ega queria que a Revista fosse original logo na capa. E então a conversação desviou para o exterior da Revista - Carlos pretendendo que fosse azul-claro com tipo Renascença, Ega exigindo uma cópia exacta da Revista dos Dois Mundos, numa nuance mais cor de canário. E, levados pela sua imaginação de meridionais, já não era só para agradar a Afonso da Maia que iam levantando e dando forma àquele confuso plano.
Carlos exclamava para o Ega, com os olhos já apaixonados:
- Isto agora é sério. Precisamos arranjar imediatamente a casa para a redacção!
Ega bracejava:
- Pudera! E móveis! E máquinas!
Toda a manhã, no escritório de Afonso, azafamados, com papel e lápis, se ocuparam em fixar uma lista de colaboradores. Mas já as dificuldades surgiam. Quasi todos os escritores sugeridos desagradavam ao Ega, por lhes faltar no estilo aquele requinte plástico e parnasiano de que ele desejava que a Revista fosse o impecável modelo. E a Carlos alguns homens de letras pareciam impossíveis... - sem querer confessar que neles lhe repugnava exclusivamente a falta de linha e o fato mal feito...
Uma coisa porém ficou decidida: a casa da redacção. Devia ser mobilada luxuosamente, com sofás do consultório de Carlos e algum bric-à-brac da Toca: e sobre a porta (ornada dum guarda-portão de libré) a tabuleta de verniz preto, com Revista de Portugal em altas letras a ouro. Carlos sorria, esfregava as mãos, pensando na alegria de Maria ao saber esta decisão que o lançava, como era o desejo dela, na actividade, numa luta interessante de ideias. Ega, esse, via já a brochura cor de canário aos montões nas vitrines dos livreiros, discutida nas soirées do Gouvarinho, folheada na câmara com espanto pelos políticos...
- Vai-se remexer Lisboa este inverno, Sr. Afonso da Maia! gritou ele atirando um gesto imenso até ao tecto.
E o mais contente era o velho.
Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com ele à rua de S. Francisco (onde Maria se instalara nessa manhã) levarem a nova da grande obra. Mas encontraram à porta uma carroça descarregando malas; e a senhora, contou o Domingos que ajudava os carroceiros, esteve ainda jantando a um canto da mesa e sem toalha. Com tanta confusão na casa, Ega não quis subir.
- Até logo, disse ele. Vou talvez procurar o Simão Craveiro e falar-lhe da Revista.
Subiu lentamente o Chiado, leu os telegramas na Casa Havaneza. Depois à esquina da rua Nova da Trindade, um homem rouco, sumido num paletó, ofereceu-lhe uma «senhasinha». Outros, em volta, gritavam na sombra do Hotel Aliança:
- Bilhete para o Ginásio! Mais barato... Bilhete para o Ginásio! Quem vende?...
Havia um cruzar animado de carruagens com librés. Os bicos de gás do Ginásio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rosto com o Craft que atravessava do lado do Loreto, de gravata branca e flor no paletó.
- Que é isto?
- Festa de beneficência, não sei, disse o Craft. Uma coisa promovida por senhoras, a baronesa de Alvim mandou-me um bilhete... Venha você daí ajudar-me a levar esta caridade ao Calvário.
E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha. No peristilo do Ginásio encontraram Taveira passeando e fumando solitariamente, à espera que findasse a primeira comedia, o Fruto proibido. Então Craft propôs «botequim e genebra».
- E que há do ministério? perguntou ele, apenas abancaram a um canto.
O Taveira não subiu. Todos esses dois longos dias se intrigara desesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras Publicas: o Videira também. E falava-se duma cena terrível por causa de sindicatos, em casa do presidente do conselho, o Sá Nunes, que terminara por dar um murro na mesa, gritar: «Irra! que isto não é o pinhal de Azambuja!»
- Canalha! rosnou Ega com ódio.
Depois falaram do Ramalhete, da volta de Afonso, da reaparição do Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez nesse inverno uma casa com fogões, onde se passasse uma hora civilizada e inteligente.
Taveira acudiu com o olho brilhante:
- Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na rua de S. Francisco! Foi o marquês que me disse. Madame Mac-Gren vai receber.
Craft não sabia mesmo que ela já tivesse recolhido da Toca.
- Voltou hoje, disse o Ega. Você ainda não a conhece?... Encantadora.
- Creio que sim.
O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma beleza. E um ar tão simpático!
- Encantadora! repetiu Ega.
Mas o Fruto proibido findara, os homens enchiam o peristilo, num rumor lento, acendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira com a genebra, correu à plateia para descobrir o camarote da Alvim.
Mal erguera porém a cortina e assestara o monóculo - avistou defronte, na primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com um grande leque de rendas brancas; por traz nigrejavam as suissas fortes do marido; e em face dela, recostado no veludo da grade, de casaca, com a bochecha risonha, uma grossa pérola no peitilho da camisa, o Dâmaso, o bêbedo!
Ega caiu molemente, ao acaso, na borda duma cadeira: e perturbado, já esquecido da Alvim, ali ficou a olhar o pano coberto de anúncios, correndo os dedos trémulos pelo bigode.
No entanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeçou no joelho do Ega: outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissão a s. Exc.ª Ele não escutava, não percebia: os seus olhos, um momento errantes, tinham-se enfim cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de lá, numa emoção que o empalidecia.
Não a tornara a encontrar desde Sintra, onde só a via de longe, com vestidos claros sob o verde das árvores; e agora ali, toda de preto, em cabelo, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu colo, ela era outra vez a sua Rachel, dos tempos divinos da vila Balzac. Era assim que ele, todas as noites em S. Carlos, a contemplava do fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada ao tabique, saturado de felicidade. Lá tinha a sua luneta de ouro, presa por um fio de ouro. Parecia mais pálida, mais delicada, com o longo quebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lírio meio murcho: e como então os seus cabelos magníficos e pesados caiam habilmente numa massa meia solta sobre as costas, num desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor das cadeiras Ega revia, numa onda de recordações que o sufocava, o grande leito da vila Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa à borda do sofá, e a melancolia deliciosa das tardes, quando ela saia furtivamente, coberta de véus, e ele ficava, cansado, no crepúsculo poético do quarto, cantarolando a Traviata...
- V. Exc.ª dá licença, Sr. Ega?
Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira. Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o Sr. Sonsa Neto. O pano subira. Á borda da rampa um lacaio, piscando o olho à Plateia, fazia confidências sobre a patroa, de espanejador debaixo do braço. E Cohen, agora de pé, enchia o meio do camarote, cofiando as suissas com um correr lento da mão bem tratada, onde reluzia um diamante.
Ega então, num soberbo alarde de indiferença, cravou o monóculo no palco. O lacaio abalara espavorido, a um repique furioso de sineta; e uma megera azeda, de roupão verde e touca à banda, rompera de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida que batia o tacão, se esganiçava: «Pois hei de ama-lo sempre! hei de ama-lo sempre!»
Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e o Dâmaso, com as cabeças chegadas como em Sintra, cochichavam num sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu num imenso ódio ao Dâmaso! Colado à ombreira da porta, rilhava os dentes, num desejo de subir, escarrar-lhe na bochecha gorda.
E não desviava dele os olhos, que dardejavam. Na cena, um velho general, gotoso e resmungão, sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca. A Plateia ria, o Cohen ria. E nesse momento Dâmaso, que se debruçara no camarote com as mãos de fora, calçadas de gris-perle, descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Sintra um acenosinho petulante, muito de alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda na véspera aquele covarde se lhe agarrara ás mãos, tremendo todo, a gritar «que o salvasse!...»
Subitamente, com uma ideia, apalpou por sobre o bolso a carteira onde na véspera guardara a carta do Dâmaso... «Eu te arranjo!» murmurou ele. E abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da praça de Camões, num grande portão que uma lanterna alumiava. Era a redacção da Tarde.
Dentro do pátio desse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um sujeito encatarroado que lhe disse que o Neves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, político, director da Tarde, fora, havia anos, numas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e desde esse verão alegre em que o Neves lhe ficara sempre devendo três moedas, os dois tratavam-se por tu.
Foi encontra-lo numa vasta sala alumiada por bicos de gás sem globo, sentado na borda numa mesa atulhada de jornais, com o chapéu para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de província que o escutavam de pé, num respeito de crentes. Num vão de janela, com dois homens de idade, um rapaz esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabeleira crespa que parecia erguida numa rajada de vento, bracejava como um moinho na crista dum monte. E, abancado, outro sujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel.
Ao ver o Ega (um íntimo do Gouvarinho) ali na redacção, naquela noite de intriga e de crise, Neves cravou nele os olhos tão curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:
- Nada de política, negócio particular... Não te interrompas. Depois falaremos.
O outro findou a injuria que estava lançando ao José Bento, «essa grande besta que fora meter tudo no bico da amiga do Sousa e Sá, o par do reino» - e na sua impaciência saltou da mesa, travou do braço do Ega arrastando-o para um canto:
- Então que é?
- É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi ofendido aí por um sujeito muito conhecido. Nada de interessante. Um parágrafo imundo na Corneta do Diabo, por uma questão de cavalos... O Maia pediu-lhe explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, numa carta que quero que vocês publiquem.
A curiosidade do Neves flamejou:
- Quem é?
- O Dâmaso.
O Neves recuou de assombro:
- O Dâmaso!? Ora essa! Isso é extraordinário! Ainda esta tarde jantei com ele! Que diz a carta?
- Tudo. Pede perdão, declara que estava bêbedo, que é de profissão um bêbedo...
O Neves agitou as mãos com indignação:
- E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Dâmaso, nosso amigo político!... E que não fosse, não é questão de partido, é de decência! Eu faço lá isso!... Se fosse uma acta de duelo, uma coisa honrosa, explicações dignas... Mas uma carta em que um homem se declara bêbedo! Tu estás a mangar!
Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face, teve ainda uma revolta àquela ideia do Dâmaso se declarar bêbedo.
- Isso não pode ser! É absurdo! Aí há história... Deixa ver a carta.
E, mal relanceara os olhos ao papel, à larga assinatura floreada, rompeu num alarido:
- Isto não é o Dâmaso nem é letra do Dâmaso!... «Salcede»! Quem diabo é «Salcede»? Nunca foi o meu Dâmaso!
- É o meu Dâmaso, disse o Ega. O Dâmaso Salcede, um gordo...
O outro atirou os braços ao ar:
- O meu é o Guedes, homem, o Dâmaso Guedes! Não há outro! Que diabo, quando se diz o Dâmaso é o Guedes!...
Respirou com grande alívio:
- Irra, que me assustaste! Olha agora neste momento, com estas coisas de ministério, uma carta dessas escrita pelo Guedes... Se é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá... Não é um gordalhufo, um janota que tem uma propriedade em Sintra? Isso! Um maganão que nos entalou na eleição passada, fez gastar ao Silvério mais de trezentos mil reis... Perfeitamente, ás ordens... Ó Pereirinha, olhe aqui o Sr. Ega. Tem aí uma carta para sair amanhã, na primeira pagina, tipo largo...
O Sr. Pereirinha lembrou o artigo do Sr. Vieira da Costa sobre a «Reforma das Pautas».
- Vai depois! gritou o Neves. As questões de honra antes de tudo!
E voltou ao seu grupo onde agora se falava do conde de Gouvarinho, saltou para a borda da mesa, lançou logo o seu vozeirão de chefe, afirmando no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!
Ega acendeu o charuto, ficou um momento considerando aqueles sujeitos que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que a crise arrastara a Lisboa, arrancara à quietação das vilas e das quintas. O mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face a estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de porco. Outro, esguio, com o paletó solto sobre as costas em arco, tinha um queixo duro e maciço de cavalo: e dois padres muito rapados, muito morenos, fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar, conjunctamente apagado e desconfiado, que marca os homens de província, perdidos entre as tipóias e as intrigas da Capital. Vinham ali ás noites, àquele jornal do partido, saber as novas, beber do fino, uns com esperanças de empregos, outros por interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos o Neves era um «robusto talento»; admiravam-lhe a verbosidade e a táctica; decerto gostavam de citar nas lojas das suas vilas o amigo Neves, o jornalista, o da Tarde... Mas, através dessa admiração e do prazer de roçar por ele, percebia-se-lhes um vago medo que aquele «robusto talento» lhes pedisse, num vão de janela, duas ou três moedas. O Neves no entanto celebrava o Gouvarinho como orador. Não que tivesse os rasgos, a pureza, as belas sínteses históricas do José Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas não havia outro para as piadas que ferem e que ficam cravadas, ali a arder, na pele do touro! E era a grande coisa na Câmara - ter a farpa, sabe-la ferrar!
- Ó Gonçalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do trapézio? gritou ele virando-se para a janela, para o rapaz de jaquetão claro.
O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e malícia, estendeu o pescoço magro num colarinho muito decotado, lançou de lá:
- A do trapézio? Divina! Conta à rapaziada!
A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, à espera da «do trapézio». Fora na Câmara dos Pares, na reforma da instrução. Estava falando o Torres Valente, esse maluco que defendia a ginástica dos colégios e queria as meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue-se e atira-lhe esta:
«Sr. presidente, direi uma palavra só. Portugal sairá para sempre da senda do progresso, em que tanto se tem ilustrado, no dia em que nós formos ao ensino, com mão ímpia, substituir a cruz pelo trapézio!»
- Muito bem! rosnou um dos padres profundamente satisfeito.
E no murmúrio de admiração que se ergueu destacou um ganido - o do rapaz mais grosso que um pote, que mexia os ombros, chasqueava com uma risota na bochecha cor de tomate:
- Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sai é um grandissimo carola!
E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de província, liberais e finórios, que achavam aquele fidalgo excessivamente apegado à cruz. Mas já o Neves, de pé, bravejava:
- Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!... O Gouvarinho carola! Está claro que tem toda a orientação mental do século, é um racionalista, um positivista... Mas a questão aqui é a réplica, a táctica parlamentar! Desde que o tipo da maioria vem de lá com a descoberta do trapézio, Gouvarinho amigo, ainda que fosse tão ateu como Renan, zás! atira-lhe logo para cima com a cruz!... Isto é que é a estratégia parlamentar! Pois não é assim, Ega?
Ega murmurou, através do fumo do charuto:
- Sim, com efeito a cruz para isso ainda serve...
Mas nesse momento o sujeito calvo, que repelira a tira de papel e se espreguiçava, caído para as costas da cadeira, exausto, pediu ao Sr. João da Ega - que falasse à gente e guardasse o seu dinheiro...
Ega acercou-se logo daquele simpático homem, tão engraçado, tão querido de todos:
- Então, na grande faina, Melchior?
- Estou aqui a ver se faço uma coisa sobre o livro do Craveiro, os Cantos da Serra, e não me sai nada em termos... Não sei o que hei de dizer!
Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito camarada com o Melchior:
- Nada! Vocês aqui são simples localistas, noticiaristas, anunciadores. dum livro como o do Craveiro têm só respeitosamente a dizer onde se vende e quanto custa.
O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz da nuca:
- Então onde queria você que se falasse dos livros?... Nos reportórios?
Não, nas Revistas Criticas: ou então nos jornais - que fossem jornais, não papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de política em estilo mazorro ou em estilo fadista, um romance mal traduzido do francês por baixo e o resto cheio com «anos», despachos, parte de polícia e loteria da Misericórdia. E como em Portugal não havia nem jornais sérios nem Revistas Criticas - que se não falasse em parte nenhuma.
- Com efeito, murmurou Melchior, ninguém fala de nada, ninguém parece pensar em nada...
E com toda a razão, afirmou Ega. Certamente muito desse silêncio provinha do natural desejo que têm os que são medíocres de que se não aluda muito aos que são grandes. É a invejasinha reles e rastejante! Mas em geral o silêncio dos jornais para com os livros provém sobretudo deles terem abdicado todas as funções elevadas de estudo e de critica, de se terem tornado folhas rasteiras de informação caseira, e de sentirem por isso a sua incompetência...
- Está claro, não falo por você, Melchior, que é dos nossos e de primeira ordem! Mas os seus colegas, menino, calam-se por se saberem incompetentes...
O Melchior ergueu os ombros com um ar cansado e descrente:
- Calam-se também porque o publico não se importa, ninguém se importa...
Ega protestou, já excitado. O Publico não se importava!? Essa era curiosa! O Publico então não se importa que lhe falem de livros que ele compra aos três mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada a população de Portugal, caramba, é igual aos grandes sucessos de Paris e de Londres... Não, Melchiorzinho amigo, não! Esse silêncio diz ainda mais claramente e retumbantemente que as palavras: «Nós somos incompetentes. Nós estamos bestialisados pela noticia do Sr. conselheiro que chegou ou do Sr. conselheiro que partiu, pelos High-lifes, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo em descompostura e calão, por toda esta prosa chula em que nos atolamos... Nós não sabemos, não podemos já falar duma obra de arte ou duma obra de história, deste belo livro de versos ou deste belo livro de viagens. Não temos nem frases nem ideias. Não somos talvez cretinos - mas estamos cretinisados. A obra de literatura passa muito alto - nós chafurdamos aqui muito em baixo...»
- E aqui tem você, Melchior, o que diz, através do silêncio dos jornais, o coro dos jornalistas!
Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para traz, como quem goza uma bela ária. Depois com uma palmada na mesa:
- Caramba, ó Ega, muito bem fala você!... Você nunca pensou em ser deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: «O Ega! O Ega é que era, para atirar ali na câmara a piadinha à Rochefort. Ardia Troia!»
E imediatamente, enquanto Ega ria, contente, tornando a acender o charuto - Melchior arrebatou a pena:
- Você está em veia! Diga lá, dicte lá... Que hei de eu aqui pôr sobre o livro do Craveiro?
Ega quis saber o que escrevera já, o amigo Melchior. Apenas três linhas: «Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta Simão Craveiro. O precioso volume, onde cintilam em caprichosos relevos todas as jóias deste prestigioso escritor, é publicado pelos activos editores...» E aqui o Melchior emperrara. Melchior não gostava daquele frouxo termo - activos. Ega então sugeriu - empreendedores. Melchior emendou, leu:
- «...publicado pelos empreendedores editores...» Ora sebo, rima!
Arrojou a pena, descorçoado. Acabou-se! Não estava em verve. E além disso era tarde, tinha a rapariga à espera...
- Fica para amanhã... O pior é que já ando nisto há cinco dias! Irra! Você tem razão, a gente bestialisa-se. E faz-me raiva! Não é lá pelo livro, não me importa o livro... É pelo Craveiro, que é bom rapaz, e demais a mais pertence cá ao partido!
Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com desespero. E Ega ia ajuda-lo, limpar-lhe as costas cheias de cal - quando entre eles surgiu a face chupada e nervosa do Gonçalo, com a sua gaforinha perpetuamente erguida como por uma rajada de vento.
- Que está o Egasinho a fazer neste covil da noticia?
- Aqui a escovar o Sampaio... Estive também a ouvir o Neves, a grande frase do Gouvarinho...
O Gonçalo pulou, com uma faisca de malícia no olhos negros de algarvio esperto.
- A da cruz? Espantosa! Mas há melhor, há melhor!
Travou do braço do Ega, puxou-o para um canto da janela:
- É necessário falar baixo por causa da rapaziada de província... Há outra deliciosa. Eu não me lembro bem, o Neves é que sabe! É uma coisa da Liberdade conduzindo à mão o corcel do Progresso... O quer que seja assim, uma imagem equestre! A Liberdade com calções de jockey, o Progresso com um grande freio... Espantoso! Que besta, aquele Gouvarinho! E os outros, menino, os outros! Você não foi à câmara quando se discutiu a questão de Tondela? Extraordinário! O que se disse! Foi de morrer! E eu morro! Esta política, este S. Bento, esta eloquência, estes bacharéis matam-me. Querem dizer agora aí que isto por fim não é pior que a Bulgária. Histórias! Nunca houve uma choldra assim no universo!
- Choldra em que você chafurda! observou o Ega rindo.
O outro recuou com um grande gesto:
- Distingamos! Chafurdo por necessidade, como político: e troço por gosto, como artista!
Mas Ega justamente achava uma desgraça incomparável para o país - esse imoral desacordo entre a inteligência e o carácter. Assim, ali estava o amigo Gonçalo, como homem de inteligência, considerando o Gouvarinho um imbecil...
- Uma cavalgadura, corrigiu o outro.
- Perfeitamente! E todavia, como político, você quer essa cavalgadura para ministro, e vai apoia-la com votos e com discursos sempre que ela rinche ou escoucinhe.
Gonçalo correu lentamente a mão pela gaforinha, com a face franzida:
- É necessário, homem! Razões de disciplina e de solidariedade partidária... Há uns compromissos... O paço quer, gosta dele...
Espreitou em roda, murmurou, colado ao Ega:
- a aí umas questões de sindicatos, de banqueiros, de concessões em Moçambique... Dinheiro, menino, o omnipotente dinheiro!
E como Ega se curvava, vencido, cheio só de respeito - o outro, faiscando todo de finura e cinismo, atirou-lhe uma palmada ao ombro:
- Meu caro, a política hoje é uma coisa muito diferente! Nós fizemos como vocês os literatos. Antigamente a literatura era a imaginação, a fantasia, o ideal... Hoje é a realidade, a experiência, o facto positivo, o documento. Pois cá a política em Portugal também se lançou na corrente realista. No tempo da Regeneração e dos Históricos a política era o progresso, a viação, a liberdade, o palavrório... Nós mudamos tudo isso. Hoje é o facto positivo, - o dinheiro, o dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossa alma, menino! O divino dinheiro!
E de repente emudeceu, sentindo na sala um silêncio - onde o seu grito de «dinheiro! dinheiro!» parecera ficar vibrando, no ar quente do gás, com a prolongação de um toque de rebate acordando as cobiças, chamando ao longe e ao largo todos os hábeis para o saque da Pátria inerte!...
O Neves desaparecera. Os cavalheiros de província dispersavam, uns enfiando o paletó, outros sem pressa dando um olhar amortecido aos jornais sobre a mesa. E o Gonçalo bruscamente disse adeus ao Ega, rodou nos tacões, desapareceu também, abraçando ao passar um dos padres a quem tratou de «malandro!»
Era meia noite, Ega saiu. E na tipóia que o levava ao Ramalhete, já mais calmo, começou logo a reflectir que o resultado da publicação da carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A «questão de cavalos» com que o Neves se contentara prontamente, distraído e absorvido nessa noite pela crise, - ninguém mais a acreditaria... O Dâmaso decerto, interrogado, para se desculpar, contaria horrores de Maria e de Carlos: e uma intolerável luz de escândalo ia bater coisas que deviam permanecer na sombra. Eram talvez apoquentações, desesperos que ele assim estivera preparando a Carlos - por causa dum ódiosinho ao Dâmaso. Nada mais egoísta e pequeno!... E subindo para o quarto Ega decidia correr depois de almoço à redacção da Tarde, suster a publicação da carta.
Mas toda essa noite sonhou com Rachel e com Dâmaso. Via-os rolando por uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados numa carroça de bois, sobre um enxergão onde se desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha de cetim preto da vila Balzac: os dois beijavam-se, enroscados, sem pudor, sob a fresca sombra que caia dos ramos, ao chiar lento das rodas. E por um requinte do sonho cruel, ele Ega, sem perder a consciência e o orgulho de homem, era um dos bois que puxava ao carro! Os moscardos picavam-no, a canga pesava-lhe; e, a cada beijo mais cantado que atrás soava no carro, ele erguia o focinho a escorrer de baba, sacudia os cornos, mugia lamentavelmente para os céus!
Acordou nestes urros de agonia: e a sua cólera contra o Dâmaso ressurgiu, mais nutrida pelas incoerências do sonho. Além disso chovia. E decidiu não voltar à Tarde, deixar imprimir a carta. Que importava, de resto, o que dissesse o Dâmaso? O artigo da Corneta estava extinto, o Palma bem pago. - E quem jamais acreditaria num homem que nos jornais se declara caluniador e bêbedo?
E Carlos assim pensou também - quando, depois do almoço, Ega lhe contou a sua resolução da véspera ao ver o Dâmaso no camarote, de olho trocista posto nele, a segredar com os Cohens...
- Percebi claramente, sem erro possível, que estava a falar de ti, da Sr.ª D. Maria, de nós todos, contando horrores... E então acabou-se, não hesitei mais. Era necessário deixar passar a justiça de Deus! Não tiníamos paz enquanto o não aniquilássemos!
Sim, concordou Carlos, talvez. Somente receava que o avô, sabendo o escândalo, se desgostasse de ver o seu nome misturado a toda aquela sordidez de Corneta e de bebedeira...
- Ele não lê a Tarde, acudiu Ega. O rumor, se lhe chegar, é já vago e desfigurado.
Com efeito Afonso soube apenas confusamente que o Dâmaso soltara no Grémio algumas palavras desagradáveis para Carlos, e declarara depois num jornal que, nesse momento, estava bêbedo. E a opinião do velho foi - que se o Dâmaso estava embriagado (e de outro modo como teria injuriado Carlos, seu antigo amigo?) a sua declaração revelava extrema lealdade e um amor quasi heróico da verdade!
- Por esta não esperávamos nós! exclamou depois Ega no quarto de Carlos. O Dâmaso torna-se um justo!
De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da Corneta aprovavam a aniquilação do Dâmaso. Só o Craft sustentou que Carlos lhe devia ter antes dado «bengaladas secretas»; e o Taveira achou cruel que se dissesse ao desgraçado, com um florete ao peito - «ou a dignidade ou a vida!»
Mas dias depois não se falava mais nesse escândalo. Outras coisas interessavam o Chiado e a Casa Havaneza. O ministério fora formado, finalmente! Gouvarinho entrava na Marinha - Neves no Tribunal de Contas. Já os jornais do governo caído começavam, segundo a pratica constitucional, a achar o país irremediavelmente perdido, e a aludir ao rei com azedume... E o derradeiro, esvaído eco da carta do Dâmaso foi, na véspera do sarau da Trindade, um parágrafo da própria Tarde onde ela fora publicada, nestas amáveis palavras:
- «O nosso amigo e distinto sportman Dâmaso Salcede parte brevemente para uma viagem de recreio a Itália. Desejamos ao elegante touriste todas as prosperidades na sua bela excursão ao país do canto e das artes.»

Capítulo XVI
Ao fim do jantar, na rua de S. Francisco, Ega que se demorara no corredor a procurar a charuteira pelos bolsos do paletó, entrou na sala, perguntando a Maria, já sentada ao piano:
- Então, definitivamente, V. Exc.ª não vem ao sarau da Trindade?...
Ela voltou-se para dizer, preguiçosamente, por entre a valsa lenta que lhe cantava entre os dedos:
- Não me interessa, estou muito cansada...
- É uma seca, murmurou Carlos do lado, da vasta poltrona onde se estirara consoladamente, fumando, de olhos cerrados.
Ega protestou. Também era uma maçada subir ás Pirâmides no Egipto. E no entanto sofria-se invariavelmente, porque nem todos os dias pode um cristão trepar a um monumento que tem cinco mil anos de existência... Ora a Sr.ª D. Maria, neste sarau, ia ver por dez tostões uma coisa também rara,- a alma sentimental dum povo exibindo-se num palco, ao mesmo tempo nua e de casaca.
- Vá, coragem! um chapéu, um par de luvas, e a caminho!
Ela sorria, queixando-se de fadiga e preguiça.
- Bem, exclamou Ega, eu é que não quero perder o Rufino... Vamos lá, Carlos, mexe-te!
Mas Carlos implorou clemência:
- Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas notas do Hamlet. Temos tempo... Esse Rufino, e o Alencar, e os bons, só gorgeiam mais tarde...
Então Ega, cedendo também a todo aquele aconchego tépido e amável, enterrou-se no sofá com o charuto, para escutar a canção de Ofélia, de que Maria já murmurava baixo as palavras cismadoras e tristes:
Pâle et blonde,
Dort sous l'eau profonde...
Ega adorava esta velha balada escandinávia. Mais porém o encantava Maria que nunca lhe parecera tão bela: o vestido claro que tinha nessa noite modelava-a com a perfeição dum mármore: e entre as velas do piano, que lhe punham um traço de luz no perfil puro e tons de ouro esfiado no cabelo - o incomparável ebúrneo da sua pele ganhava em esplendor e mimo... Tudo nela era harmonioso, são, perfeito... E quanto aquela serenidade da sua forma devia tornar delicioso o ardor da sua paixão! Carlos era positivamente o homem mais feliz destes reinos! Em torno dele só havia facilidade, doçuras. Era rico, inteligente, duma saúde de pinheiro novo; passava a vida adorando e adorado; só tinha o número de inimigos que é necessário para confirmar uma superioridade; nunca sofrera de dispepsia; jogava as armas bastante para ser temido; e na sua complacência de forte nem a tolice publica o irritava. Ser verdadeiramente ditoso!.
- Quem é por fim esse Rufino? perguntou Carlos, alongando mais os pés pelo tapete, quando Maria findou a canção de Ofélia.
Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado...
Maria, que procurava os nocturnos de Chopin, voltou-se:
- É esse grande orador de que falavam na Toca?
Não, não! Esse era outro, a sério, um amigo de Coimbra, o José Clemente, homem de eloquência e de pensamento... Este Rufino era um ratão de pêra grande, deputado por Monção, e sublime nessa arte, antigamente nacional e hoje mais particularmente provinciana, de arranjar, num voz de teatro e de papo, combinações sonoras de palavras...
- Detesto isso! rosnou Carlos.
Maria também achava intolerável um sujeito a chilrear, sem ideias, como um pássaro num galho de árvore...
- É conforme a ocasião, observou Ega, olhando o relógio. Uma valsa de Strauss também não tem ideias, e à noite, com mulheres numa sala, é deliciosa...
Não, não! Maria entendia que essa retórica amesquinhava sempre a palavra humana, que, pela sua natureza mesma, só pode servir para dar forma, ás ideias. A música, essa, fala aos nervos. Se se cantar uma marcha a uma criança, ela ri-se e salta no colo...
- E se lhe leres uma pagina de Michelet, concluiu Carlos, o anjinho seca-se e berra!
- Sim, talvez, considerou o Ega. Tudo isso depende da latitude e dos costumes que ela cria. Não há inglês, por mais culto e espiritualista, que não tenha um fraco pela força, pelos atletas, pelo sport, pelos músculos de ferro. E nós, os meridionais, por mais críticos, gostamos do palavriadinho mavioso. Eu cá pelo menos, à noite, com mulheres, luzes, um piano e gente de casaca, pelo-me por um bocado de retórica.
E, com o apetite assim desperto, ergueu-se logo para enfiar o paletó, voar à Trindade, num receio de perder o Rufino.
Carlos deteve-o ainda, com uma grande ideia:
- Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau aqui! Maria toca Beetoven; nós declamamos Musset, Hugo, os parnasianos; temos padre Lacordaire se te apetece a eloquência; e passa-se a noite numa medonha orgia de ideal!...
- E há melhores cadeiras, acudiu Maria.
- Melhores poetas, afirmou Carlos.
- Bons charutos!
- Bom cognac!
Ega alçou os braços ao ar, desolado. Aí está como se pervertia um cidadão, impedindo-o de proteger as letras pátrias - com promessas pérfidas de tabaco e de bebidas!... Mas de resto ele não tinha só uma razão literária para ir ao sarau. O Cruges tocava uma das suas Meditações de Outono, e era necessário dar palmas ao Cruges.
- Não digas mais! gritou Carlos, dando um pulo da poltrona. Esquecia-me o Cruges!... É um dever de honra! Abalemos.
E daí a pouco, tendo beijado a mão de Maria que ficava ao piano, os dois, surpreendidos com a beleza dessa noite de inverno, tão clara e doce, seguiam devagar pela rua - onde Carlos ainda duas vezes se voltou para olhar as janelas alumiadas.
- Estou bem contente, exclamou ele travando do braço do Ega, em ter deixado os Olivais!... Aqui ao menos podemos reunir-nos para um bocado de cavaco e de literatura...
Tencionava arranjar a sala com mais gosto e conforto, converter o quarto ao lado num fumoir forrado com as suas colchas da índia, depois ter um dia certo em que viessem os amigos cear... Assim se realizava o velho sonho, o cenaculo de diletantismo e de arte... Além disso havia a lançar a Revista, que era a suprema pândega intelectual. Tudo isto anunciava um inverno chic a valer, como dizia o defunto Dâmaso.
- E tudo isto, resumiu o Ega, é dar civilização ao país. Positivamente, menino, vamo-nos tornar grandes cidadãos!...
- Se me quiserem erguer uma estátua, disse Carlos alegremente, que seja aqui na rua de S. Francisco... Que beleza de noite!
Pararam à porta do teatro da Trindade no momento em que, duma tipóia de praça, se apeava um sujeito de barbas de apóstolo, todo de luto, com um chapéu de largas abas recurvas à moda de 1830. Passou junto dos dois amigos sem os ver, recolhendo um troco à bolsa. Mas Ega reconheceu-o.
- É o tio do Dâmaso, o demagogo! Belo tipo!
- E segundo o Dâmaso, um dos bêbedos da família, lembrou Carlos rindo.
Por cima, de repente, no salão, estalaram grandes palmas. Carlos, que dava o paletó ao porteiro, receou que já fosse o Cruges...
- Qual! disse o Ega. Aquilo é aplaudir de retórica!
E com efeito, quando pela escada ornada de plantas chegaram ao ante-salão, onde dois sujeitos de casaca passeavam em bicos de pés, segredando - sentiram logo um vozeirão tumido, garganteado, provinciano, de vogais arrastadas em canto, invocando lá do fundo, do estrado, «a alma religiosa de Lamartine!...»
- É o Rufino, tem estado soberbo! murmurou o Teles da Gama que não passara da porta, com o charuto escondido atrás das costas.
Carlos, sem curiosidade, ficou junto do Teles. Mas Ega, esguio e magro, foi rompendo pela coxia tapetada de vermelho. De ambos os lados se cerravam filas de cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até junto ao tablado, onde dominavam os chapéus de senhoras picados por manchas claras de plumas ou flores. Em volta, de pé, encostados aos pilares ligeiros que sustêm a galeria, reflectidos pelos espelhos, estavam os homens, a gente do Grémio, da Casa Havaneza, das Secretarias, uns de gravata branca, outros de jaquetões. Ega avistou o Sr. Sousa Neto, pensativo, sustentando entre dois dedos a face escaveirada, de barba rala; adiante o Gonçalo, com a sua gaforinha ao vento; depois o marquês atabafado num cache-nez de seda branca; e, num grupo, mais longe, rapazes do Jockey Club, os dois Vargas, o Mendonça, o Pinheiro, assistindo àquele sport da eloquência com uma mistura de assombro e tédio. Por cima, no parapeito de veludo da galeria, corria outra linha de senhoras com vestidos claros, abanando-se molemente; por traz alçava-se ainda uma fila de cavalheiros onde destacava o Neves, o novo Conselheiro, grave, de braços cruzados, com um botão de camélia na casaca mal feita.
O gás sufocava, vibrando cruamente naquela sala clara, dum tom desmaiado de canário, raiada de reflexos de espelhos. Aqui e além uma tosse tímida de catarro desmanchava o silêncio, logo abafada no lenço. E na extremidade da galeria, num camarote feito de tabiques, com sanefas de veludo cor de cereja, duas cadeiras de espaldar dourado permaneciam vazias, na solenidade real do seu damasco escarlate.
No entanto, no estrado, o Rufino, um bacharel transmontano, muito trigueiro, de pura, alargava os braços, celebrava um anjo, «o Anjo da Esmola que ele entrevira, além no azul, batendo as asas de cetim...» Ega não compreendia bem - entalado entre um padre muito gordo que pingava de suor, e um alferes de lunetas escuras. Por fim não se conteve:- «Sobre que está ele a falar?» E foi o padre que o informou, com a face luzidia, inflamada de entusiasmo:
- Tudo sobre a caridade, sobre o progresso! Tem estado sublime... Infelizmente está a acabar!
Parecia ser, com efeito, a peroração. O Rufino arrebatara o lenço, limpara a testa lentamente; depois arremeteu para a borda do tablado, voltando-se para as cadeiras reais com um tão ardente gesto de inspiração - que o colete repuxado descobriu o começo da ceroula. Foi então que Ega compreendeu. Rufino estava exaltando uma princesa que dera seiscentos mil reis para os inundados do Ribatejo, e ia a beneficio deles organizar um bazar na Tapada. Mas não era só essa soberba esmola que deslumbrava o Rufino - porque ele, «como todos os homens educados pela filosofia e que têm a verdadeira orientação mental do seu tempo, via nos grandes factos da história não só a sua beleza poética, mas a sua influência social. A multidão, essa, sorria simplesmente, enlevada, para a incomparável poesia da mão calçada de fina luva que se estende para o pobre. Ele porém, filósofo, antevia já, saindo desses delicados dedos de princesa, um resultado bem profundo e formoso... O quê, meus senhores? O renascimento da Fé!»
De repente, um leque que escorregara da galeria, arrancando em baixo um berro a uma senhora gorda, criou um sussurro, uma curta emoção. Um comissário do sarau, D. José Sequeira, ergueu-se logo nos degraus do tablado, com o seu laçarote de seda vermelha na casaca, dardejando severamente os olhos vesgos para o recanto indisciplinado onde curtos risos esfuziavam. Outros cavalheiros, indignados, gritavam «chut, silêncio, fora!» E das cadeiras da frente surgiu a face ministerial do Gouvarinho, inquieta pela Ordem, com as lunetas brilhando duramente... Então Ega procurou ao lado a condessa: e avistou-a enfim mais longe, com um chapéu azul, entre a Alvim toda de preto e umas vastas espáduas cobertas de cetim malva que eram as da baronesa de Craben. Todo o rumor findava - e o Rufino, que molhara lentamente os lábios no copo, avançou um passo, sorrindo, com o lenço branco na mão:
- Dizia eu, meus senhores, que dada a orientação mental deste século...
Mas o Ega sufocava, esmagado, farto do Rufino, com a impressão de que o padre ao lado cheirava mal. E não aturou mais, furou para traz, para desabafar com Carlos.
- Tu imaginavas uma besta assim?
- Horroroso! murmurou Carlos. Quando tocará o Cruges?
Ega não sabia, todo o programa fora alterado.
- E tens cá a Gouvarinho! Está lá adiante, de azul... Hei de querer ver logo esse encontro!
Mas ambos se voltaram sentindo por traz alguém ciciar discretamente «bonsoir, messieurs...» Era Steinbroken e o seu secretario, graves, de casaca, em pontas de pés, com as claques fechadas. E imediatamente Steinbroken queixou-se da ausência da família real...
- Mr. de Cantanhede, qui est de service, m'avait cependant assuré que la reine viendrait... C'est bien sous sa protection, nest-ce pas, toute cete musique, ces vers?... Voilà pourquoi je suis venu. C'est très enuyeux... Et Alfonse de Maia, toujours en santé?
- Merci...
Na sala o silêncio impressionava. Rufino, com gestos de quem traça numa tela linhas lentas e nobres, descrevia a doçura duma aldeia, a aldeia em que ele nascera, ao pôr do sol. E o seu vozeirão velava-se, enternecido, morrendo num rumor de crepúsculo. Então Steinbroken, subtilmente, tocou no ombro do Ega. Queria saber se era esse o grande orador de que lhe tinham falado...
Ega afirmou com patriotismo que era um dos maiores oradores da Europa!
- Em qual género?...
- Género sublime, género de Demóstenes!
Steinbroken alçou as sobrancelhas com admiração, falou em filandês ao seu secretario que entalou languidamente o monóculo: e com as claques debaixo do braço, cerrados os olhos, recolhidos como num templo, os dois enviados da Finlândia ficaram escutando, à espera do sublime.
Rufino, no entanto, com as mãos descaídas, confessava uma fragilidade de sua alma! Apesar da poesia ambiente dessa sua aldeia natal, onde a violeta em cada prado, o rouxinol em cada balseira provavam Deus irrefutavelmente, - ele fora dilacerado pelo espinho da descrença! Sim, quantas vezes, ao cair da tarde, quando os sinos da velha torre choravam no ar a Ave-Maria e no vale cantavam as ceifeiras, ele passara junto da cruz do adro e da cruz do cemitério, atirando-lhes de lado, cruelmente, o sorriso frio de Voltaire...
Um largo frémito de emoção passou. Vozes sufocadas de gozo mal podiam: murmurar «muito bem, muito bem...»
Pois fora nesse estado, devorado pela dúvida, que Rufino ouvira um grito de horror ressoar por sobre o nosso Portugal... Que sucedera? Era a Natureza que atacava seus filhos! - E lançando os braços, como quem se debate numa catástrofe, Rufino pintou a inundação... Aqui aluía um casal, ninho florido de amores; além, na quebrada, passava o balar choroso dos gados; mais longe as negras águas iam juntamente arrastando um botão de rosa e um berço!...
Os bravos partiram profundos e roucos de peitos que arfavam. E em torno de Carlos e do Ega sujeitos voltavam-se apaixonadamente uns para os outros, com um brilho na face, comungando no mesmo entusiasmo: «Que rajadas!... Caramba!... Sublime!...»
Rufino sorria bebendo esta comoção, que era a obra do seu verbo. Depois, respeitosamente, voltou-se para as cadeiras reais, solenes e vazias...
Vendo que a cólera da Natureza rugia implacável ele erguera os olhos para o natural abrigo, para o exaltado lugar de onde desce a salvação, para o Trono de Portugal! E de repente, deslumbrado, vira por sobre ele estenderam-se as asas brancas dum anjo! Era o anjo da esmola, meus senhores! E de onde vinha? de onde recebera a inspiração da caridade? de onde saia assim, com os seus cabelos de ouro? Dos livros da ciência? dos laboratórios químicos? desses anfiteatros de anatomia onde se nega covardemente a alma? das secas escolas de filosofia que fazem de Jesus um precursor de Robespierre? Não! Ele ousara interrogar o anjo, submisso, com o joelho em terra. E o anjo da esmola, apontando o espaço divino, murmurara: «Venho de além!»
Então pelos bancos apinhados correu um sussurro de enlevo. Era como se os estuques do tecto se abrissem, os anjos cantassem no alto. Um estremecimento devoto e poético arrepiava as caias das senhoras.
E Rufino findava, com uma altiva certeza na alma! Sim, meus senhores! Desde esse momento, a dúvida fora nele como a névoa que o sol, este radiante sol português, desfaz nos ares... E agora, apesar de todas as ironias da ciência, apesar dos escárnios orgulhosos dum Benan, dum Litré e dum Spencer, ele, que recebera a confidência divina, podia ali, com a mão sobre o coração, afirmar a todos bem alto - havia um céu!
- Apoiado! mugiu na coxia o padre sebento.
E por todo o salão, no aperto e no calor do gás, os cavalheiros das Secretarias, da Arcada, da Casa Havaneza, berrando, batendo as mãos, afirmaram soberbamente o céu!
O Ega que ria, divertido, sentiu ao lado um som rouco de cólera. Era o Alencar, de paletó, de gravata branca, cofiando sombriamente os bigodes.
- Que te parece, Tomás?
- Faz nojo! rugiu surdamente o poeta.
Tremia, revoltado! Numa noite daquelas, toda de poesia, quando os homens de letras se deviam mostrar como são, filhos da democracia e da liberdade, vir aquele pulha pôr-se ali a lamber os pés à família real... Era simplesmente ascoroso!
Lá na fundo, junto aos degraus do tablado, ia um tumulto de abraços, de comprimentos, em torno do Rufino, que reluzia todo de orgulho e suor. E pela porta os homens escoavam-se, afogueados, comovidos ainda, puxando das charuteiras. Então o poeta travou do braço do Ega:
- Ouve lá, eu vinha justamente procurar-te. É o Guimarães, o tio do Dâmaso, que me pediu para te ser apresentado... Diz que é uma coisa séria, muito séria... Está lá em baixo no botequim, com um grog.
Ega pareceu surpreendido... Coisa séria!?
- Bem, vamos nós lá abaixo tomar também um grog! E que recitas tu logo, Alencar?
- A Democracia, foi dizendo o poeta pela escada, com certa reserva. Uma coisita nova, tu verás... São algumas verdades duras a toda essa burguesia...
Estavam à porta do botequim - e precisamente o Sr. Guimarães saia, com o chapéu sobre o olho, de charuto aceso, abotoando a sobrecasaca. Alencar lançou a apresentação, com imensa gravidade:
- O meu amigo João da Ega... O meu velho amigo Guimarães, um bravo cá dos nossos, um veterano da Democracia.
Ega acercou-se duma mesa, puxou cortesmente um banco para o veterano da Democracia, quis saber se ele preferia cognac ou cerveja.
- Tomei agora o meu grog de guerra, disse o Sr. Guimarães com secura, tenho para toda a noite.
Um criado dava uma limpadela lenta sobre o mármore da mesa. Ega ordenou cerveja. E directamente, largando o charuto, passando a mão pelas barbas a retocar a majestade da face, o Sr. Guimarães começou com lentidão e solenidade:
- Eu sou tio do Dâmaso Salcede, e pedi aqui ao meu velho amigo Alencar para me apresentar a V. Exc.ª, com o fim de o intimar a que olhe bem para mim e que diga se me acha cara de bêbedo...
Ega compreendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonomia:
- V. Exc.ª refere-se a uma carta que seu sobrinho me escreveu...
- Carta que V. Exc.ª ditou! Carta que V. Exc.ª o forçou a assinar!
- Eu?...
- Afirmou-mo ele, senhor!
Alencar interveio:
- Falem vocês baixo, que diabo!... Isto é terra de curiosos...
O Sr. Guimarães tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa. Tinha estado, contou ele, havia semanas fora de Lisboa por negócios da herança de seu irmão. Não vira o sobrinho, porque só por necessidade se encontrava com esse imbecil. Na véspera, em casa dum antigo amigo, o Vaz Forte, deitara por acaso os olhos ao Futuro, um jornal republicano, bem escrito, mas frouxo de ideias. E avistara logo na primeira pagina, em tipo enorme, sob esta rubrica aliás justa Coisas do highlife, a carta do sobrinho... Imagine o Sr. Ega o seu furor! Ali mesmo, em casa do Forte, escrevera ao Dâmaso pouco mais ou menos nestes termos: «Li a tua infame declaração. Se amanhã não fazes outra, em todos os jornais, dizendo que não tinhas intenção de me incluir entre os bêbedos da tua família, vou aí e quebro-te os ossos um por um. Treme!» Assim lhe escrevera. E sabia o Sr. João da Ega qual fora a resposta do Sr. Dâmaso?
- Tenho-a aqui, é um documento humano, como diz o amigo Zola! Aqui está... Grande papel, monograma de ouro, coroa de conde. Aquele asno! Quer V. Exc.ª que eu leia?
A um gesto risonho do Ega, ele mesmo leu, lentamente, e sublinhando:
- «Meu caro tio! A carta de que fala foi escrita pelo Sr. João da Ega. Eu era incapaz de tal desacato à nossa querida família. Foi ele que me agarrou na mão, à força, para eu assinar: e eu, naquela atrapalhação, sem saber o que fazia, assinei para evitar falatórios. Foi um laço que me armaram os meus inimigos. O meu querido tio, que sabe como eu gosto de si, que até estava o ano passado com tenção, se soubesse a sua morada em Paris, de lhe mandar meia pipa de vinho de Colares, não fique pois zangado comigo. Bem infeliz já eu sou! E se quiser procure esse João da Ega que me perdeu! Mas acredite que hei de tirar uma vingança que há de ser falada! Ainda não decidi qual, nesta atarantação; mas em todo o caso a nossa família há de ficar desenxovalhada, porque eu nunca admiti que ninguém brincasse com a minha dignidade... E se o não fiz já antes de partir para Itália, se ainda não pugnei pela minha honra, é porque há dias, com todos estes abalos, veio-me uma tremenda disenteria, que estou que me não tenho nas pernas. Isto por cima dos meus males morais!...» V. Exc.ª ri-se, Sr. Ega?
- Pois que quer V. Exc.ª que eu faça? balbuciou o Ega por fim, sufocado, com os olhos em lágrimas. Rio-me eu, ri-se o Alencar, ri-se V. Exc.ª. Isso é extraordinário! Essa dignidade, essa disenteria...
O Sr. Guimarães, embaçado, olhou o Ega, olhou o poeta que fungava sob os longos bigodes, e terminou por dizer:
- Com efeito, a carta é duma cavalgadura... Mas o facto permanece...
Então Ega apelou para o bom senso do Sr. Guimarães, para a sua experiência das coisas de honra. Compreendia ele que dois cavalheiros, indo desafiar um homem a sua casa, lhe agarrem no pulso, o forcem violentamente a assinar uma carta em que ele se declara bêbedo?...
O Sr. Guimarães, agradado com aquela deferência pelo seu tacto e pela sua experiência, confessou que o caso, pelo menos em Paris, seria pouco natural.
- E em Lisboa, senhor! Que diabo, isto não é a Cafraria! E diga-me o Sr. Guimarães outra coisa, de gentleman para gentleman: como considera seu sobrinho? um homem irrepreensivelmente verídico?
O Sr. Guimarães cofiou as barbas, declarou lealmente:
- Um refinado mentiroso.
- Então! gritou Ega em triunfo, atirando os braços ao ar.
De novo Alencar interveio. A questão parecia-lhe satisfactoriamente finda. E não restava senão os dois apertarem-se a mão fraternalmente, como bons democratas...
Já de pé, atirou a genebra ás goelas. Ega sorria, estendia a mão ao Sr. Guimarães. Mas o velho demagogo, ainda com uma sombra na face enrugada, desejou que o Sr. João da Ega (se nisso não tinha dúvida) declarasse, ali diante do amigo Alencar, que não lhe achava a ele, Guimarães, cara de bêbedo...
- Oh meu caro senhor! exclamou Ega, batendo com o dinheiro na mesa para chamar o criado. Pelo contrario! O maior prazer em proclamar diante do Alencar, e aos quatro ventos, que lhe acho a cara dum perfeito cavalheiro e dum patriota!
Então trocaram um rasgado aperto de mãos - enquanto o Sr. Guimarães afirmava a sua satisfação por conhecer o Sr. João da Ega, moço de tantos dotes e tão liberal. E quando s. Exc.ª quisesse qualquer coisa, política ou literária, era escrever este endereço bem conhecido no mundo:
- Redaction du RAPPEL, Paris!
Alencar abalara. E os dois deixaram o botequim, trocando impressões do sarau. O Sr. Guimarães estava enojado com a carolice, a sabujice desse Rufino. Quando o ouvira palrar das asas da princesa e da cruz do adro, quasi lhe gritara cá do fundo: «Quanto te pagam para isso, miserável?»
Mas de repente Ega estacou na escada, tirando o chapéu:
- Oh Sr.ª baronesa, então já nos abandona?
Era a Alvim que descia devagar, com a Joaninha
Vilar, atando as largas fitas duma capa de pelúcia verde. Queixou-se duma dor de cabeça que a torturava, apesar de ter gostado loucamente do Rufino... Mas uma noite toda de literatura, que estafa! E agora, para mais, ficara lá um homenzinho a fazer música clássica...
- É o meu amigo Cruges!
- Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes o Pirolito.
- V. Exc.ª aflige-me com esse desdém pelos grandes mestres... Não quer que a vá acompanhar à carruagem? Paciência... Muito boa noite, Sr.ª D. Joana!... Um servo seu, Sr.ª baronesa! E Deus lhe tire a sua dor de cabeça!
Ela voltou-se ainda no degrau, para o ameaçar risonhamente com o leque:
- Não seja impostor! O Sr. Ega não acredita em Deus.
- Perdão... Que o Diabo lhe tire a sua dor de cabeça, Sr.ª baronesa!
O velho democrata desaparecera discretamente. E da ante-sala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mocho muito baixo que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca - o Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da Sonata, martelando sabiamente o teclado. Foi então subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quasi vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cansadas, bocejavam por traz dos leques.
Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um rancho íntimo, a marquesa de Soutal, as duas Pedrosos, a Tereza Darque. E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braço para saber quem era aquele músico de cabeleira.
- Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.
O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E era composição dele, aquela coisa triste?
- É de Beetoven, Sr.ª D. Maria da Cunha, a Sonata patética.
Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a marquesa de Soutal, muito séria, muito bela, cheirando devagar um frasquinho de sais, disse que era a Sonata pateta. Por toda a bancada foi um rastilho de risos sufocados. A Sonata pateta! Aquilo parecia divino! Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme, imberbe e cor de papoula:
- Muito bem, Sr.ª marquesa, muito catita!
E passou o gracejo a outras senhoras, que se voltavam, sorriam à marquesa, entre o frou-frou dos leques. Ela triunfava, bela e séria, com um velho vestido de veludo preto, respirando os sais - enquanto adiante um amador de barba grisalha cravava naquele rancho ruidoso dois grandes óculos de ouro que faiscavam de cólera.
No entanto, por toda a sala, o sussurro crescia. Os encatarroados tossiam livremente. Dois cavalheiros tinham aberto a Tarde. E caído sobre o teclado, com a gola da casaca fugida para a nuca, o pobre Cruges, suando, estonteado por aquela desatenção rumorosa, atabalhoava as notas, numa debandada.
- Fiasco completo, declarou Carlos que se aproximara do Ega e do rancho.
Foi para D. Maria da Cunha uma alegria, uma surpresa! Até que enfim se via o Sr. Carlos da Maia, o Príncipe Tenebroso! Que fizera ele durante esse verão? Todo o mundo a espera-lo em Sintra, alguém mesmo com ansiedade... Um chut furioso do amador de barbas grisalhas emudeceu-a. E justamente Cruges, depois de bater dois acordes bruscos, arredara o mocho, esgueirava-se do estrado, enxugando as mãos ao lenço. Aqui e além algumas palmas ressoaram, moles e de cortesia, entre um grande murmúrio de alívio. E o Ega e Carlos correram à porta, onde já esperavam o marquês, o Craft, o Taveira - para abraçar, consolar o pobre Cruges que tremia todo, com os olhos esgaseados.
E imediatamente, no silêncio atento que redominava, um sujeito muito magro, muito alto, surgiu no tablado, com um manuscrito na mão. Alguém ao lado do Ega disse que era o Prata, que ia falar sobre o Estado agrícola da província do Minho. Atrás, um criado veio colocar sobre a mesa um candelabro de duas velas: o Prata, de ilharga para a luz, mergulhou no caderno: e de entre o perfil triste e as folhas largas um rumor lento foi escorrendo, rumor de reza numa sonolência de novena, onde por vezes destacavam como gemidos - «riqueza dos gados..., esfacelamento da propriedade..., fértil e desprotegida região...»
Começou então uma debandada sorrateira e formigueira, que nem os chuts do comissário do sarau, vigilante e de pé sobre um degrau do estrado, podiam conter. Só as senhoras ficavam; e um ou outro burocrata idoso, que se inclinava zelosamente para o murmúrio de reza, com a mão em concha sobre a orelha.
Ega, que fugia também «ao vicejante paraíso do Minho», achou-se em frente do Sr. Guimarães.
- Que maçada, hein?
O democrata concordou que aquele preopinante não lhe parecia divertido... Depois, mais sério, com outra ideia, segurando um botão da casaca do Ega:
- Eu espero que V. Exc.ª há pouco não ficasse com a impressão de que eu sou solidário ou me importo com meu sobrinho...
Oh! decerto que não! Ega vira bem que o Sr. Guimarães não tinha pelo Dâmaso nenhum entusiasmo de família.
- Asco, senhor, só asco! Quando ele foi a primeira vez a Paris, e soube que eu morava numa trapeira, nunca me procurou! Porque aquele imbecil dá-se ares de aristocrata... E como V. Exc.ª sabe, é filho dum agiota!
Puxou a charuteira, ajuntou gravemente:
- A mãe, sim! Minha irmã era duma boa família. Fez aquele desgraçado casamento, mas era duma boa família! Que, com os meus princípios, já V. Exc.ª vê que tudo isso de fidalguia, pergaminhos, brazões, são para mim blague e mais blague! Mas enfim os factos são os factos, a história de Portugal aí está... Os Guimarães da Bairrada eram de sangue azul.
Ega sorriu, num assentimento cortez:
- E V. Exc.ª então parte brevemente para Paris?
- Amanhã mesmo, por Bordéus... Agora que toda essa cambada do marechal de Mac-Mahon, e do duque de Broglie, e do Descazes foi pelos ares, já se pode lá respirar...
Nesse instante Teles e o Taveira, passando de braço dado, voltaram-se, a observar curiosamente aquele velho austero, todo de preto, que falava alto com o Ega de marechais e de duques. Ega reparou: o democrata, de resto, tinha uma sobrecasaca de casimira nova; o seu altivo chapéu reluzia; e Ega ficou de bom grado a conversar com aquele gentleman correcto e venerando que impressionava os seus amigos.
- A república com efeito observou ele, dando alguns passos ao lado do Sr. Guimarães, esteve ali um momento comprometida!
- Perdida! E eu, meu caro senhor, aqui onde me vê, para ser expulso por causa dumas verdadesinhas que soltei numa reunião anarquista. Até me afirmaram que num conselho de ministros o marechal de Mac-Mahon, que é um tarimbeiro, batera um murro na mesa e dissera: Ce sacré Guimaran, il nous embête, faut lui doner du pied dans le derrière! Eu não estava lá, não sei, mas afirmaram-me... Em Paris, como os franceses não sabem pronunciar Guimarães, e eu embirro que me estropiem o nome, assino Mr. Guimaran. Há dois anos, quando fui à Itália, era Mr. Guimarini. E se for agora à Rússia, cá por coisas, hei de ser Mr. Guimarof... Embirro que me estropiem o nome!
Tinham voltado à porta do salão. Longas bancadas vazias punham dentro, no brilho pesado do gás, uma tristeza de abandono e tédio; e no estrado o Prata continuava, de mão no bolso, com o nariz sobre o manuscrito, sem que se sentisse agora surdir um som daquele espantalho esguio. Mas o marquês, que descia do fundo, atabafando-se no seu cache-nez de seda, disse ao Ega ao passar que o homenzinho era muito pratico, sabia da póda, e lá tinha ficado ás voltas com Proudhon.
Ega e o democrata recomeçaram então os seus passos lentos na ante-sala onde o sussurro de conversas mal abafadas crescia, como num palco, entre fumaças furtivas de cigarro. E o Sr. Guimarães chasqueava, achando uma boa bêtise que se citasse Proudhon, ali naquele teatreco, a propósito de estrumes do Minho...
- Oh, Proudhon entre nós, acudiu Ega rindo, cita-se muito, é já um monstro clássico. Até os conselheiros de Estado já sabem que para ele a propriedade era um roubo, e Deus era o mal...
O democrata encolheu os ombros:
- Grande homem, senhor! Homem imenso! São os três grandes pimpões deste século: Proudhon, Garibaldi, e o compadre!
- O compadre! exclamou Ega, atónito.
Era o nome da amizade que o Sr. Guimarães dava em Paris a Gambeta. Gambeta nunca o via, que não lhe gritasse de longe, em espanhol: «Hombre, compadre!» E ele também, logo: «Compadre, caramba!» daí ficara a alcunha, e Gambeta ria. Porque lá isso, bom rapaz, e amigo desta franqueza do sul, e patriota, até ali!
- Imenso, meu caro senhor! O maior de todos!
Pois Ega imaginaria que o Sr. Guimarães, com as suas relações do Rapel, devia ter sobretudo o culto de Victor Hugo...
- Esse, meu caro senhor, não é um homem, é um mundo!
E o Sr. Guimarães ergueu mais a face, ajuntou infinitamente grave:
- É um mundo!... E aqui onde me vê, ainda não há três meses que ele me disse uma coisa que me foi direita ao coração!
Vendo com deleite o interesse e a curiosidade do Ega, o democrata contou largamente esse glorioso lance que ainda o comovia:
- Foi uma noite no Rapel. Eu estava a escrever, ele apareceu, já um pouco trôpego, mas com o olho a luzir, e aquela bondade, aquela majestade!... Eu ergui-me, como se entrasse um rei... Isto é, não! que se fosse um rei tinha-lhe dado com a bota no rabiosque. Levantei-me como se ele fosse um Deus! Qual Deus! não há Deus que me fizesse levantar!... Enfim, acabou-se, levantei-me! Ele olhou para mim, fez assim um gesto com a mão, e disse, a sorrir, com aquele ar de génio que tinha sempre: Bonsoir, mon ami!
E o Sr. Guimarães deu alguns passos dignos, em silêncio, como se aquele bonsoir, aquele mon ami, assim recordados, lhe fizessem mais vivamente sentir a sua importância no mundo.
De repente Alencar, que bracejava num grupo, rompeu para eles, pálido, de olhos chamejantes:
- Que me dizem vocês a esta pouca vergonha? Aquele infame ali há meia hora, com o infólio, a rosnar, a rosnar... E toda a gente a sair, não fica ninguém! Tenho de recitar aos bancos de palhinha!...
E abalou, rilhando os dentes, a exalar mais longe o seu furor.
Mas algumas palmas cansadas, dentro, fizeram voltar o Ega. O estrado ficara novamente vazio, com as duas velas ardendo no candelabro. Um cartão em grossas letras, que um criado colocara no piano, anunciava um «intervalo de dez minutos» como num circo. E nesse instante a Sr.ª condessa de Gouvarinho saíra pelo braço do marido, deixando atrás um sulco largo de comprimentos, de espinhas que se vergavam, de chapéus de burocratas rasgadamente erguidos. O comissário do sarau azafamava-se procurando duas cadeiras para Ss. Exc.as A condessa porém foi reunir-se a D. Maria da Cunha, que ela vira, com as Pedrosos e a marquesa de Soutal, refugiada num vão de janela. Ega imediatamente acercou-se do rancho íntimo, esperando que as senhoras se beijocassem.
- Então, Sr.ª condessa, ainda muito comovida com a eloquência do Rufino?
- Muito cansada... E que calor, hein?
- Horrível. A Sr.ª baronesa de Alvim saiu há pouco, com uma dor de cabeça...
A condessa, que tinha os olhos pisados e uma prega de velhice aos cantos da boca, murmurou:
- Não admira, isto não é divertido... Enfim, já agora é necessário levar a cruz ao Calvário.
- Se fosse uma cruz, minha senhora! exclamou o Ega. Infelizmente é uma lira!
Ela riu. E D. Maria da Cunha, nessa noite mais remoçada e viva, ficou logo toda banhada num sorriso, com aquela carinhosa admiração pelo Ega, que era um dos seus sentimentos.
- Este Ega!... Não há mal que lhe chegue!... E diga-me outra coisa, que é feito do seu amigo Maia?
Ega vira-a momentos antes, no salão, puxar pela manga de Carlos, cochichar com Carlos. Mas conservou um ar inocente:
-Está ai, anda por ai, assistindo a toda essa literatura.
De repente os olhos sempre bonitos e lânguidos de D. Maria da Cunha rebrilharam com uma faisca de malícia:
- Falai no mau... Neste caso seria falar do bom. Enfim aí nos vem o Príncipe Tenebroso!
E era com efeito Carlos que passava, se encontrara diante dos braços do conde de Gouvarinho, estendidos para ele com uma efusão em que parecia renascer o antigo afecto. Pela primeira vez Carlos via a condessa, desde a noite em que no Aterro, abandonando-a para sempre, fechara com ódio a portinhola da tipóia onde ela ficava chorando. Ambos baixaram os olhos, ao adiantar a mão um para o outro, lentamente. E foi ela que findou o embaraço, abrindo o seu grande leque de penas de avestruz:
- Que calor, não é verdade?
- Atroz! disse Carlos. Não vá V. Exc.ª apanhar ar dessa janela.
Ela forçou os lábios brancos a um sorriso:
- É conselho de médico?
- Oh, minha senhora, não são as horas da minha consulta! É apenas caridade de cristão.
Mas de repente a condessa chamou o Taveira, que ria, derretido, com a marquesa de Soutal, para o repreender por ele não ter aparecido terça-feira na rua de S. Marçal. Surpreendido com tanto interesse, tanta familiaridade, o Taveira, muito vermelho, balbuciou que nem sabia, fora o seu infortúnio, tinham-se metido umas coisas...
- Além disso não imaginei que V. Exc.ª começasse a receber tão cedo... V. Exc.ª antigamente era só depois da Cerração da Velha. Até me lembro que o ano passado...
Mas emudeceu. O conde de Gouvarinho voltara-se, pousando a mão carinhosa no ombro de Carlos, desejando a sua impressão sobre o «nosso Rufino». Ele conde estava encantado! Encantado sobretudo com a variedade de escala, aquela arte tão difícil de passar do solene para o ameno, de descer das grandes rajadas para os brincados de linguagem. Extraordinário!
- Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone, o Canovas, outros muitos. Mas não são estes vôos, esta opulência... É tudo muito seco, ideias e factos. Não entra na alma! Vejam os amigos aquela imagem tão pujante, tão respeitosa, do Anjo da Esmola, descendo devagar, com as asas de cetim... É de primeira ordem.
Ega não se conteve:
- Eu acho esse génio um imbecil.
O conde sorriu, como à tonteria duma criança:
- São opiniões...
E estendeu em redor as mãos ao Sousa Neto, ao Darque, ao Teles da Gama, a outros que se juntavam ao rancho íntimo - enquanto os seus correligionários, os seus colegas do Centro e da Câmara, o Gonçalo, o Neves, o Vieira da Costa rondavam de longe, sem poder roçar pelo ministro que tinham criado, agora que ele conversava e ria com rapazes e senhoras da «sociedade». O Darque, que era parente do Gouvarinho, quis saber como o amigo Gastão se ia dando com os encargos do Poder... O conde declarou para os lados que não fizera mais por ora do que passar em revista os elementos com que contava para atacar os problemas... De resto, em questões de trabalho, o ministério fora infelicíssimo! O presidente do conselho de cama com uma catarreira, inútil para uma semana. Agora o colega da fazenda com as febres do Aterro...
- Está melhor? Já sai? foi em torno a pergunta cheia de cuidado.
- Está na mesma, vai amanhã para o Dafundo. Mas realmente esse não se acha de todo inutilizado. Ainda ontem eu lhe dizia: «Você parte para o Dafundo, leva os seus papéis, os seus documentos... Pela manhã dá os seus passeios, respira o bom ar... E à noite, depois de jantar, à luz do candeeiro, entretem-se a resolver a questão de fazenda!»
Uma campainha retiniu. D. José Sequeira, escarlate de azáfama, veio, furando, anunciar a s. Exc.ª o fim do intervalo - oferecer o braço à Sr.ª condessa. Ao passar, ela lembrou a Carlos as suas «terças-feiras», com a delicada simplicidade dum dever. Ele curvou-se em silêncio. Era como se todo o passado, o sofá que rolava, a casa da titi em Santa Isabel, as tipóias em que ela deixava o seu cheiro de verbena - fossem coisas lidas por ambos num livro e por ambos esquecidas. Atrás, o marido seguiu, erguendo alto a cabeça e as lunetas, como representante do Poder naquela festa da Inteligência.
- Pois senhores, disse o Ega afastando-se com Carlos, a mulherzinha tem topete!
- Que diabo queres tu? Atravessou a sua hora de tolice e de paixão, e agora continua tranquilamente na rotina da vida.
- E na rotina da vida, concluiu Ega, encontra-se a cada passo contigo, que a viste em camisa!... Bonito mundo!
Mas o Alencar apareceu no alto da escada, voltando do botequim e da genebra, com um brilho maior no olho cavo, de paletó no braço, já preparado para gorgear. E o marquês juntou-se a eles, abafado no cache-nez de seda branca, mais rouco, queixando-se de que a cada minuto a garganta se lhe punha pior... Aquela canalha daquela garganta ainda lhe vinha a pregar uma!...
Depois, muito sério, considerando o Alencar:
- Ouve lá, isso que tu vais recitar, a Democracia é política ou sentimento? Se é política, raspo-me. Mas se é sentimento, e a humanidade, e o santo operário, e a fraternidade, então fico, que disso gosto e até talvez me faça bem.
Os outros afirmaram que era sentimento. O poeta tirou o chapéu, passou os dedos pelos anéis fofos da grenha inspirada:
-Eu vos digo, rapazes... Uma coisa não vai sem a outra, vejam vocês Danton!... Mas já não falo enfim desses leões da Revolução. Vejam vocês o Passos Manoel! Está claro, é necessário lógica... Mas, também, caramba, sebo para uma política sem entranhas e sem um bocado de infinito!
Subitamente, por sobre o novo silêncio da sala, um vozeirão mais forte que o do Rufino fez retumbar os grandes nomes de D. João de Castro e de Afonso de Albuquerque... Todos se acercaram da porta, curiosamente. Era um maganão gordo, de barba em bico e camélia na casaca, que, de mão fechada no ar como se agitasse o pendão das Quinas, lamentava aos berros que nós portugueses, possuindo este nobre estuário do Tejo e tão formosas tradições de gloria, deixássemos esbanjar, ao vento do indiferentismo, a sublime herança dos avós!...
- É patriotismo, disse o Ega. Fujamos!
Mas o marquês reteve-os, gostando também de um bocado de Quinas. E foi o pobre marquês que o patriota pareceu interpelar, alçando na ponta dos botins o corpanzil rotundo, aos urros. Quem havia agora ai, que, agarrando numa das mãos a espada e na outra a cruz, saltasse para o convés duma caravela a ir levar o nome português através dos mares desconhecidos? Quem havia ai, heróico bastante, para imitar o grande João de Castro, que na sua quinta de Sintra arrancara todas as árvores de fruto, tal a era a isenção da sua alma de poeta?...
- Aquele miserável quer-nos privar da sobremesa! exclamou Ega.
Em torno correram risos alegres. O marquês virou costas, enojado com aquela patriotice reles. Outros bocejavam por traz da mão, num tédio completo de «todas as nossas glorias». E Carlos, enervado, preso ali pelo dever de aplaudir o Alencar, chamava o Ega para irem abaixo ao botequim espairecer a impaciencia - quando viu o Euzebiosinho que descia a escada, enfiando à pressa um paletó alvadio. Não o encontrara mais desde a infâmia da Corneta, em que ele fora «embaixador». E a cólera que tivera contra ele nesse dia reviveu logo num desejo irresistivel de o espancar. Disse ao Ega:
- Vou aproveitar o tempo, enquanto esperamos pelo Alencar, a arrancar as orelhas àquele maroto!
- Deixa lá, acudiu Ega, é um irresponsável!
Mas já Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atrás, inquieto, temendo uma violência. Quando chegaram à porta, Euzébio metera para os lados do Carmo. E alcançaram-no no largo da Abegoaria, àquela hora deserto, mudo, com dois bicos de gás mortiços. Ao ver Carlos fender assim sobre ele, sem paletó, de peitilho claro na noite escura, o Euzébio, encolhido, balbuciou atarantadamente: «Olá, por aqui...»
- Ouve cá, estupor! rugiu Carlos, baixo. Então também andaste metido nessa maroteira da Corneta? Eu devia rachar-te os ossos um a um!
Agarrara-lhe o braço, ainda sem ódio. Mas, apenas sentiu na sua mão de forte aquela carne molenga e tremula, ressurgiu nele essa aversão nunca apagada - que já em pequeno o fazia saltar sobre o Euzebiosinho, esfrangalha-lo, sempre que as Silveiras o traziam à quinta. E então abanou-o, como outrora, furiosamente, gozando o seu furor. O pobre viúvo, no meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapéu coberto de luto que lhe rolara nas lages, dançava, escanifrado e desengonçado. Por fim Carlos atirou-o contra a porta duma cocheira.
- Acudam! Aqui d'El-Rei, polícia! rouquejou o desgraçado.
Já a mão de Carlos lhe empolgara as guelas. Mas Ega interveio:
- Alto! Basta! O nosso querido amigo já recebeu a sua dose...
Ele mesmo lhe apanhou o chapéu. Tremendo, arquejando, de bruços, Euzebiosinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para findar, a bota de Carlos atirada com nojo, estatelou-o nas pedras, para cima duma sargeta onde restavam imundícies e humidade de cavalo.
O largo permanecia deserto, com o gás adormecendo nos candeeiros baços. Tranquilamente os dois recolheram ao sarau. No peristilo, cheio de luz e plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico, rodeado de amigos, em caminho para o botequim, limpando ao lenço o pescoço e a face, exclamando com o cansaço radiante dum triunfador:
- Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda!
Já o Alencar estaria gorgeando! Os dois amigos galgaram a escada. E com efeito Alencar aparecera no estrado, onde ardia ainda o candelabro de duas velas.
Esguio, mais sombrio naquele fundo cor de canário, o poeta derramou pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado e lento: e um silêncio pesou, mais enlevado, diante de tanta melancolia e de tanta solenidade.
- A Democracia! anunciou o autor de Elvira com a pompa duma revelação.
Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois atirou para a mesa. E levantando a mão num gesto demorado e largo:
Era num parque. O luar
Sobre os vastos arvoredos,
Cheios de amor e segredos...
- Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovelo do marquês. É sentimento... Aposto que é o festim!
E era com efeito o festim, já cantado na Flôr de Martírio, festim romântico, num vago jardim onde vinhos de Chipre circulam, caudas de brocado rojam entre maciços de magnólias, e das águas do lago sobem cantos ao gemer dos violoncelos... Mas bem depressa transpareceu a severa ideia social da Poesia. Enquanto, sob as árvores radiantes de luar, tudo são «risos, brindes, lascivos murmúrios» - fora, junto ás grades douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, uma mulher macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro o filho que pede pão... E o poeta, sacudindo os cabelos para traz, perguntava porque havia ainda esfomeados neste orgulhoso século XIX? De que servira então, desde Spartacus, o esforço desesperado dos homens para a Justiça e para a Igualdade? De que servira então a cruz do grande Mártir, erguida além na colina, onde, por entre os abetos
Os raios do sol se somem,
O vento triste se cala...
E as águias revolteando
D'entre as nuvens estão olhando
Morrer o filho do Homem!
A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as mãos tremendo no ar, desolava-se de que todo o Génio das gerações fosse impotente para esta coisa simples - dar pão à criança que chora!
Martírio do coração!
Espanto da consciência!
Que toda a humana ciência
Não solva a negra questão!
Que os tempos passem e rolem
E nenhuma luz assome,
E eu veja dum lado a fome
E do outro a indigestão!
Ega torcia-se, fungando dentro do lenço, jurando que rebentava. «E do outro a indigestão!» Nunca, nas alturas líricas, se gritara nada tão extraordinário! E sujeitos graves, em redor, sorriam daquele realismo sujo. Um jocoso lembrou que para indigestões já havia o bi-carbonato de potassa.
- Quando não são das minhas! rosnou um cavalheiro esverdinhado, que alargava a fivela do colete.
Mas tudo emudeceu ante um chut terrível do marquês, que desapertara o cache-nez, já excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes humanitarismos poéticos. E entretanto, no estrado, o Alencar achara a solução do sofrimento humano! Fora uma Voz que lha ensinara! Uma Voz saída do fundo dos séculos, e que através deles, sempre sufocada, viera crescendo todavia irresistivelmente desde o Golgota até à Bastilha! E então, mais solene por traz da mesa, com um arranque de Precursor e uma firmeza de Soldado, como se aquele honesto móvel de mogno fosse um púlpito e uma barricada - o Alencar, alçando a fronte numa grande audácia à Danton, soltou o brado temeroso. Alencar queria a República!
Sim, a República! Não a do Terror e a do ódio, mas a da mansidão e do Amor. Aquela em que o Milionário sorrindo abre os braços ao Operário! Aquela que é Aurora, Consolação, Refugio, Estrela mística e Pomba...
Pomba da Fraternidade,
Que estendendo as brancas asas
Por sobre os humanos lodos,
Envolve os seus filhos todos
Na mesma santa Igualdade!...
Em cima, na galeria, ressoou um bravo ardente. E imediatamente, para o sufocar, sujeitos sérios lançaram, aqui e além: «Chut, silêncio!» Então Ega ergueu as mãos magras, bem alto, berrou com um destaque atrevido:
- Bravo! Muito bem! Bravo!
E todo pálido da sua audácia, entalando o monóculo, declarou para os lados:
- Aquela democracia é absurda... Mas que os burgueses se dêem ares intolerantes, isso não! Então aplaudo eu!
E as suas mãos magras de novo se ergueram, bem alto, junto das do marquês que retumbavam como malhos. Outros em volta, imediatamente, não se querendo mostrar menos democratas que o Ega e aquele fidalgo de tão grande linhagem, reforçaram os bravos com calor. Já pela sala se voltavam olhares inquietos para aquele grupo cheio de revolução. Mas um silêncio caiu, mais comovido e grave, quando o Alencar (que inspiradamente previra a intolerância burguesa) perguntou em estrofes iradas o que detestavam, o que receavam eles, no advento sublime da República? Era o pão carinhoso dado à criança? Era a mão justa estendida ao proletário? Era a esperança? Era a aurora?
Receais a grande luz?
Tendes medo do Abecê?...
Então castigai quem lê,
Voltai à plebe soez!
Recuai sempre na História,
Apagai o gás nas ruas,
Deixai as crianças nuas,
E venha a forca outra vez!
Palmas, mais numerosas, já sinceras, estalaram pela sala, que cedia enfim ao repetido encanto daquele lirismo humanitário e sonoro. Já não importava a República, os seus perigos. Os versos rolavam, cantantes e claros; e a sua onda larga arrastava os espíritos mais positivos. Sob aquele bafo de simpatia Alencar sorria, com os braços abertos, anunciando uma a uma, como pérolas que se desfiam, todas as dádivas que traria a República. Debaixo da sua bandeira, não vermelha mas branca, ele via a terra coberta de searas, todas as fomes satisfeitas, as nações cantando nos vales sob o olhar risonho de Deus. Sim, porque Alencar não queria uma República sem Deus! A Democracia e o Cristianismo, como um lírio que se abraça a uma espiga, completavam-se, estreitando os seios! A rocha do Golgota tornava-se a tribuna da Convenção! E para tão doce ideal não se necessitavam cardeais, nem missais, nem novenas, nem igrejas. A República, feita só de pureza e de fé, reza nos campos; a lua cheia é hóstia; os rouxinóis entoam o tantum ergo nos ramos dos loureirais. E tudo prospera, tudo refulge - ao mundo do Conflito substitue-se o mundo do Amor...
Á espada sucede o arado,
A Justiça ri da Morte,
A escola está livre e forte,
E a Bastilha derrocada.
Rola a tiara no lodo,
Brota o lírio da Igualdade,
E uma nova Humanidade
Planta a cruz na barricada!
Uma rajada farta e franca de bravos fez oscilar as chamas do gás! Era a paixão meridional do verso, da sonoridade, do Liberalismo romântico, da imagem que esfuzia no ar com um brilho crepitante de foguete, conquistando enfim tudo, pondo uma palpitação em cada peito, levando chefes de repartição a berrarem, estirados por cima das damas, no entusiasmo daquela república onde havia rouxinóis! E quando Alencar, alçando os braços ao tecto, com modulações de preghiera na voz roufenha, chamou para a terra essa pomba da Democracia, que erguera o voo do Calvário, e vinha com largos sulcos de luz - foi um enternecimento banhando as almas, um fundo arrepio de êxtase. As senhoras amoleciam nas cadeiras, com a face meia voltada ao céu. No salão abraçado perpassavam frescuras de capela. As rimas fundiam-se num murmúrio de ladainha, como evoladas para uma Imagem que pregas de cetim cobrissem, estrelas de ouro coroassem. E mal se sabia já se Essa, que se invocava e se esperava, era a deusa da Liberdade - ou Nossa Senhora das Dores.
Alencar no entanto via-a descer, espalhando um perfume. Já Ela tocava com os seus pés divinos os vales humanos. Já do seu seio fecundo transbordava a universal abundância. Tudo reflorescia, tudo rejuvenescia:
As rosas têm mais aroma!
Os frutos têm mais doçura!
Brilha a alma clara e pura,
Solta de sombras e véus...
Foge a dor espavorida,
Foi-se a fome, foi-se a guerra,
O homem canta na terra,
E Cristo sorri nos céus!...
Uma aclamação rompeu, imensa e rouca, abalando os muros cor de canário. Moços exaltados treparam ás cadeiras, dois lenços brancos fluctuavam. E o poeta, tremulo, exausto, rolou pela escada até aos braços que se lhe estendiam frementes. Ele sufocava, murmurava: «filhos! rapazes!...» Quando Ega correu do fundo, com Carlos, gritando - «Foste extraordinário, Tomás!»... - as lágrimas saltaram dos olhos do Alencar, quebrado todo de emoção.
E ao longo da coxia a ovação continuou, feita de palmadinhas pelo ombro, de shake-hands da gente séria, de «muitos parabéns a V. Exc.ª!» Pouco a pouco ele erguia a cabeça, num altivo sorriso que lhe mostrava os dentes maus, sentindo-se o poeta da Democracia, consagrado, ungido pelo triunfo, com a inesperada missão de libertar almas! D. Maria da Cunha puxou-lhe pela manga quando ele passou, para murmurar, encantada, que achara - «lindíssimo, lindíssimo». E o poeta, estonteado, exclamou: «Maria, é necessário luz!» Teles da Gama veio bater-lhe nas costas afirmando-lhe que «piara esplendidamente». E Alencar, inteiramente perdido, balbuciou: «Sursum corda, meu Teles, sursum corda!»
Ega no entanto, através do tumulto, farejava buscando Carlos que desaparecera depois dos abraços ao Alencar. Taveira assegurou-lhe que Carlos passara para o botequim. Depois em baixo um garoto jurou que o Sr. D. Carlos tomara uma tipóia e ia já, virando o Chiado...
Ega ficou à porta hesitando se aturaria o resto do sarau. Nesse momento o Gouvarinho, trazendo a condessa pelo braço, deseja rapidamente, com a face toda contrariada e sombria. O trintanário de Ss. Exc.as correu a chamar o coupé. E quando o Ega se acercou, sorrindo, para saber que impressão lhes deixara o grande triunfo democrático do Alencar - a profunda cólera do Gouvarinho escapou-se-lhe, mal contida, por entre os dentes cerrados:
- Versos admiráveis, mas indecentes!
O coupé avançou. Ele teve apenas tempo de rosnar ainda, surdamente, apertando a mão ao Ega:
- Numa festa de sociedade, sob a protecção da rainha, diante dum ministro da coroa, falar de barricadas, prometer mundos e fundos ás classes proletárias... É perfeitamente indecente!
Já a condessa enfiara a portinhola, apanhando a larga cauda de seda. O ministro mergulhou também furiosamente na sombra do coupé. Junto ás rodas passou chutando, numa pileca branca, o correio agaloado.
Ega ia subir. Mas o marquês apareceu, abafado num gabão de Aveiro, fugindo a um poeta de grandes bigodes que ficara em cima a recitar quadrinhas miudinhas a uns olhinhos galantinhos: e o marquês detestava versos feitos a partes do corpo humano. Depois foi o Cruges que surgiu do botequim, abotoando o paletó. Então, perante essa debandada de todos os amigos, Ega decidiu abalar também, ir tomar o seu grog ao Grémio com o maestro.
Meteram o marquês numa tipóia - e ele e Cruges desceram a rua Nova da Trindade, devagar, no encanto estranho daquela noite de inverno, sem estrelas, mas tão macia que nela parecia andar perdido um bafo de maio.
Passavam à porta do Hotel Aliança quando Ega sentiu alguém, que se apressava, chamar atrás: - «Ó Sr. Ega! V. Exc.ª faz favor, Sr. Ega?...»
- Parou, reconheceu o chapéu recurvo, as barbas brancas do Sr. Guimarães.
- V. Exc.ª desculpe! exclamou o demagogo esbaforido. Mas vi-o descer, queria dar-lhe duas palavras, e como me vou embora amanhã...
- Perfeitamente... Ó Cruges, vai andando, já te apanho!
O maestro estacionou à esquina do Chiado. O Sr. Guimarães pedia de novo desculpa. De resto eram duas curtas palavras...
- V. Exc.ª, segundo me disseram, é o grande amigo do Sr. Carlos da Maia... São como irmãos...
- Sim, muito amigos...
A rua estava deserta, com alguns garotos apenas à porta alumiada da Trindade. Na noite escura a alta fachada do Aliança lançava sobre eles uma sombra maior. Todavia o Sr. Guimarães baixou a voz cautelosa:
- Aqui está o que é... V. Exc.ª sabe, ou talvez não saiba, que eu fui em Paris íntimo da mãe do Sr. Carlos da Maia... V. Exc.ª tem pressa, e não vem agora a propósito essa história. Basta dizer que aqui há anos ela entregou-me, para eu guardar, um cofre que, segundo dizia continha papéis importantes... Depois naturalmente, ambos tivemos muitas outras coisas em que pensar, os anos correram, ela morreu. Numa palavra, porque V. Exc.ª está com pressa: eu conservo ainda em meu poder esse deposito, e trouxe-o por acaso quando vim agora a Portugal por negócios da herança de meu irmão... Ora hoje justamente, ali no teatro, comecei a reflectir que o melhor era entrega-lo à família...
O Cruges mexeu-se impaciente:
- Ainda te demoras?
- Um instante! gritou Ega, já interessado por aqueles papéis e pelo cofre. Vai andando.
Então o Sr. Guimarães, à pressa, resumiu o pedido. Como sabia a intimidade do Sr. João da Ega e de Carlos da Maia, lembrara-se de lhe entregar o cofresinho para que ele o restituísse à família...
- Perfeitamente! acudiu Ega. Eu estou mesmo em casa dos Maias, no Ramalhete.
- Ah, muito bem! Então V. Exc.ª manda um criado de confiança amanhã busca-lo... Eu estou no Hotel de Paris, no Pelourinho. Ou melhor ainda: levo-lho eu, não me dá incomodo nenhum, apesar de ser dia de partida...
- Não, não, eu mando um criado! insistiu o Ega estendendo a mão ao democrata.
Ele estreitou-lha com calor.
- Muito agradecido a V. Exc.ª! Eu junto-lhe então um bilhete e V. Exc.ª entrega-o da minha parte ao Carlos da Maia, ou à irmã.
Ega teve um movimento de espanto:
- Á irmã!... A que irmã?
O Sr. Guimarães considerou Ega também com assombro. E abandonando-lhe lentamente a mão:
- A que irmã!? A irmã dele, à única que tem, à Maria!
Cruges, que batia as solas no lagedo, enfastiado gritou da esquina:
- Bem, eu vou andando para o Grémio.
- Até logo!
O Sr. Guimarães, no entanto, passava os dedos calçados de pelica preta pelos longos fios da barba, fitando o Ega, num esforço de penetração. E quando Ega lhe travou do braço, pedindo-lhe para conversarem um pouco até ao Loreto, o democrata deu os primeiros passos com uma lentidão desconfiada.
- Eu parece-me, dizia o Ega sorrindo, mas nervoso, que nós estamos aqui a enrodilhar-nos num equivoco... Eu conheço o Maia desde pequeno, vivo até agora em casa dele, posso afiançar-lhe que não tem irmã nenhuma...
Então o Sr. Guimarães começou a rosnar umas desculpas embrulhadas que mais enervavam, torturavam o Ega. O Sr. Guimarães imaginava que não era segredo, que todas essas coisas da irmã estavam esquecidas, desde que houvera reconciliação...
- Como vi, ainda não há muitos dias, o Sr. Carlos da Maia com a irmã e com V. Exc.ª, na mesma carruagem, no cais do Sodré...
- O quê! Aquela senhora! A que ia na carruagem?
- Sim! exclamou o Sr. Guimarães irritado, farto enfim dessa confusão em que se debatiam. Aquela mesma, a Maria Eduarda Monforte, ou a Maria Eduarda Maia, como quiser, que eu conheci de pequena, com quem andei muitas vezes ao colo, que fugiu com o Mac-Gren, que esteve depois com a besta do Castro Gomes... Essa mesma!
Era ao meio do Loreto sob o lampião de gás. E o Sr. Guimarães de repente estacou, vendo os olhos do Ega esgazearem-se de horror, uma terrível palidez cobrir-lhe a face.
- V. Exc.ª não sabia nada disto?
Ega respirou fortemente, arredando o chapéu da testa sem responder. Então o outro, embaçado, terminou por encolher os ombros. Bem, via que tinha feito uma tolice! A gente nunca se devia intrometer nos negócios alheios! Mas acabou-se! Imaginasse o Sr. Ega que aquilo fora um pesadelo, depois da versalhada do sarau! Pedia desculpa sinceramente - e desejava ao Sr. João da Ega muitíssimo boas noites.
Ega, como a um clarão de relâmpago, entrevira toda a catástrofe: e agarrou avidamente o braço do Sr. Guimarães, num terror que ele abalasse, desaparecesse, levando para sempre o seu testemunho, esses papéis, o cofre da Monforte, e com eles a certeza - a certeza por que agora ansiava. E através do Loreto, vagamente, foi balbuciando, justificando a sua emoção, para tranquilizar o homem, poder lentamente arrancar-lhe as coisas que soubesse, as provas, a verdade inteira.
- O Sr. Guimarães compreende... Isto são coisas muito delicadas, que eu supunha absolutamente ignoradas de todos... De modo que fiquei embatucado, fiquei tonto, quando o ouvi assim de repente falar delas com essa simplicidade... Porque enfim, aqui para nós, essa senhora não passa em Lisboa por irmã de Carlos.
O Sr. Guimarães atirou logo a mão num grande-gesto. Ah, bem! Então era jogo com ele? Pois tinha feito o Sr. Ega perfeitamente... Com certeza eram coisas muito sérias, que necessitavam toda a sorte de véus... Ele compreendia, compreendia muito bem!... E realmente, dada a posição dos Maias em Lisboa, na sociedade, aquela senhora não era irmã que se apresentasse.
- Mas a culpa não a teve ela, meu caro senhor! Foi a mãe, foi aquela extraordinária mãe que o Diabo lhe deu!...
Desciam o Chiado. Ega parou um momento, devorando o velho com olhos de febre:
- O Sr. Guimarães conheceu muito essa senhora, a Monforte?
Intimamente! Já a conhecera em Lisboa - mas de longe, como mulher de Pedro da Maia. Depois viera essa tragédia, ela fugira com o italiano. Ele abalara também para Paris nesse ano, com uma Clemência, uma costureira da Levailant: e, umas coisas enfiando noutras, negócios e desgraças, por lá ficara para sempre! Enfim, não era a sua vida que lhe ia contar... Só mais tarde encontrara a Monforte, uma noite, no baile Laborde: e daí datavam as suas relações. A esse tempo já o italiano morrera num duelo, e o velho Monforte espichara da bexiga. Ela estava então com um rapaz chamado Trevernes - numa casa bonita, no Parc Monceaux, em grande chic... Mulher extraordinária! E não se envergonhava de confessar que lhe devia obrigações! Quando essa rapariga, a Clemence, que era um encanto, adoecera do peito, a Monforte trazia-lhe flores, frutas, vinhos, fazia-lhe companhia, velava-a como um anjo... Porque lá isso coração largo e generoso até ali! Esta, a filha, a D. Maria, tinha então sete ou oito anos, linda como os amores... E houvera uma outra pequena do italiano, muito galantinha também. Oh! muito galantinha também! Mas morrera em Londres, essa...
- E com esta Maria andei muitas vezes ao colo, meu caro senhor... Não sei se ela ainda se lembra duma boneca que eu lhe dei, que falava, dizia Napoléon... Era no belo tempo do Império, até as desavergonhadas das bonecas eram imperialistas! Depois, quando ela estava em Tours, no convento, fui lá duas vezes com a mãe. Já então os meus princípios me não permitiam entrar nesses covis religiosos: mas enfim fui acompanhar a mãe... E quando ela fugiu com o irlandês, o MacGren, foi comigo que a mãe veio ter, furiosa, a querer que eu chamasse o comissário de polícia para se prender o irlandês. Por fim meteu-se num fiacre, foi para Fontainebleau, lá fez as pazes, viviam até juntos... Enfim uma série de trapalhadas.
Um suspiro cansado escapou-se do peito do Ega, que arrastava os passos, sucumbido:
- E esta senhora, está claro, não sabia então de quem era filha...
O Sr. Guimarães encolheu os ombros:
- Nem suspeitava que existissem Maias sobre a face da terra! A Monforte dissera-lhe sempre que o pai era um fidalgo austríaco com quem ela casara na Madeira... Uma mixórdia, meu caro senhor, uma mixórdia!
- É horrível! murmurou Ega.
Mas, dizia o Sr. Guimarães, que podia também fazer a Monforte? Que diabo, era duro confessar à filha: «Olha que eu fugi a teu pai, e ele por causa disso matou-se!» Não tanto pela questão de pudor; a rapariga devia perceber que a mãe tinha amantes, ela mesma aos dezoito anos, coitadinha, já tinha um; mas por causa do tiro, do cadáver, do sangue...
-A mim mesmo! exclamou o Sr. Guimarães, parando, alargando os braços na rua deserta. A mim mesmo nunca ela falou do marido, nem de Lisboa, nem de Portugal. Lembra-me até uma ocasião em casa da Clemence, que eu aludi a um cavalo lazão, um cavalo de Pedro da Maia, em que ela costumava montar. Animal soberbo! Mas nem mencionei o marido, falei só do cavalo. Pois senhores, bate com o leque em cima da mesa, grita como uma bicha: - Dites donc, mon cher, vous m'embêtez avec ces histoires de l'autre monde!... Com efeito, bem o podia dizer, eram histórias do outro mundo! Para encurtar: estou convencido que nos últimos tempos ela mesmo julgava que Pedro da Maia nunca existira. Uma insensata! Por fim até bebia... Mas acabou-se! Tinha grande coração, e portou-se muito bem com a Clemence. Parce sepultis!
- É horrível! murmurou outra vez o Ega, tirando o chapéu correndo a mão tremula pela testa.
E agora o seu único desejo era a acumulação incessante de provas, de detalhes. Falou então desses papéis, desse cofre da Monforte. O Sr. Guimarães não sabia o que eles continham; e não se admiraria se fossem apenas contas de modista, ou pedaços velhos do Figaro em que se falava dela...
- É uma caixita pequena que a Monforte me deu, na véspera de partir para Londres com a filha. Era no tempo da guerra... Já a Maria vivia com o irlandês, tinha mesmo uma pequena, a Rosa. Depois veio a Comuna, todos aqueles desastres. Quando a Monforte voltou de Londres eu estava em Marselha. Foi então que a pobre Maria se meteu com o Castro Gomes, creio que para não morrer de fome... Eu recolhi a Paris, mas não vi mais a Monforte, que já estava muito doente... Á Maria, colada então a essa besta do Castro Gomes, um pedante, um rastaquouère mesmo a calhar para a guilhotina, não tornei também a falar. Se a encontrava era um comprimento de longe, como noutro dia, quando a vi na carruagem com V. Exc.ª e com o irmão... De sorte que fui ficando com os papéis. Nem a falar a verdade, com estas coisas todas de política, me lembrei mais deles. E agora aí estão, ás ordens da família.
- Se isso não fosse incomodo para V. Exc.ª, acudiu Ega, eu passava agora pelo seu hotel e levava-os logo comigo...
- Incomodo nenhum! Estamos em caminho, é negócio que fica feito!
Algum tempo seguiram calados. O sarau decerto acabara. Um bater de carruagens atroava as descidas do Chiado. Junto deles passaram duas senhoras, com um rapaz que bracejava, falando alto do Alencar. O Sr. Guimarães tirara lentamente do bolso a charuteira: depois parando, para raspar um fósforo:
- Então a D. Maria passa simplesmente por parenta?... E como soube ela? Como foi isso?
Ega, que caminhava com a cabeça caída, estremeceu como se acordasse. E começou a tartamudear uma história confusa, de que ele mesmo corava na sombra. Sim, Maria Eduarda passava por parenta. Fora o procurador que descobrira. Ela rompera com o Castro Gomes, com todo o passado. Os Maias davam-lhe uma mesada; e vivia nos Olivais, muito retirada, como filha dum Maia que morrera na Itália. Todos gostaram muito dela, Afonso da Maia tinha grande ternura pela pequena...
E de repente indignou-se com estas invenções por onde arrastava já o nome do nobre velho, exclamou como se abafasse:
- Enfim, nem eu sei, um horror!
- Um drama! resumiu gravemente o Sr. Guimarães.
E como estavam no Pelourinho rogou ao Ega que esperasse um momento enquanto ele corria acima buscar os papéis da Monforte.
Só, no largo, Ega ergueu as mãos ao céu num desabafo mudo daquela angustia em que caminhava, como um sonâmbulo, desde o Loreto. E a sua única sensação, bem clara - era a indestructível certeza da história do Guimarães, tão compacta, sem uma lacuna, sem uma falha por onde rachasse e se fizesse cair aos pedaços. O homem conhecera Maria Monforte em Lisboa, ainda mulher de Pedro da Maia, brilhando no seu cavalo lazão; encontrara-a em Paris já fugida, depois da morte do primeiro amante, vivendo com outros; andara então ao colo com Maria Eduarda a quem se davam bonecas... E desde então não deixara mais de ver Maria Eduarda, de a seguir: em Paris; no convento de Tours; em Fontainebleau com o irlandês; nos braços de Castro Gomes; numa tipóia de praça enfim com ele e com Carlos da Maia, havia dias, no cais do Sodré! Tudo isto se encadeava, concordando com a história contada por Maria Eduarda. E de tudo ressaltava esta certeza monstruosa: - Carlos amante da irmã!
Guimarães não descia. No segundo andar surgira uma luz viva, numa janela aberta. Ega recomeçou a passear lentamente pelo meio do largo. E agora, pouco a pouco, subiu nele uma incredulidade contra esta catástrofe de dramalhão. Era acaso verosímil que tal se passasse, com um amigo seu, numa rua de Lisboa, numa casa alugada à mãe Cruges?... Não podia ser! Esses horrores só se produziam na confusão social, no tumulto da Meia-Idade! Mas numa sociedade burguesa, bem policiada, bem escriturada, garantida por tantas leis, documentada por tantos papéis, com tanto registo de baptismo, com tanta certidão de casamento, não podia ser! Não! Não estava no feitio da vida contemporânea que duas crianças separadas por uma loucura da mãe, depois de dormirem um instante no mesmo berço, cresçam em terras distantes, se eduquem, descrevam as parábolas remotas dos seus destinos - para quê? Para virem tornar a dormir juntas no mesmo ponto, num leito de concubinagem! Não era possível. Tais coisas pertencem só aos livros, onde vêm, como invenções subtis da arte, para dar, à alma humana um terror novo... Depois levantava os olhos para a janela alumiada - onde o Sr. Guimarães decerto rebuscava os papéis na mala. Ali estava porém esse homem com a sua história em que não havia uma discordância por onde ela pudesse ser abalada!... E pouco a pouco aquela luz viva, saída do alto, parecia ao Ega penetrar nessa intrincada desgraça, aclara-la toda, mostrar-lhe bem a lenta evolução. Sim, tudo isso era provável no fundo! Essa criança, filha duma senhora que a levara consigo, cresce, é amante dum brasileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. Num bairro vizinho vive outro filho dessa mulher, por ela deixado, que cresceu, é um homem. Pela sua figura, o seu luxo, ele destaca nesta cidade provinciana e pelintra. Ela por seu lado, loura, alta, esplêndida, vestida pela Laferrière, flor duma civilização superior, faz relevo nesta multidão de mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os dois fatalmente se cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se atraem! Há nada mais natural? Se ela fosse feia e trouxesse aos ombros uma confecção barata da loja da América, se ele fosse um mocinho encolhido de chapéu côco, nunca se notariam e seguiriam diversamente nos seus destinos diversos. Assim, o conhecerem-se era certo, o amarem-se era provável... E um dia o Sr. Guimarães passa, a verdade terrível estala!
A porta do hotel rangeu no escuro, o Sr. Guimarães adiantou-se, de boné de seda na cabeça, com o embrulho na mão.
- Não podia dar com a chave da mala, desculpe V. Exc.ª É sempre assim quando há pressa... E aqui temos o famoso cofre!
- Perfeitamente, perfeitamente...
Era uma caixa que parecia de charutos e que o democrata embrulhara num velho número do Rapel. Ega meteu-a no bolso largo do seu paletó: e imediatamente, como se qualquer outra palavra entre eles fosse vã, estendeu a mão ao Sr. Guimarães. Mas o outro insistiu em o acompanhar até à esquina da rua do Arsenal, apesar de estar de boné. A noite, para quem vinha de Paris, tinha uma doçura oriental - e ele, com os seus hábitos de jornalista, nunca se deitava senão tarde, ás duas, três horas da madrugada...
E então, caminhando devagar, com as mãos nos bolsos e o charuto entre os dentes, o Sr. Guimarães voltou à política e ao sarau. A poesia do Alencar (de que esperara muito por causa do título, A Democracia) saíra-lhe consideravelmente chocha.
- Muita flor, muita farofia, muita liberdade, mas não havia ali um ataque em forma, duas ou três boas estocadas nesta choldra da monarquia e da corte... Pois não é verdade?
- Sim, com efeito... - murmurou Ega, olhando ao longe, na esperança duma tipóia.
- É como os jornais republicanos que por aí há... Tudo uma palhada, senhores, tudo uma balofice!... É o que eu lhes digo a eles: - «Ó almas do diabo, atacai as questões sociais!»
Felizmente um trem avançava, rolando devagar, do lado do Terreiro do Paço. Ega, precipitadamente, deu um aperto de mão ao democrata, desejou-lhe uma «boa viagem», atirou ao cocheiro a adresse do Ramalhete. Mas o Sr. Guimarães ainda se apoderou da portinhola para aconselhar ao Ega que fosse a Paris. Agora, que tinham feito amizade, havia de o apresentar a toda aquela gente... E o Sr. Ega veria! Não era cá a grande pose portuguesa, destes imbecis, destes pelintras a darem-se ares, torcendo os bigodes. Lá, na primeira nação do mundo, tudo era alegria e fraternidade e espírito a rodos...
- E a minha adresse, na redacção do Rapel! Bem conhecida no mundo! Enquanto ao embrulhosinho fico descansado...
- Pode V. Exc.ª ficar descansado!
- Criado de V. Exc.ª... Os meus comprimentos à Sr.ª D. Maria!
Na carruagem, através do Aterro, a ansiosa interrogação do Ega a si mesmo foi - que hei de fazer?» Que faria, santo Deus, com aquele segredo terrível que possuía, de que só ele era senhor, agora que o Guimarães partia, desaparecia para sempre? E antevendo com terror todas as angustias em que essa revelação ia lançar o homem que mais estimava no mundo - a sua instintiva ideia foi guardar para sempre o segredo, deixa-lo morrer dentro em si. Não diria nada; o Guimarães sumia-se em Paris; e quem se amava continuava a amar-se!... Não criaria assim uma crise atroz na vida de Carlos - nem sofreria ele, como companheiro, a sua parte dessas aflições. Que coisa mais impiedosa, de resto, que estragar a vida de duas inocentes e adoráveis criaturas, atirando-lhes à face uma prova de incesto!...
Mas, a esta ideia de incesto, todas as consequências desse silêncio lhe apareceram, como coisas vivas e pavorosas, flamejando no escuro diante dos seus olhos. Poderia ele tranquilamente testemunhar a vida dos dois - desde que a sabia incestuosa? Ir à rua de S. Francisco, sentar-se-lhes alegremente à mesa, entrever através do reposteiro a cama em que ambos dormiam - e saber que esta sordidez de pecado era obra do seu silêncio? Não podia ser... Mas teria também coragem de entrar ao outro dia no quarto de Carlos, e dizer-lhe em face - «Olha que tu és amante de tua irmã?»
A carruagem parara no Ramalhete. Ega subiu, como costumava, pela escada particular de Carlos. Tudo estava apagado e mudo. Acendeu a sua palmatória; entreabriu o reposteiro dos aposentos de Carlos; deu alguns passos tímidos no tapete, que pareceram já soar tristemente. Um reflexo de espelho alvejou ao fundo na sombra da alcova. E a luz caiu sobre o leito intacto, com a sua longa colcha lisa, entre os cortinados de seda. Então a ideia que Carlos estava àquela hora na rua de S. Francisco, dormindo com uma mulher que era sua irmã, atravessou-o com uma cruel nitidez, numa imagem material, tão viva e real, que ele viu-os claramente, de braços enlaçados, e em camisa... Toda a beleza de Maria, todo o requinte de Carlos desapareciam. Ficavam só dois animais, nascidos do mesmo ventre, juntando-se a um canto como cães, sob o impulso bruto do cio!
Correu para o seu quarto, fugindo àquela visão a que o escuro do corredor, mal dissipado pela luz tremula, acentuava mais o relevo. Aferrolhou a porta; acendeu à pressa sobre o toucador, uma depois da outra, com a mão agitada, as seis velas dos candelabros. E agora aparecia-lhe mais urgente, inevitável, a necessidade de contar tudo a Carlos. Mas ao mesmo tempo sentia em si, a cada instante, menos animo para chegar, encarar Carlos, e destruir-lhe a felicidade e a vida com uma revelação de incesto. Não podia! Outro que lho dissesse! Ele lá estava depois para o consolar, tomar metade da sua dor, carinhoso e fiel. Mas o desgosto supremo da vida de Carlos não viria de palavras caídas da sua boca!... Outro que lho dissesse! Mas quem? Mil ideias passavam na sua pobre cabeça, incoerentes e tontas. Pedir a Maria que fugisse, desaparecesse... Escrever uma carta anónima a Carlos, com a detalhada história do Guimarães... E esta confusão, esta ansiedade ia-se resolvendo lentamente em ódio ao Sr. Guimarães. Para que falara àquele imbecil? Para que insistira em lhe confiar papéis alheios? Para que lho apresentara o Alencar? Ah! se não fosse a carta do Dâmaso... Tudo provinha do maldito Dâmaso!
Agitando-se pelo quarto, ainda de chapéu, os seus olhos caíram num sobrescrito pousado sobre a mesa de cabeceira. Reconheceu a letra do Vilaça. E nem a abriu... Uma ideia sulcara-o de repente. Contar tudo ao Vilaça!... Porque não? Era o procurador dos Maias. Nunca para ele houvera segredos naquela casa. E esta complicação singular duma senhora da família, considerada morta e que surge inesperadamente - a quem a pertencia aclarar senão ao fiel procurador, ao velho confidente, ao homem que, por herança e por destino, recebera sempre todos os segredos e partilhara todos os interesses domésticos?... E sem pensar, sem aprofundar mais, fixou-se logo nesta decisão salvadora, - que ao menos o sossegava, lhe tirava já do coração um peso de ferro, sufocante e intolerável...
Devia acordar cedo, procurar Vilaça em casa. Escreveu numa folha de papel - «Acorda-me ás sete». E desceu abaixo, ao longo corredor de pedra onde dormiam os criados, dependurou este recado na chave do quarto do escudeiro.
Quando subiu, mais calmo, - abriu então a carta do Vilaça. Era uma curta linha lembrando ao amigo Ega que a letrinha de duzentos mil reis, no Banco Popular, se vencia daí a dois dias...
- Sebo, tudo se junta! exclamou Ega furioso, atirando a carta amarrotada para o chão.


Capítulo XVII
Pontual, ás sete horas, o escudeiro acordou Ega. Ao rumor da porta ele sentou-se na cama um salto - e logo todos os negros cuidados da véspera, Carlos, a irmã, a felicidade daquela casa acabada para sempre, se lhe ergueram na alma em sobressalto, como despertando também. A portada da varanda ficara aberta; um ar silencioso e lívido de madrugada clareava através do transparente de fazenda branca. Durante um momento Ega ficou olhando em redor, arrepiado; depois, sem coragem, remergulhou nos lençóis, gozando aquele bocado de calor e de aconchego antes de ir afrontar fora as amarguras do dia.
E pouco a pouco, sob o tépido aconchego dos cobertores em que se atabafara, começou a afigurar-se-lhe menos urgente, e menos útil, essa correria estremunhada a casa do Vilaça... De que servia procurar o Vilaça? Não se tratava ali de dinheiro, nem de demandas, nem de legalidade - de nada que reclamasse a experiência dum procurador. Era apenas introduzir um burguês mais num segredo tão terrivelmente delicado que ele mesmo se assustava de o saber. E acochado mais sob a roupa, apenas com o nariz ao frio, murmurava consigo: «É uma tolice ir ao Vilaça!»
De resto não poderia ele ajuntar em si bastante coragem para contar tudo a Carlos, logo, nessa manhã, claramente, virilmente? Era por fim aquele caso tão pavoroso como lhe parecera na véspera - um irreparável desabamento duma vida de homem?... Ao pé da quinta da mãe, em Celorico, no lugar de Vouzeias, houvera um sucesso parecido, dois irmãos que inocentemente iam casar. Tudo se aclarou ao reunirem-se os papéis para os banhos. Os noivos ficaram uns dias «embatucados», como dizia o padre Serafim; mas por fim já riam, muito amigos, muito divertidos, quando se tratavam de «manos». O noivo, um rapagão bonito, contava depois «que ia havendo uma mixórdia na família». Aqui o engano seguira mais longe, as sensibilidades eram mais requintadas; mas os seus corações permaneciam livres de toda a culpa, inocentes absolutamente. Porque ficaria pois a existência de Carlos para sempre estragada? A inconsciência impediu-lhe o remorso: e passado o primeiro horror, de que lhe podia, na realidade, vir a definitiva dor? Somente do prazer ter findado. Era então como outro qualquer desgosto de amor. Bem menos atroz do que se Maria o tivesse traído com o Dâmaso!
De repente a porta abriu-se, Carlos apareceu exclamando:
- Então que madrugada foi esta? Disse-me agora lá em baixo o Baptista... É aventura? duelo?
Trazia o paletó todo abotoado, com a gola erguida, escondendo ainda a gravata branca da véspera; e decerto chegara da rua de S. Francisco na tipóia que havia instantes Ega sentira parar na calçada.
Ele sentara-se bruscamente na cama; e estendendo a mão para os cigarros, sobre a mesa ao lado, murmurou, bocejando, que na véspera combinara uma ida a Sintra com o Taveira... Por precaução mandara-se chamar... Mas não sabia, acordara cansado...
- Que tal está o dia?
Justamente Carlos fora correr o transparente da janela. Aí, na mesa de trabalho, colocada em plena luz, ficara a caixa da Monforte embrulhada no Rapel. E Ega pensou num relance: - «Se ele repara, se pergunta, digo tudo!» - O seu pobre coração pôs-se a bater ansiosamente no terror daquela decisão. Mas o transparente um pouco perro subiu, uma facha de sol banhou a mesa - e Carlos voltou sem reparar no cofre. Foi um imenso alívio para o Ega.
- Então, Sintra? disse Carlos, sentando-se aos pés da cama. Com efeito não é má ideia... A Maria ainda ontem esteve também a falar de ir a Sintra... Espera! Podíamos fazer a patuscada juntos... íamos no break, a quatro!
E olhava já o relógio, calculando o tempo para atrelar, avisar Maria.
- O pior, acudiu o Ega atrapalhado, tomando de sobre a mesa o monóculo, é que o Taveira falou em irmos com umas raparigas...
Carlos encolheu os ombros com horror. Que sordidez, ir com mulheres para Sintra, de dia!... De noite, nas trevas, por bebedeira, vá... Mas à luz do Senhor! Talvez com a Lola gorda, hein?...
Ega embrulhou-se numa complicada história, limpando o monóculo à ponta do lençol. Não eram espanholas... Pelo contrario, umas costureiras, raparigas sérias... Ele tinha um compromisso antigo de ir a Sintra com uma delas, filha dum Simões, um estofador que falira... Gente muito séria!...
Perante estes compromissos, tanta seriedade, Carlos desistiu logo da ideia de Sintra.
- Bem, acabou-se!... Vou então tomar banho e depois a negócios... E tu, se flores, traze-me umas queijadas para a Rosa, que ela gosta!...
Apenas Carlos saiu, Ega cruzou os braços desanimado, descorçoado, sentindo bem que não teria coragem nunca de «dizer tudo». Que havia de fazer?... E de novo, insensivelmente, se refugiou na ideia de procurar o Vilaça, entregar-lhe o cofre da Monforte. Não havia homem mais honesto, nem mais pratico; e, pela mesma mediocridade do seu espírito burguês, quem melhor para encarar aquela catástrofe sem paixão e sem nervos?... E esta falta de nervos do Vilaça fixou-o definitivamente.
Saltou então da cama, numa impaciencia, repicou a campainha. E enquanto o criado não entrava, foi, com o robe-de-chambre aos ombros, examinar o cofre da Monforte. Parecia com efeito uma velha caixa de charutos, embrulhada num papel de dobras já sujas e gastas, com marcas de lacre onde se distinguia uma divisa que seria decerto a da Monforte - Pro amore. Na tampa tinha escrito numa letra de mulher mal-ensinada - Monsieur Guimaran, à Paris. Ao sentir os passos do criado deitou-lhe por cima uma toalha, que pendia ao lado, numa cadeira. E daí a meia hora rolava pelo Aterro numa tipóia descoberta, mais animado, respirando largamente aquele belo ar da manhã, fino e fresco, que ele tão raras vezes gozava.
Começou por uma contrariedade. Vilaça já saíra: e a criada não sabia bem se ele fora para o escritório, se a uma vistoria ao Alfeite... Ega largou para o escritório, na rua da Prata. O Sr. Vilaça ainda não viera...
- E a que horas virá?
O escrevente, um rapaz macilento que torcia nervosamente sobre o colete uma corrente de coral, balbuciou que o Sr. Vilaça não devia tardar, se não tivesse atravessado, no vapor das nove, para o Alfeite... Ega desceu desesperado.
- Bem, gritou ao cocheiro, vai ao café Tavares...
No Tavares, ainda solitário àquela hora, um moço areava o sobrado. E enquanto esperava o almoço Ega percorreu os jornais. Todos falavam do sarau, em linhas curtas, prometendo detalhes críticos, mais tarde, sobre esse brilhante torneio artístico. Só a Gazeta Ilustrada se alargava, com frases sérias, tratando o Rufino de grandioso o Cruges de esperançoso: no Alencar a Gazeta separava o filósofo do poeta; ao filósofo a Gazeta lembrava com respeito que nem todas as aspirações ideais da filosofia, belas como miragens de deserto, são realizáveis na pratica social; mas ao poeta, ao criador de tão formosas imagens, de tão inspiradas estâncias, a Gazeta desafogadamente bradava «bravo! bravo!» Havia ainda outras abomináveis sandices. Depois seguia-se a lista das pessoas que a Gazeta se recordava de ter visto, entre as quais «destacava com o seu monóculo o fino perfil de João da Ega, sempre brilhante de verve.» Ega sorriu, cofiando o bigode. Justamente o bife chegava, fumegante, chiando na frigideirinha de barro. Ega pousou a Gazeta ao lado, dizendo consigo: «Não é nada mal feito, este jornal!»
O bife era excelente: - e depois duma perdiz fria, dum pouco de doce de ananás, dum café forte, Ega sentiu adelgaçar-se enfim aquele negrume que desde a véspera lhe pesava na alma. No fim, pensava ele, acendendo o charuto e lançando os olhos ao relógio, naquele desastre praticamente encarado só havia para Carlos a perda duma bela amante. E essa perda, que agora o angustiava, não traria depois compensações? O futuro de Carlos até aí tinha uma sombra - aquela promessa de casamento que irreparavelmente o colava pela honra a uma mulher muito interessante, mas com um passado cheio de brasileiros e de irlandeses... A sua beleza poetisava tudo: mas quanto tempo mais duraria esse encanto, o seu brilho de deusa pisando a terra?... Não seria por fim aquela descoberta do Guimarães uma libertação providencial? daí a anos Carlos estaria consolado, sereno como se nunca tivesse sofrido - e livre, e rico, com o largo mundo diante de si!
O relógio do café deu dez horas. «Bem, vamos a isto», pensou Ega.
De novo a tipóia bateu para a rua da Prata. O Sr. Vilaça ainda não viera, o escrevente estava realmente pensando que o Sr. Vilaça fora ao Alfeite. E diante desta incerteza, de repente, Ega ficou de novo descorçoado, sem coragem. Despediu a tipóia: com o embrulho do cofre na mão foi andando pela rua do Ouro, depois até ao Rossio, parando distraidamente diante dum ourives, lendo aqui e além a capa dum livro na vitrine dos livreiros. Pouco a pouco o negrume da véspera, um momento adelgaçado, recaia-lhe na alma mais denso. Já não via as «libertações» nem as «compensações». Só sentia em torno de si, como fluctuando no ar, aquele horror - Carlos a dormir com a irmã.
Voltou pela rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria de pedra; e logo no patamar, diante da porta de baeta verde, deu com o Vilaça que saia, atarefado, calçando as luvas.
- Homem, até que enfim!
- Ah! Era o amigo que me tinha procurado?... Pois tenha paciência, que está o visconde do Torral à minha espera...
Ega quasi o empurrou. Qual visconde!... Tratava-se duma coisa muito urgente, muito séria! Mas o outro não se arredava da porta, acabando de calçar a luva, com o mesmo ar vivo de negócio e de pressa.
- O amigo bem vê... Está o homem à espera! É um rendez-vous para as onze!
Ega, já furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto à face, tragicamente, que se tratava de Carlos, dum caso de vida ou de morte! Então o Vilaça, num grande espanto, atravessou bruscamente o escritório, fez entrar Ega num cubiculo ao lado, estreito como um corredor, com um canapé de palhinha, uma mesa onde os livros tinham pó, e um armário ao fundo. Fechou a porta, atirou o chapéu para a nuca:
- Então que é?
Ega, com um gesto, indicou fora o escrevente que podia escutar. O procurador abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao Hotel Pelicano pedir ao Sr. visconde do Torral a fineza de esperar meia hora... Depois, fechada a porta no ferrolho, foi a mesma exclamação ansiosa:
- Então que é?
- É um horror, Vilaça, um grande horror... Nem eu sei por onde hei de começar.
Vilaça, já muito pálido, pousou lentamente o guarda-chuva sobre a mesa.
- É duelo?
- Não... É isto... Você sabia que o Carlos tinha relações com uma Sr. Mac-Gren que veio o inverno passado a Portugal, ficou ai?...
Uma senhora brasileira, mulher dum brasileiro, que passara o verão nos Olivais?... Sim, Vilaça sabia. Falara até nisso com o Euzebiosinho.
- Ah, com o Euzébio?... Pois não é brasileira! É portuguesa, e irmã dele!
Vilaça caiu para o canapé, batendo as mãos num assombro.
- Irmã do Euzébio!
- Qual do Euzébio, homem!... Irmã de Carlos!
Vilaça ficara mudo, sem compreender, com os olhos terrivelmente arregalados para o outro, que se movia pelo cubiculo, repetindo: «irmã! Irmã legitima!» Ega por fim sentou-se no canapé de palhinha; e baixo, muito baixo, apesar da solidão do escritório, contou o seu encontro com o Guimarães no sarau, e como a verdade terrível estalara casualmente, numa palavra, à esquina do Aliança... Mas quando falou dos papéis, entregues pela Monforte ao Guimarães, há tantos anos guardados, nunca reclamados, e que o democrata agora, tão de repente, tão urgentemente, queria restituir à família - Vilaça, até aí esmagado e como emparvecido, despertou, teve uma explosão:
- Aí há marosca! Tudo isso é para apanhar dinheiro!...
- Apanhar dinheiro! Quem?
- Quem? exclamou Vilaça de pé, arrebatadamente. Essa senhora, esse Guimarães, essa tropa!... É que o amigo não percebe! Se aparecer uma irmã do Maia, legitima e autentica, são quatrocentos contos e pico que cabem à irmã do Maia!...
Então os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forte impressão daquela ideia inesperada que a seu pesar abalava o Ega. Mas como o procurador, tremulo, voltava à grande soma de quatrocentos contos, lembrava a Companhia do Olho Vivo, Ega terminou por encolher os ombros:
- Isso não tem verosimilhança nenhuma! Ela é incapaz, absolutamente incapaz, de semelhante intriga. Além disso, se é uma questão de dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar como irmã desde que Carlos lhe prometera casar com ela?
Casar com ela! Vilaça erguia as mãos, não queria acreditar. O quê! o Sr. Carlos da Maia dar a sua mão, o seu nome, a essa criatura amigada com um brasileiro?... Santíssimo nome de Deus! E através do assombro recrescia-lhe a desconfiança, via aí um novo feito do Olho Vivo.
- Não senhor, Vilaça, não senhor! insistiu Ega, já impaciente. Se a questão é de documentos e se ela os tinha, verdadeiros ou falsificados, apresentava-os logo, não ia primeiro dormir com o irmão!
Vilaça baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terror invadia-o diante daquela grande casa, que era o seu orgulho, partida em metade, empolgada por uma aventureira... Mas como o Ega, muito nervoso, lembrava que de resto a questão não era de documentos, nem de legalidade, nem de fortuna - o procurador teve outro grito, com a face de novo alumiada:
- Espere, homem, há outra coisa!... Talvez ela seja filha do italiano!
- E então?... Vem a dar na mesma.
- Alto lá! berrou o procurador, batendo com o punho na mesa. Não tem direito à legitima do pai, e não apanha um real desta casa!... Irra, aí é que está o ponto!
Ega teve um gesto desolado. Não, nem isso, desgraçadamente! Esta era a filha do Pedro da Maia. O Guimarães conhecia-a de a trazer ao colo, de lhe dar bonecas quando ela tinha sete anos, e quando apenas havia quatro ou cinco anos que o italiano estivera em Arroios, de cama, com uma chumbada... A filha desse morrera em Londres, pequenina.
Vilaça recaiu no canapé, sucumbido.
- Quatrocentos contos, que bolada!
Então Ega resumiu. Se não existia ainda uma certeza legal, havia já uma forte suspeita. E desde logo não se podia deixar o pobre Carlos, inocentemente, a chafurdar naquela sordidez. Era pois indispensável revelar tudo a Carlos nessa noite...
- E você, Vilaça, é que tem de lho dizer.
Vilaça deu um salto que fez bater o canapé contra a parede.
- Eu?
- Você, que é o procurador da casa!
Que havia ali, senão uma questão de filiação, portanto de legitima? A quem pertenciam esses detalhes legais senão ao procurador?
Vilaça murmurou com todo o sangue na face:
- Homem, o amigo mete-me numa!...
Não. Ega metia-o apenas naquilo em que o Vilaça, como procurador, logicamente e profissionalmente devia estar.
O outro protestou, tão perturbado que gaguejava. Que diabo! Não era esquivar-se aos seus deveres! Mas é que ele não sabia nada! Que podia dizer ao Sr. Carlos da Maia? «O amigo Ega veio-me contar isto, que lhe contou um tal Guimarães ontem à noite no Loreto...» Não tinha a dizer mais nada...
- Pois diga isso.
O outro encarou Ega com olhos que chamejavam:
- Diga isso, diga isso... Que diabo, senhor, é necessário ter topete!
Deu um puxão desesperado ao colete, foi bufando até ao fundo do cubiculo, onde esbarrou com o armário. Voltou, tornou a encarar o Ega:
- Não se vai a um homem com uma coisa dessas sem provas... Onde estão as provas?...
- Ó Vilaça, desculpe, você está obtuso!... A que vim eu aqui senão trazer-lhe as provas, as que há, boas ou más, a história do Guimarães, essa caixa com os papéis da Monforte?...
Vilaça, que resmungava, foi examinar a caixa, virando-a nas mãos, decifrando o mote do sinete Pro amore.
- Então, abrimo-la?
Já Ega puxara uma cadeira para a mesa. Vilaça cortou o papel, gasto nos cantos, que envolvia o cofre. E apareceu efectivamente uma velha caixa de charutos pregada com duas taxas, cheia de papéis, alguns em maços apertados por fitas, outros soltos dentro de sobrescritos abertos que tinham o monograma da Monforte sob uma coroa de marquês. Ega desembrulhou o primeiro maço. Eram cartas em alemão, que ele não percebia, datadas de Buda-Pest e de Carlsruhe.
- Bem, isto não nos diz nada... Adiante!
Outro embrulho, a que Vilaça cuidadosamente desapertou o nó cor de rosa, resguardava uma caixa oval com a miniatura dum homem de bigodes e suissas ruivas, entalado na alta gola dourada duma farda branca. Vilaça achou a pintura «linda».
- Algum oficial austríaco, rosnou Ega. outro amante... Ça marche.
Iam tirando os papéis por ordem, com a ponta dos dedos, como tocando em relíquias. Um largo envelope atulhado de contas de modistas, algumas pagas, outras sem recibo, interessou profundamente o Vilaça - que percorria os itens, espantado dos preços, das infinitas invenções do luxo. Contas de seis mil francos! Um só vestido, dois mil francos!... Outro maço trouxe uma surpresa. Eram cartas de Maria Eduarda à mãe, escritas do convento, numa letra redonda e trabalhada como um desenho, com frasesinhas cheias de gravidade devota, ditadas decerto pelas boas Irmãs; e nestas composições, virtuosas e frias como temas, o sincero coração da rapariga só transparecia nalguma florzinha, agora seca, pregada no alto do papel com um alfinete.
- Isto põe-se de parte, murmurou Vilaça.
Então Ega, já impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa, alastrou os papéis. E entre cartas, «entras contas, bilhetes de visita, um grande sobrescrito destacou com esta linha a tinta azul: - Pertence a minha filha Maria Eduarda. Foi Vilaça que lançou os olhos rapidamente à enorme folha de papel que ele continha, luxuosa e documental, com o monograma de ouro sob a coroa de marquês. Quando o passou em silêncio para a mão do Ega parecia sufocado, com todo o sangue nas orelhas.
Ega leu-o alto, devagar. Dizia: - «Como a Maria teve a pequena e anda muito fraca, e eu também me não sinto nada boa com umas pontadas, parece-me prudente, para o que possa vir a suceder, fazer aqui uma declaração que te pertence a ti, minha querida filha, e que só sabe o padre Taloux (Mr. l'abbé Taloux, coadjuteur à Saint-Roch) porque lho disse há dois anos quando tive a pneumonia. E é o seguinte: Declaro que minha filha Maria Eduarda, que costuma assinar Maria Calzaski, por supor ser esse o nome de seu pai, é portuguesa e filha de meu marido Pedro da Maia, de quem me separei voluntariamente, trazendo-a comigo para Viena, depois para Paris, e que agora vive em companhia de Patrick Mac-Gren, em Fontainebleau, com quem vai casar. E o pai de meu marido era meu sogro Afonso da Maia, viúvo, que vivia em Benfica e também em Santa Olavia ao pé do rio Douro. O que tudo se pode verificar em Lisboa pois devem lá estar os papéis; e os meus erros de que vejo agora as consequências não devem impedir que tu, minha querida filha, tenhas a posição e fortuna que te pertencem. E por isso aqui declaro tudo isto que assino, no caso que o não possa fazer diante dum tabelião, o que tenciono logo que esteja melhor. E de tudo, se eu vier a morrer, o que Deus não permitiu, peço perdão a minha filha. E assino com o meu nome de casada - Maria Monforte da Maia.»
Ega ficou a olhar para o Vilaça. O procurador só pôde murmurar, com as mãos cruzadas sobre a mesa:
- Que bolada! Que bolada!
Então Ega ergueu-se. Bem! Agora tudo se simplificava. Havia unicamente a entregar aquele documento a Carlos, sem comentários. Mas o Vilaça coçava a cabeça, retomado por uma dúvida:
- Eu não sei se este papelinho faria fé em juizo...
- Qual fé, qual juizo! exclamou Ega violentamente. É o bastante para que ele não torne a dormir com ela!...
Uma pancada tímida na porta do cubiculo fê-lo estacar, inquieto. Desandou a chave. Era o escrevente, que segredou através da frincha:
- O Sr. Carlos da Maia ficou agora lá em baixo no carrinho quando eu entrei, perguntou pelo Sr. Vilaça.
Houve um pânico! Ega, atarantado, agarrara o chapéu do Vilaça. O procurador atirava ás mãos ambas, para dentro duma gaveta, os papéis da Monforte.
- É talvez melhor dizer que não está, lembrou o escrevente.
- Sim, que não está! foi o grito abafado de ambos.
Ficaram à escuta, ainda pálidos. O dog-cart de Carlos rolou na calçada; os dois amigos respiraram. Mas agora Ega arrependia-se de não terem mandado subir Carlos - e ali mesmo, sem outras vacilações nem pieguices, corajosamente, contarem-lhe tudo, diante daqueles papéis bem abertos. E estava saltado o barranco!
- Homem, dizia o Vilaça passando o lenço pela testa, as coisas querem-se devagar, com método. É necessário preparar-se a gente, respirar para dar bem o mergulho...
Em todo o caso, concluiu o Ega, eram ociosas mais conversas. Os outros papéis da caixa perdiam o interesse depois daquela confissão da Monforte. Só restava que Vilaça aparecesse à noite no Ramalhete ás oito e meia, ou nove horas, antes de Carlos subir para a rua de S. Francisco.
- Mas o amigo há de lá estar! exclamou o procurador, já aterrado.
Ega prometeu. Vilaça teve um pequeno suspiro. Depois, no patamar, onde viera acompanhar o outro:
- Uma destas, uma destas!... E eu ainda, tão contente, a jantar no Ramalhete...
- E eu, com eles, na rua de S. Francisco!...
- Enfim, até à noite!
- Até à noite.
Ega não se atreveu nesse dia a voltar ao Ramalhete, a jantar diante de Carlos, a ver-lhe a alegria e a paz - sentindo aquela negra desgraça que descia sobre ele à maneira que a noite descia. Foi pedir as sopas ao marquês, que desde o sarau se conservava em casa, de garganta entrapada. Depois, ás oito e meia, quando calculou que Vilaça devia estar já no Ramalhete, deixou o marquês que se enfronhara com o capelão numa partida de damas.
Aquele lindo dia, toldado de tarde, findara numa chuvinha miúda que transia as ruas. Ega tomou uma tipóia. E parava no Ramalhete, já terrivelmente nervoso, quando avistou Vilaça no portal, de guarda-chuva sob o braço, arregaçando as calças para subir.
- Então? gritou-lhe o Ega.
Vilaça abriu o guarda-chuva, para murmurar debaixo, mas em segredo:
- Não foi possível... Disse que tinha muita pressa, que não me podia ouvir.
Ega bateu o pé, desesperado:
- Oh homem!
- Que quer o amigo? Havia de o agarrar à força? Ficou para amanhã... Tenho de cá estar amanhã ás onze horas.
Ega galgou as escadas, rosnando entre dentes: «Irra! não saímos desta!» Foi até ao escritório de Afonso. Mas não entrou. Através duma fenda larga do reposteiro meio franzido, um canto da sala aparecia, quente e cheio de aconchego, no doce tom cor de rosa da luz caindo sobre os damascos: as cartas esperavam na mesa do whist: no sofá bordado a matiz D. Diogo, murcho e mole, olhava o lume, cofiando os bigodes. E, travadas nalguma questão, a voz do Craft, que perpassou de cachimbo na mão, e a voz mais lenta de Afonso, tranquilo na sua poltrona, misturavam-se, abafadas pela do Sequeira, que berrava furiosamente: - «Mas se amanhã houvesse uma bernarda, esse exercito com que os senhores querem acabar por ser uma escola de vadiagem é que lhes havia de guardar as costas... É bom falar, ter muita filosofia! Mas quando elas chegam, se não há meia dúzia de baionetas prontas, então são as cólicas!...»
Ega foi dali aos quartos de Carlos. As velas ardiam ainda nas serpentinas: um aroma errava de água de Lubin e charuto: e o Baptista disse-lhe que o Sr. D. Carlos «saíra havia dez minutos». Fora para a rua de S. Francisco! Ia lá dormir! Então enervado, com a longa e triste noite diante de si, Ega teve um apetite de se atordoar, dissipar numa excitação forte as ideias que o torturavam. Não despedira a tipóia, abalou para S. Carlos. E findou por ir cear ao Augusto com o Taveira e duas raparigas, a Paca e a Carmen Filosofa, prodigalizando o champagne. Ás quatro da manhã estava bêbedo, estatelado sobre o sofá, gemendo sentimentalmente, só para si, as estrofes de Musset à Malibran... O Taveira e a Paca, juntinhos na mesma cadeira, ele com o seu ar terno de chulo, ela muy caliente também, debicavam copinhos de gelatina. E a Carmen Filosofa, empanturrada, desapertada, com o colete embrulhado já num Diário de Noticias, repicava a faca na borda do prato, cantarolando de olhos perdidos nos bicos de gás:
Señor Alcalde maior,
No prenda usted los ladrones...
Acordou ao outro dia ás nove horas, ao lado da Carmen Filosofa, num quarto de grandes janelas rasgadas por onde entrava toda a melancolia da escura manhã de chuva. E, enquanto não vinha a tipóia fechada que a servente correra a chamar, o pobre Ega enojado, vexado, com a língua pastosa, os pés nús sobre o tapete, reunindo o fato espalhado, tinha só uma ideia clara - fugir dali para um grande banho, bem perfumado e bem fresco, onde se purificasse numa sensação viscosa de Carmen e de orgia que o arrepiava.
Esse banho lustral foi toma-lo ao Hotel Braganza, para se encontrar com Carlos e com Vilaça ás onze horas já lavado e preparado. Mas precisou esperar pela roupa branca que o cocheiro, com um bilhete para o Baptista, voara a buscar ao Ramalhete: depois almoçou: e já batera meio dia quando se apeou à porta particular dos quartos de Carlos, com a roupa suja numa trouxa.
Justamente Baptista atravessava o patamar com camélias num açafate.
- O Vilaça já veio? Perguntou-lhe Ega baixo, andando em pontas de pés.
- O Sr. Vilaça já lá está dentro há bocado. V. Exc.ª recebeu a roupa branca?... Eu também mandei um fato, porque nesses casos sempre dá mais frescura...
- Obrigado, Baptista, obrigado!
E Ega pensava: - «Bem, Carlos já sabe tudo, o barranco está passado!» Mas demorou-se ainda, tirando as luvas e o paletó com uma lentidão cobarde. Por fim, sentindo bater alto o coração, puxou o reposteiro de veludo. Na ante-câmara pesava um silêncio; a chuva grossa fustigava a porta envidraçada, por onde se viam as árvores do jardim esfumadas na névoa. Ega levantou o outro reposteiro que tinha bordadas as armas dos Maias.
- Ah! és tu? exclamou Carlos, erguendo-se da mesa de trabalho com uns papéis na mão.
Parecia ter conservado um animo viril e firme: apenas os olhos lhe rebrilhavam, com um fulgor seco, ansiosos e mais largos na palidez que o cobria. Vilaça, sentado defronte, passava vagarosamente pela testa, num movimento cansado, o lenço de seda da índia. Sobre a mesa alastravam-se os papéis da Monforte.
- Que diabo de embrulhada é esta que me vem contar o Vilaça? rompeu Carlos, cruzando os braços diante do Ega, numa voz que apenas de leve tremia.
Ega balbuciou:
- Eu não tive coragem de te dizer...
- Mas tenho eu para ouvir!... Que diabo te contou esse homem?
Vilaça ergueu-se imediatamente. Ergueu-se com a pressa dum galucho tímido que é rendido num posto arriscado, pediu licença, se não precisavam dele, para voltar ao escritório. Os amigos decerto preferiam conversar mais livremente. De resto, ali ficaram os papéis da Sr.ª D. Maria Monforte. E se ele fosse necessário um recado encontrava-o na rua da Prata ou em casa...
- E V. Exc.ª compreende, acrescentou ele enrolando nas mãos o lenço de seda, eu tomei a iniciativa de vir falar, por ser o meu dever, como amigo confidencial da casa... Foi essa também a opinião do nosso Ega...
- Perfeitamente, Vilaça, obrigado! acudiu Carlos. Se for necessário lá mando...
O procurador, com o lenço na mão, lançou em redor um olhar lento. Depois espreitou debaixo da mesa. Parecia muito surpreendido. E Carlos seguia com impaciencia os passos tímidos que ele dava pelo quarto, procurando...
- Que é, homem?
- O meu chapéu. Imaginei que o tinha posto aqui... Naturalmente ficou lá fora... Bem, se for necessário alguma coisa...
Mal ele saiu, atirando ainda os olhos inquietos pelos cantos, Carlos fechou violentamente o reposteiro. E voltando para o Ega, caindo pesadamente numa cadeira:
- Dize lá!
Ega, sentado no sofá, começou por contar o encontro com o Sr. Guimarães, em baixo no botequim da Trindade, depois de ter falado o Rufino. O homem queria explicações sobre a carta do Dâmaso, sobre a bebedeira hereditária... Tudo se aclarara, ficando daí entre eles um começo de familiaridade...
Mas o reposteiro mexeu de leve - e surdiu de novo a face do Vilaça:
- Peço desculpa, mas é o meu chapéu... Não o acho, havia de jurar que o deixei aqui...
Carlos conteve uma praga. Então Ega procurou também, por traz do sofá, no vão da janela. Carlos, desesperado, para findar, foi ver entre os cortinados da cama. E Vilaça, escarlate, aflito, esquadrinhava até a alcova do banho...
-Um sumiço assim! Enfim, talvez me esquecesse na ante-câmara!... Vou ver outra vez... O que peço é desculpa.
Os dois ficaram sós. E Ega recomeçou, detalhando como Guimarães, duas ou três vezes nos intervalos, lhe viera falar de coisas indiferentes, do sarau, de política, do papá Hugo, etc. Depois ele procurara Carlos para irem um bocado ao Grémio. Terminara por sair com o Cruges. E passavam defronte do Aliança...
Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perdão a suas excelências:
- É o Sr. Vilaça que não acha o chapéu, diz que o deixou aqui...
Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas como para despachar o Baptista.
- Vai para o diabo tu e o Sr. Vilaça!... Que saia sem chapéu! Dá-lhe o meu! Irra!
Baptista recuou, muito grave.
Vá, acaba lá! exclamou Carlos, recaindo no assento, mais pálido.
E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrível conversa com o Guimarães, desde o momento em que o homem por acaso, já ao despedir-se, já ao estender-lhe a mão, falara da «irmã do Maia». Depois entregara-lhe os papéis da Monforte à porta do Hotel de Paris, no Pelourinho...
- E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu que noite eu passei! Mas não tive coragem de te dizer. Fui ao Vilaça... Fui ao Vilaça com a esperança sobretudo de ele saber algum facto, ter algum documento que atirasse por terra toda esta história do Guimarães... Não tinha nada, não sabia nada. Ficou tão aniquilado como eu!
No curto silêncio que caiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo do jardim, cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se arrebatadamente, numa revolta de todo o ser:
- E tu acreditas que isso seja possível? Acreditas que suceda a um homem como eu, como tu, numa rua de Lisboa? Encontro uma mulher, olho para ela, conheço-a, durmo com ela e, entre todas as mulheres do mundo, essa justamente há de ser minha irmã! É impossível... Não há Guimarães, não há documentos que me convençam!
E como Ega permanecia mudo, a um canto do sofá, com os olhos no chão:
- Dize alguma coisa, gritou-lhe Carlos. Dúvida também, homem, dúvida comigo!... É extraordinário! Todos vocês acreditam, como se isto fosse a coisa fosse a coisa mais natural do mundo, e não houvesse por essa cidade fora senão irmãos a dormir juntos!
Ega murmurou:
- Já ia sucedendo um caso assim, lá ao pé da quinta, em Celorico...
E neste momento, sem que um rumor os prevenisse, Afonso da Maia apareceu numa abertura do reposteiro, encostada à bengala, sorrindo todo com alguma ideia que decerto o divertia. Era ainda o chapéu do Vilaça.
- Que diabo fizeram vocês ao chapéu do Vilaça? O pobre homem andou por aí aflito... Teve de levar um chapéu meu. Caia-lhe pela cabeça abaixo, enchumaçaram-lho com lenços...
Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Reparou na atarantação do Ega cujos olhos mal se fixavam, fugindo ansiosamente dele para Carlos. Todo o sorriso se lhe apagou, deu no quarto um passo lento:
- Que é isso, que têm vocês?... Há alguma coisa?
Então Carlos, no ardente egoísmo da sua paixão, sem pensar no abalo cruel que ia dar ao pobre velho, cheio só de esperança que ele, seu avô, testemunha do passado, soubesse algum facto, possuísse alguma certeza contraria a toda essa história de Guimarães, a todos esses papéis da Monforte - veio para ele, desabafou:
- Há uma coisa extraordinária, avô! O avô talvez saiba... O avô deve saber alguma coisa que nos tire desta aflição!... Aqui está, em duas palavras. Eu conheço aí uma senhora que chegou há tempos a Lisboa, mora na rua de S. Francisco. Agora de repente descobre-se que é minha irmã legitima!... Passou aí um homem que a conhecia, que tinha uns papéis... Os papéis aí estão. São cartas, uma declaração de minha mãe... Enfim uma trapalhada, um montão de provas... Que significa tudo isto? Essa minha irmã, a que foi levada em pequena, não morreu?... O avô deve saber!
Afonso da Maia, que um tremor tomara, agarrou-se um momento com força à bengala, caiu por fim pesadamente numa poltrona, junto do reposteiro. E ficou devorando o neto, o Ega, com o olhar esgazeado e mudo.
- Esse homem, exclamou Carlos, é Guimarães, um tio do Dâmaso... Falou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papéis... Conta tu ao avô, Ega, conta tu do começo!
Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa história. E findou por dizer que o importante, o decisivo ali era este homem, o Guimarães, que não tinha interesse em mentir e só por acaso, puramente por acaso, falara em tais coisas - conhecia essa senhora, desde pequenina, como filha de Pedro da Maia e de Maria Monforte. E nunca a perdera de vista. Vira-a crescer em Paris, andara com ela ao colo, dera-lhe bonecas. Visitara-a com a mãe no convento. Frequentara a casa que ela habitava em Fontainebleau, como casada...
- Enfim, interrompeu Carlos, viu-a ainda há dias, numa carruagem, comigo e com o Ega... Que lha parece, avô?
O velho murmurou, num grande esforço, como se as palavras saindo lhe rasgassem o coração:
- Essa senhora, está claro, não sabe nada...
Ega e Carlos, a um tempo, gritaram: - «Não sabe nada!» Segundo afirmava o Guimarães, a mãe escondera-lhe sempre a verdade. Ela julgava-se filha dum austríaco. Assinava-se ao principio Calzaski...
Carlos, que remexera sobre a mesa, adiantou-se com um papel na mão:
- Aqui tem o avô a declaração de minha mãe.
O velho levou muito tempo a procurar. a tirar a luneta de entre o colete com os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel devagar, empalidecendo mais a cada linha, respirando penosamente; ao findar deixou cair sobre os joelhos as mãos, que ainda agarravam o papel, ficou como esmagado e sem força. As palavras por fim vieram-lhe apagadas, morosas. Ele nada sabia... O que a Monforte ali assegurava, ele não podia destruir... Essa senhora da rua de S. de Francisco era talvez na verdade sua neta... Não sabia mais...
E Carlos diante dele vergava os ombros, esmagado também sob a certeza da sua desgraça. O avô, testemunha do passado, nada sabia! Aquela declaração, toda a história do Guimarães aí permaneciam inteiras, irrefutáveis. Nada havia, nem memória de homem, nem documento de escrito, que as pudesse abalar. Maria Eduarda era, pois, sua irmã!... E um defronte do outro, o velho e o neto pareciam dobrados por uma mesma dor - nascida da mesma ideia.
Por fim Afonso ergueu-se, fortemente encostado à bengala, foi pousar sobre a mesa o papel da Monforte. Deu um olhar, sem lhes tocar, ás cartas espalhadas em volta da caixa de charutos. Depois, lentamente, passando a mão pela testa:
- Nada mais sei... Sempre pensamos que essa criança tinha morrido... Fizeram-se todas as pesquisas... Ela mesma disse que lhe tinha morrido a filha, mostrou já não sei a quem um retrato...
- Era outra mais nova, a filha do italiano, disse o Ega. O Guimarães falou-me nisso... Foi esta que viveu. Esta, que tinha já sete ou oito anos, quando havia apenas quatro ou cinco que esse sujeito italiano aparecera em Lisboa... Foi esta.
- Foi esta, murmurou o velho.
Teve um gesto vago de resignação, acrescentou, depois de respirar fortemente:
- Bem! Tudo isto tem de ser mais pensado... Parece-me bom tornar a chamar o Vilaça... Talvez seja necessário que ele vá a Paris... E antes de tudo precisamos sossegar... De resto não há aqui morte de homem... Não há aqui morte de homem!
A voz sumia-se-lhe, toda tremula. Estendeu a mão a Carlos que lha beijou, sufocado; e o velho, puxando o neto para si, pousou-lhe os lábios na testa. Depois deu dois passos para a porta, tão lentos e incertos que Ega correu para ele:
- Tome V. Exc.ª o meu braço...
Afonso apoiou-se nele, pesadamente. Atravessaram a ante-câmara silenciosa onde a chuva contínua batia nos vidros. Por traz deles caiu o grande reposteiro com as armas dos Maias. E então Afonso, de repente, soltando o braço do Ega, murmurou-lhe, junto à face, no desabafo de toda a sua dor:
- Eu sabia dessa mulher!... Vive na rua de S. Francisco, passou todo o verão nos Olivais... É a amante dele!
Ega ainda balbuciou: «Não, não, Sr. Afonso da Maia!» Mas o velho pôs o dedo nos lábios, indicou Carlos dentro que podia ouvir... E afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido enfim por aquele implacável destino que depois de o ter ferido na idade de força com a desgraça do filho - o esmagava ao fim de velhice com a desgraça do neto.
Ega enervado, exausto, voltou para o quarto - onde Carlos recomeçara naquele agitado passeio que abalava o soalho, fazia tilintar finamente os frascos de cristal sobre o mármore da console. Calado, junto da mesa, Ega ficou percorrendo outros papéis da Monforte - cartas, um livrinho de marroquim com adresses, bilhetes de visita de membros do Jockey Club e de senadores do império. Subitamente Carlos parou diante dele, apertando desesperadamente as mãos:
- Estarem duas criaturas em pleno céu, passar um quidam, um idiota, um Guimarães, dizer duas palavras, entregar uns papéis e quebrar para sempre duas existências!... Olha que isto é horrível, Ega!
Ega arriscou uma consolação banal:
- Era pior se ela morresse...
- Pior porque? exclamou Carlos. Se ela morresse, ou eu, acabava o motivo desta paixão, restava a dor e a saudade, era outra coisa... Assim estamos vivos, mas mortos um para o outro, e viva a paixão que nos unia!... Pois tu imaginas que por me virem provar que ela é minha irmã, eu gosto menos dela do que gostava ontem, ou gosto dum modo diferente? Está claro que não! O meu amor não se via duma hora para a outra acomodar a novas circunstâncias, e transformar-se em amizade... Nunca! Nem eu quero!
Era uma brutal revolta - o seu amor defendendo-se, não querendo morrer, só porque as revelações dum Guimarães e uma caixa de charutos cheia de papéis velhos o declaravam impossível, e lhe ordenavam que morresse!
Houve outro melancólico silêncio. Ega acendeu uma cigarrete, foi-se enterrar ao canto do sofá. Uma fadiga ia-o vencendo, feita de toda aquela emoção, da noitada do Augusto, da estremunhada manhã na alcova da Carmen. Todo o quarto foi entristecendo, à luz mais triste da tarde de inverno que descia. Ega terminou por cerrar os olhos. Mas bem depressa o sacudiu outra exclamação de Carlos, que de novo, diante dele, apertava as mãos com desespero:
- E o pior ainda não é isto, Ega! O pior é que temos de lhe dizer tudo, a ela!...
Ega já pensara nisso... E era necessário que se lhe dissesse imediatamente, sem hesitações.
- Vou-lhe eu mesmo contar tudo, murmurou Carlos.
- Tu!?
- Pois quem, então? Querias que fosse o Vilaça?...
Ega franzia a testa:
- O que tu devias fazer era meter-te esta noite no comboio, e partir para Santa Olavia. De lá contavas-lhe tudo. Estavas assim mais seguro.
Carlos atirou-se para uma poltrona, com um grande suspiro de fadiga:
- Sim, talvez, amanhã, no comboio da noite... Já pensei nisso, era o melhor... Agora o que estou é muito cansado!
- Também eu, disse o Ega espreguiçando-se. E já não adiantamos nada, atolamo-nos mais na confusão. O melhor é serenar... Eu vou-me estirar um bocado na cama.
- Até logo!
Ega subiu ao quarto, deitou-se por cima da roupa; e no seu imenso cansaço bem depressa adormeceu. Acordou tarde a um rumor da porta. Era Carlos que entrava, raspando um fósforo. Anoitecera, em baixo tocava a campainha para o jantar.
- Demais a mais esta maçada do jantar! dizia Carlos acendendo as velas no toucador. Não termos um pretexto para irmos fora, a uma taverna, conversar em sossego! Ainda por cima convidei ontem o Steinbroken.
Depois voltando-se:
- Ó Ega, tu achas que o avô sabe tudo?
O outro saltara da cama, e diante do lavatório arregaçava as mangas:
- Eu te digo... Parece-me que teu avô desconfia... O caso fez-lhe a impressão de uma catástrofe... E, se não suspeitasse o que há, devia-lhe causar simplesmente a surpresa de quem descobre uma neta perdida.
Carlos teve um lento suspiro. daí a um instante desciam para o jantar.
Em baixo encontraram, além de Steinbroken e D. Diogo - o Craft, que viera «pedir as sopas». E em torno àquela mesa, sempre alegre, coberta de flores e de luzes, uma melancolia flutuava nessa tarde através duma conversa dormente sobre doenças, - o Sequeira que tinha reumatismo, o pobre marquês piorara.
De resto Afonso, no escritório, queixara-se duma forte dor de cabeça, que justificava o seu ar consumido e pálido. Carlos, a quem Steinbroken achara «má cara», explicou também que passara uma noite abominável. Então Ega, para desanuviar o jantar, pediu ao amigo Steinbroken as suas impressões sobre o grande orador do sarau da Trindade, o Rufino. O diplomata hesitou. Surpreendera-o bastante saber que o Rufino era um político, um parlamentar... Aqueles gestos, o bocado da camisa a ver-se-lhe no estômago, a pêra, a grenha, as botas, não lhe pareciam realmente dum Homem de Estado:
- Mais cependant, cependant... Dans ce genre à, dans le genre sublime, dans le genre de Demostènes, il m'a paru très fort... Oh, il m'a paru excessivement fort!
- E você, Craft?
Craft, no sarau, só gostara do Alencar. Ega encolheu violentamente os ombros. Ora histórias! Nada podia haver mais cómico que a democracia romântica do Alencar, aquela República meiga e loura, vestida de branco como Ofélia, orando no prado, sob o olhar de Deus... Mas Craft justamente achava tudo isso excelente por ser sincero. O que feria sempre nas exibições da literatura portuguesa? A escandalosa falta de sinceridade. Ninguém, em verso ou prosa, parecia jamais acreditar naquilo que declamava com ardor, esmurrando o peito. E assim fora na véspera. Nem o Rufino parecia acreditar na influência da religião; nem o homem da barba bicuda no heroismo dos Castros e dos Albuquerques; nem mesmo o poeta dos olhinhos bonitos na bonitice dos olhinhos... Tudo contrafeito e postiço! Com o Alencar, que diferença! Esse tinha uma fé real no que cantava, na Fraternidade dos povos, no Cristo republicano, na Democracia devota e coroada de estrelas...
- Já deve ser bem velho esse Alencar, observou D. Diogo que rolava bolinhas de pão entre os longos dedos pálidos.
Carlos, ao lado, emergiu enfim do seu silêncio:
- O Alencar deve ter bons cinquenta anos.
Ega jurou pelo menos sessenta. Já em 1836 o Alencar publicava coisas delirantes, e chamava pela morte, no remorso de tantas virgens que seduzira...
- Há que anos, com efeito, murmurou lentamente Afonso, eu ouvi falar desse homem!
D. Diogo, que levara os lábios ao copo, voltou-se para Carlos:
- O Alencar tem a idade que havia de ter teu pai... Eram íntimos, dessa roda distinguée de então. O Alencar ia muito a Arroios com o pobre D. João da Cunha, que Deus haja, e com os outros. Era tudo uma fina flor, e regulavam pela mesma idade... Já nada resta, já nada resta!
- Carlos baixara os olhos: todos por acaso emudeceram: um ar de tristeza passou entre as flores e as luzes como vinda do fundo desse passado, cheio de sepulturas e dores.
- E o pobre Cruges, coitado, que fiasco! exclamou Ega, para sacudir aquela névoa.
Craft achava o fiasco justo. Para que fora ele dar Beetoven a uma gente educada pela chulice de Ofenbach? Mas Ega não admitia esse desdém por Ofenbach, uma das mais finas manifestações modernas do cepticismo e da ironia! Steinbroken acusou Ofenbach de não saber contra-ponto. Durante um momento discutiu-se música. Ega acabou por sustentar que nada havia em arte tão belo como o fado. E apelou para Afonso, para o despertar.
- Pois não é verdade, Sr. Afonso da Maia? V. Exc.ª também é como eu, um dos fiéis ao fado, à nossa grande criação nacional.
- Sim, com efeito, murmurou o velho, levando a mão à testa, como a justificar o seu modo desinteressado e murcho. Há muita poesia no fado...
- Craft porém atacava o fado, as malagueñas, as peteneras - toda essa música meridional, que lhe parecia apenas um garganteado gemebundo, prolongado infinitamente, em ais de esterilidade e de preguiça. Ele, por exemplo, ouvira uma noite uma malagueña, uma dessas famosas malagueñas, cantada em perfeito estilo por uma senhora de Málaga. Era em Madrid, em casa dos Vila-Rubia. A senhora põe-se ao piano, rosna uma coisa sobre piedra e sepultura, e rompe a gemer num gemido que não findava - ã-ã-ã-ã-ã-ah... Pois senhores, ele aborrece-se, passa para a outra sala, vê jogar todo um robber de whist, folheia um imenso álbum, discute a guerra carlista com o general Jovelos, e quando volta, lá estava ainda a senhora, de cravos na trança e olhos no tecto, a gemer o mesmo - ã-ã-ã-ã-ã-ah!...
Todos riram. Ega protestou com ímpeto, já excitado. O Craft era um seco inglês, educado sobre o chato seio da Economia Política, incapaz de compreender todo o mundo de poesia que podia conter um ai! Mas ele não falava das malagueñas. Não estava encarregado de defender a Espanha. Ela possuía, para convencer o Craft e outros britânicos, bastante pilhéria e bastante navalha... A questão era o fado!
- Onde é que você tem ouvido o fado? Aí pelas salas, ao piano... Com efeito assim, concordo, é chocho. Mas ouça-o você por três ou quatro guitarristas, uma noite, no campo, com uma bela lua no céu... Como nos Olivais este verão, quando o marquês lá levou o Vira-vira! Lembras-te, Carlos?...
E estacou, como enlatado, no arrependimento daquela memória da toca que levianamente evocara. Carlos permanecera silencioso, com uma sombra na face. Craft ainda rosnou que, numa linda noite de luar, todos os sons do campo eram bonitos, mesmo o chiar dos sapos. E de novo uma estranha desanimação amoleceu a sala; os escudeiros serviam os doces.
Então, no silêncio, D. Diogo disse pensativamente, com a sua majestade de leão saudoso que relembra um grande passado:
- Uma música também muito distinguée antigamente eram os sinos do mosteiro. Parecia mesmo que se estavam ouvindo os sinos... Já não há disso!
O jantar terminava friamente. Steinbroken voltara àquela falta da família real no sarau, que desde a véspera o inquietava. Ninguém ali se interessava pelo Paço. Depois D. Diogo surdiu com uma velha e fastidiosa história sobre a infanta D. Isabel. Foi um alívio quando o escudeiro trouxe em volta a larga bacia de prata e o jarro de água perfumada.
Ao fim do café, servido no bilhar, Steinbroken e Craft começaram uma partida «ás cinquenta» e a quinze tostões para interessar. Afonso e D. Diogo tinham recolhido ao escritório. Ega enterrara-se no fundo de uma poltrona, com o Figaro. Mas bem depressa deixou escorregar a folha no tapete, cerrou os olhos. Então Carlos, que passeava pensativamente fumando, olhou um momento o Ega adormecido, e sumiu-se por traz do reposteiro.
Ia à rua de S. Francisco.
Mas não se apressava, a pé pelo Aterro, abafado num paletó de peles, acabando o charuto. A noite clareara, com o crescente de lua entre farrapos de nuvens brancas, que fugiam sobre um norte fino.
Fora nessa tarde, só no seu quarto, que Carlos decidira ir falar a Maria Eduarda - por um motivo supremo de dignidade e de razão, que ele descobrira e que repetia a si mesmo incessantemente para se justificar. Nem ela nem ele eram duas crianças frouxas, necessitando que a crise mais temerosa da sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo Vilaça: mas duas pessoas fortes, com o animo bastante resoluto, e o juizo bastante seguro, para eles mesmos acharem o caminho da dignidade e da razão naquela catástrofe que lhes desmantelava a existência. Por isso ele, só ele devia ir à rua de S. Francisco.
Decerto era terrível tornar a vê-la naquela sala, quente ainda do seu amor, agora que a sabia sua irmã... Mas porque não? Havia acaso ali dois devotos, possuídos da preocupação do demónio, espavoridos pelo pecado em que se tinham atolado ainda que inconscientemente, ansiosos por irem esconder no fundo de mosteiros distantes o horror carnal um do outro? Não! Necessitavam eles acaso pôr imediatamente entre si as compridas léguas que vão de Lisboa a Santa Olavia, com receio de cair na antiga fragilidade, se de novo os seus olhos se encontrassem com a antiga chama? Não! Ambos tinham em si bastante força para enterrar o coração sobre a razão, como sob uma fria e dura pedra, tão completamente que não lhe sentissem mais nem a revolta nem o choro. E ele podia desafogadamente voltar àquela sala, toda quente ainda do seu amor...
De resto, que precisavam apelar para a razão, para a sua coragem de fortes?... Ele não ia revelar bruscamente toda a verdade a Maria Eduarda, dizer-lhe um «adeus!» patético, um adeus de teatro, afrontar uma crise de paixão e dor. Pelo contrario! Toda essa tarde, através do seu próprio tormento, procurara ansiosamente um meio de adoçar e graduar àquela pobre criatura o horror da revelação que lhe devia. E achara um por fim, bem complicado, bem cobarde! Mas que! Era o único, o único que por uma preparação lenta, caridosa, lhe pouparia uma dor fulminante e brutal. E esse meio justamente só era praticável indo ele, com toda a frieza, com todo o animo, à rua de S. Francisco.
Por isso ia - e ao longo do Aterro retardando os passos, resumia, retocava esse plano, ensaiando mesmo consigo, baixo, palavras que lhe diria. Entraria na sala, com um grande ar de pressa - e contava-lhe que um negócio de casa, uma complicação de feitores o obrigava a partir para Santa Olavia daí a dias. E imediatamente saia, com o pretexto de correr a casa do procurador. Podia mesmo ajuntar - «é um momento, não tardo, até já.» Uma coisa o inquietava. Se ela lhe desse um beijo?... Decidia então exagerar a sua pressa, conservando o charuto na boca, sem mesmo pousar o chapéu... E saia. Não voltava. Pobre dela, coitada, que ia esperar até tarde, escutando cada rumor de carruagem na rua!... Na noite seguinte abalava para Santa Olavia com o Ega, deixando-lhe a ela uma carta a anunciar que infelizmente, por causa dum telegrama, se viria forçado a partir nesse comboio. Podia mesmo ajuntar - «volto daqui a dois ou três dias...» E aí estava longe dela para sempre. De Santa Olavia escrevia-lhe logo, dum modo incerto e confuso, falando de documentos de família, inesperadamente descobertos, provocando entre eles um parentesco chegado. Tudo isto atrapalhado, curto, «á pressa». Por fim noutra carta deixava escapar toda a verdade, mandava-lhe a declaração da mãe; e mostrando a necessidade duma separação, enquanto se não esclarecessem todas as dúvidas, pedia-lhe que partisse para Paris. Vilaça ficava encarregado da questão de dinheiro, entregando-lhe logo para a viagem trezentas ou quatrocentas libras... Ah! Tudo isto era bem complicado, bem covarde! Mas só havia esse meio. E quem, senão ele, o podia tentar com caridade e com tacto?
E, entre o tumulto destes pensamentos, de repente achou-se na travessa da Parreirinha, defronte da casa de Maria. Na sala, através das cortinas, transparecia uma luz dormente. Todo o resto estava apagado - a janela do gabinete estreito onde ela se vestia, a varanda do quarto dela com os vasos de crisântemos.
E pouco a pouco aquela fachada muda de onde apenas saia, a um canto, uma claridade lânguida de alcova adormecida, foi-o estranhamente penetrando de inquietação e desconfiança. Era uma medo dessa penumbra mole que sentia lá dentro, toda cheia de calor e do perfume em que havia jasmim. Não entrou; seguiu devagar pelo passeio fronteiro, pensando em certos detalhes da casa - o sofá largo e profundo com almofadas de seda, as rendas do toucador, o cortinado branco da cama dela... Depois parou diante da larga barra de claridade que saia do portão do Grémio; e foi para lá, maquinalmente atraído pela simplicidade e segurança daquela entrada, lageada de pedra, com grossos bicos de gás, sem penumbras e sem perfumes.
Na sala, em baixo, ficou percorrendo sem os compreender, os telegramas soltos sobre a mesa. Um criado passou, ele pediu cognac. Teles da Gama, que vinha de dentro assobiando, com as mãos nos bolsos do paletó, deteve-se um momento para lhe perguntar se ia na terça-feira aos Gouvarinhos.
- Talvez, murmurou Carlos.
- Então venha!... Eu ando a arrebanhar gente... São os anos do Charlie, de mais a mais. Cai lá o peso do mundo, e há ceia!...
O criado entrou com a bandeja - e Carlos, de pé junto da mesa, remexendo o açúcar no copo, recordava, sem saber porque, aquela tarde em que a condessa, pondo-lhe uma rosa no casaco, lhe dera o primeiro beijo; revia o sofá onde ela caíra com um rumor de sedas amarrotadas... Como tudo isto era já vago e remoto!
Apenas acabou o cognac saiu. Agora, caminhando rente das casas, não via aquela fachada que o perturbava com a sua claridade de alcova morrendo nos vidros. O portão ficara cerrado, o gás ardia no patamar. E subiu, sentindo mais pela escada de pedra as pancadas do coração que o pousar dos seus passos. Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a senhora, um pouco cansada, se fora encostar sobre a roupa; - e a sala, com efeito, parecia abandonada por essa noite, com as serpentinas apagadas, o bordado ocioso e enrolado no seu cesto, os livros num frio arranjo orlando a mesa onde o candeeiro espalhava uma luz ténue sob o abat-jour de renda amarela.
Carlos tirara as luvas, lentamente, retomado de novo por uma inquietação ante aquele recolhimento adormecido. E de repente Rosa correu de dentro, rindo, pulando, com os cabelos soltos nos ombros, os braços abertos para ele. Carlos levantou-a ao ar, dizendo como costumava: «Lá vem a cabrita!...»
Mas então, quando a tinha assim suspensa, batendo os pésinhos - atravessou-o a ideia de que aquela criança era sua sobrinha e tinha o seu nome!... Largou-a, quasi a deixou cair - assombrado para ela, como se pela vez primeira visse essa facesinha ebúrnea e fina onde corria o seu sangue...
- Que estás tu a olhar para mim? murmurou ela, recuando e se rindo, com as mãozinhas cruzadas atrás das saias que tufavam.
Ele não sabia, parecia-lhe outra Rosa: e à sua perturbação misturava-se uma saudade pela antiga Rosa, a outra, a que era filha de Madame MacGren, a quem ele contava histórias de Joana d'Arc, a quem balouçava na Toca sob as acácias em flor. Ela no entanto sorria mais, com um brilho nos dentinhos miúdos, uma ternura nos belos olhos azuis, vendo-o assim tão grave e tão mudo, pensando que ele ia brincar, fazer «voz de Carlos Magno». Tinha o mesmo sorriso da mãe, com a mesma covinha no queixo. Carlos viu nela de repente toda a graça de Maria, todo o encanto de Maria. E arrebatou-a de novo nos braços, tão violentamente, com beijos tão bruscos no cabelo e nas faces, que Rosa estrebuchou, assustada e com um grito. Soltou-a logo, num receio de não ter sido casto... Depois, muito sério:
- Onde está a mamã?
Rosa coçava o braço, com a testasinha franzida:
- Apre!... Magoaste-me.
Carlos passou-lhe pelos cabelos a mão que ainda tremia.
- Vá, não sejas piegas, a mamã não gosta. Onde está ela?
A pequena, aplacada, já contente, pulava em redor, agarrando nos pulsos de Carlos para que ele saltasse também...
- A mamã foi deitar-se... Diz que está muito cansada, depois chama-me a mim preguiçosa... Vá, salta também. Não sejas mono!...
Nesse instante, do corredor, miss Sarah chamou:
- Mademoiselle!...
Rosa pôs o dedinho na boca cheia de riso:
- Dize-lhe que não estou aqui! A ver... Para a fazer zangar!... Dize!
Miss Sarah erguera o reposteiro; e descobriu-a logo escondida, sumida por traz de Carlos, na pontinha dos pés, fazendo-se pequenina. Teve um sorriso benévolo, murmurou «good night, sir». Depois lembrou que eram quasi nove e meia, mademoiselle tinha estado um pouco constipada e devia recolher-se. Então Carlos puxou brandamente pelo braço de Rosa, acariciou-a ainda para que ela obedecesse a miss Sarah.
Mas Rosa sacudia-o, indignada daquela traição.
- Também nunca fazes nada!... Sensaborão! Pois olha, nem te digo adeus!
Atravessou a sala, amuada, esquivou-se com um repelão à governante que sorria e lhe estendia a mão - e pelo corredor rompeu num choro despeitado e perro. Miss Sarah risonhamente desculpou mademoiselle. Era a constipação que a tornava impertinente. Mas se fosse diante da mamã não fazia aquilo, não!
- Good night, sir.
- Good night, miss Sarah...
Só, Carlos errou alguns momentos pela sala. Por fim ergueu o pedaço de tapeçaria que cerrava o estreito gabinete onde Maria se vestiu. Aí, na escuridão, um brilho pálido de espelho tremia, batido por um longo raio do candeeiro da rua. Muito de leve empurrou a porta do quarto.
- Maria!... Estás a dormir?
Não havia luz; mas o mesmo candeeiro da rua, através do transparente erguido, tirava das trevas a brancura vaga do cortinado que envolvia o leito. E foi daí que ela murmurou, mal acordada:
- Entra! Vim-me deitar, estava muito cansada... Que horas são?
Carlos não se movera, ainda com a mão na porta:
- É tarde, e eu preciso sair já a procurar o Vilaça... Vinha dizer-te que tenho talvez de ir a Santa Olavia, além de amanhã, por dois ou três dias...
Um movimento, entre os cortinados, fez ranger o leito.
- Para Santa Olavia?... Ora essa, porque? E assim de repente... Entra!... Vem cá!
Então Carlos deu um passo no tapete, sem rumor. Ainda sentia o ranger mole do leito. E já todo aquele aroma dela que tão bem conhecia, esparso na sombra tépida, o envolvia, lhe entrava na alma com uma sedução inesperada de carícia nova, que o perturbava estranhamente. Mas ia balbuciando, insistindo na sua pressa de encontrar essa noite o Vilaça.
- É uma maçada, por causa de uns feitores, dumas águas....
Tocou no leito; e sentou-se muito à beira, numa fadiga que de repente o enleara, lhe tirava a força para continuar essas invenções de águas e de feitores, como se elas fossem montanhas de ferro a mover.
O grande e belo corpo de Maria, embrulhado num roupão branco de seda, movia-se, espreguiçava-se languidamente sobre o leito brando.
- Achei-me tão cansada, depois de jantar, veio-me uma preguiça... Mas então partires assim de repente!... Que seca! Dá cá a mão!
Ele tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou um joelho a que percebia a forma e o calor suave, através da seda leve: e ali esqueceu a mão, aberta e frouxa, como morta, num entorpecimento onde toda a vontade e toda a consciência se lhe fundiam, deixando-lhe apenas a sensação daquela pele quente e macia onde a sua palma pousava. Um suspiro, um pequenino suspiro de criança, fugiu dos lábios de Maria, morreu na sombra. Carlos sentiu a quentura de desejo que vinha dela, que o entontecia, terrível como o bafo ardente dum abismo, escancarado na terra a seus pés. Ainda balbuciou: «não, não...» Mas ela estendeu os braços, envolveu-lhe o pescoço, puxando-o para si, num murmúrio que era como a continuação do suspiro, e em que o nome de querido sussurrava e tremia. Sem resistência, como um corpo morto que um sopro impele, ele caiu-lhe sobre o seio. Os seus lábios secos acharam-se colados num beijo aberto que os humedecia. E de repente, Carlos enlaçou-a furiosamente, esmagando-a e sugando-a, numa paixão e num desespero que fez tremer todo o leito.
A essa hora Ega acordava no bilhar, ainda estirado na poltrona onde o cansaço o prostrara. Bocejando, estremunhado, arrastou os passos até ao escritório de Afonso.
Aí ardia um lume alegre, a que o reverendo Bonifácio se deixava torrar, enrolado sobre a pele de urso. Afonso fazia a partida de whist com Steinbroken e com o Vilaça: mas tão distraído, tão confuso, que já duas vezes D. Diogo, infeliz e irritado, rosnara que se a dor de cabeça assim o estonteava melhor seria findarem! Quando Ega apareceu, o velho levantou os olhos inquietos:
- O Carlos? Saiu?...
- Sim, creio que saiu com o Craft, disse o Ega. Tinham falado em ir ver o marquês.
Vilaça, que baralhava com a sua lentidão meticulosa, deitou também para o Ega um olhar curioso e vivo. Mas já D. Diogo batia com os dedos no pano da mesa, resmungando: -«Vamos lá, vamos lá... Não se ganha nada em saber dos outros!» Então Ega ficou ali um momento, com bocejos vagos, seguindo o cair lento das cartas. Por fim, mole e secado, decidiu ir ler para a cama, hesitou por diante das estantes, saiu com um velho número do Panorama.
Ao outro dia, à hora do almoço, entrou no quarto de Carlos. E ficou pasmado quando o Baptista - tristonho desde a véspera, farejando desgosto - lhe disse que Carlos fora para a Tapada, muito cedo, a cavalo...
- Ora essa!... E não deixou ordens nenhumas, não falou em ir para Santa Olavia?...
Baptista olhou Ega, espantado:
- Para Santa Olavia!... Não senhor, não falou em semelhante coisa. Mas deixou uma carta para V. Exc.ª ver. Creio que é do Sr. marquês. E diz que lá aparecia depois, ás seis... Acho que é jantar.
Num bilhete de visita, o marquês, com efeito, lembrava que esse dia era «o seu fausto natalício», e esperava Carlos e o Ega ás seis, para lhe ajudarem a comer a galinha de dieta.
- Bem, lá nos encontraremos, murmurou Ega, descendo para o jardim.
Aquilo parecia-lhe extraordinário! Carlos passeando a cavalo, Carlos jantando com o marquês, como se nada houvesse perturbado a sua vida fácil de rapaz feliz!... Estava agora certo de que ele na véspera fora à rua de S. Francisco. Justos céus! Que se teria lá passado? Subiu, ouvindo a sineta do almoço. O escudeiro anunciou-lhe que o Sr. Afonso da Maia tomara uma chávena de chá no quarto e ainda estava recolhido. Todos sumidos! Pela primeira vez no Ramalhete Ega almoçou solitariamente na larga mesa, lendo a Gazeta Ilustrada.
De tarde, ás seis, no quarto do marquês (que tinha o pescoço enrolado numa boa de senhora de pele de marta), encontrou Carlos, o Darque, o Craft, em torno dum rapaz gordo que tocava guitarra - enquanto ao lado o procurador do marquês, um belo homem de barba preta, se batia com o Teles numa partida de damas.
- Viste o avô? perguntou Carlos, quando o Ega lhe estendeu a mão.
- Não, almocei só.
O jantar, daí a pouco, foi muito divertido, largamente regado com os soberbos vinhos da casa. E ninguém decerto bebeu mais, ninguém riu mais do que Carlos, ressurgido quasi de repente duma desanimação sombria a uma alegria nervosa - que incomodava o Ega, sentindo nela um timbre falso e como um som de cristal rachado. O próprio Ega por fim à sobremesa se excitou consideravelmente com um esplêndido Porto de 1815. Depois houve um bacarat em que Carlos, outra vez sombrio, deitando a cada instante os olhos ao relógio, teve uma sorte triunfante, uma «sorte de cabrão», como a classificou o Darque, indignado, ao trocar a sua ultima nota de vinte mil reis... Á meia noite porém, inexoravelmente, o procurador do marquês lembrou as ordens do médico que marcara esse limite «ao natalício». Foi então um enfiar de paletós, em debandada, por entre os queixumes do Darque e do Craft, que saiam escorridos, sem sequer um troco para o «Americano». Fez-se-lhes uma subscrição de caridade, que eles recolheram nos chapéus, rosnando bençãos aos bem feitores.
Na tipóia que os levava ao Ramalhete, Carlos e Ega permaneceram muito tempo em silêncio, cada um enterrado ao seu canto, fumando. Foi já ao meio do Aterro que Ega pareceu despertar:
- E então por fim?... Sempre vais para Santa Olavia, ou que fazes?
Carlos mexeu-se no escuro da tipóia. Depois, lentamente, como cheio de cansaço:
- Talvez vá amanhã... Ainda não disse nada, ainda não fiz nada... Decidi dar-me quarenta e oito horas para acalmar, para reflectir... Não se pode agora falar com este barulho das rodas.
De novo cada um recaiu na sua mudez, ao seu canto.
Em casa, subindo a escadinha forrada de veludo, Carlos declarou-se exausto e com uma intolerável dor de cabeça:
- Amanhã falamos, Ega... Boa noite, sim?
- Até amanhã.
Alta noite Ega acordou com uma grande sede. Saltara da cama, esvaziara a garrafa no toucador, quando julgou sentir por baixo, no quarto de Carlos, uma porta bater. Escutou. Depois, arrepiado, remergulhou nos lençóis. Mas espertara inteiramente, com uma ideia estranha, insensata, que o assaltara sem motivo, o agitava, lhe fazia palpitar o coração no grande silêncio da noite. Ouviu assim dar três horas. A porta de novo batera, depois uma janela: era decerto vento que se erguera. Não podia porém readormecer, ás voltas, num terrível mal-estar, com aquela ideia cravada na imaginação que o torturava. Então, desesperado, pulou da cama, enfiou um paletó, e em pontas de chinelas, com a mão diante da luz, desceu surdamente ao quarto de Carlos. Na ante-sala parou, tremendo, com o ouvido contra o reposteiro, na esperança de perceber algum calmo rumor de respiração. O silêncio era pesado e pleno. Ousou entrar... A cama estava feita e vazia, Carlos saíra.
Ele ficou a olhar estupidamente para aquela colcha lisa, com a dobra do lençol de renda cuidadosamente entreaberta pelo Baptista. E agora não duvidava. Carlos fora findar a noite à rua de S. Francisco!... Estava lá, dormia lá! E só uma ideia surgia através do seu horror - fugir, safar-se para Celorico, não ser testemunha daquela incomparável infâmia!...
E o dia seguinte, terça-feira, foi desolador para o pobre Ega. Vexado, num terror de encontrar Carlos ou Afonso, levantou-se cedo, esgueirou-se pelas escadas com cautelas de ladrão, foi almoçar ao Tavares. De tarde, na rua do Ouro, viu passar Carlos, que levava no break o Cruges e o Taveira - arrebanhados certamente para ele se não encontrar só à mesa com o avô. Ega jantou melancolicamente no Universal. Só entrou no Ramalhete ás nove horas, vestir-se para a soirée da Gouvarinho, que pela manhã no Loreto parara a carruagem para lhe lembrar «que era a festa do Charlie». E foi já de paletó, de claque na mão, que apareceu enfim na salinha Luís xv onde Cruges tocava Chopin, e Carlos se instalara numa partida de besigue com o Craft. Vinha saber se os amigos queriam alguma coisa para os nobres condes de Gouvarinho...
- Diverte-te!
- Sê faiscante!
- Eu lá apareço para a ceia! prometeu Taveira, estirado numa poltrona com o Figaro.
Eram duas horas da manhã quando Ega recolheu da soirée - onde por fim se divertira numa desesperada flirtação com a baronesa de Alvim, que à ceia, depois do champagne, vencida por tanta graça e tanta audácia, lhe tinha dado duas rosas. Diante do quarto de Carlos, acendendo a vela, Ega hesitou, mordido por uma curiosidade... Estaria lá? Mas teve vergonha daquela espionagem, e subiu, bem decidido como na véspera a fugir para Celorico. No seu quarto, diante do espelho, pôs cuidadosamente num copo as rosas da Alvim. E começava a despir-se, quando ouviu passos no negro corredor, passos muito lentos, muito pesados, que se adiantavam, findaram à sua porta em suspensão e silêncio. Assustado, gritou: «Que é lá?» A porta rangeu. E apareceu Afonso da Maia, pálido, com um jaquetão sobre a camisa de dormir, e um castiçal onde a vela ia morrendo. Não entrou. Numa voz enrouquecida, que tremia:'
- O Carlos? esteve lá?
Ega balbuciou, atarantado, em mangas de camisa. Não subiu... Estivera apenas um momento nos Gouvarinhos... Era provável que Carlos tivesse ido mais tarde com o Taveira, para a ceia.
O velho cerrara os olhos, como se desfalecesse, estendendo a mão para se apoiar. Ega correu para ele:
- Não se aflija, Sr. Afonso da Maia!
- Que queres então que faça? Onde está ele? Lá metido, com essa mulher... Escusas de dizer, eu sei, mandei espreitar... Desci a isso, mas quis acabar esta angustia... E esteve lá ontem até de manhã, está lá a dormir neste instante... E foi para este horror que Deus me deixou viver até agora!
Teve um grande gesto de revolta e de dor. De novo os seus passos, mais pesados, mais lentos, se sumiram no corredor.
Ega ficou junto da porta, um momento, estarrecido. Depois foi-se despindo devagar, decidido a dizer a Carlos muito simplesmente, ao outro dia, antes de partir para Celorico, que a sua infâmia estava matando o avô, e o forçava a ele, seu melhor amigo, a fugir para a não testemunhar por mais tempo.
Mal acordou, puxou a mala para o meio do quarto, atirou para cima da cama, ás braçadas, a roupa que ia emalar. E durante meia hora, em mangas de camisa, lidou nesta tarefa, misturando aos seus pensamentos de cólera lembranças da soirée da véspera, certos olhares da Alvim, certas esperanças que lhe tornavam saudosa a partida. Um alegre sol dourava a varanda. Terminou por abrir a vidraça, respirar, olhar o belo azul de inverno. Lisboa ganhava tanto com aquele tempo! E já Celorico, a quinta, o padre Serafim, lhe estendiam de longe a sua sombra na alma. Ao baixar os olhos viu o dog-cart de Carlos atrelado com a Tunante, que escarvava a calçada animada pelo ar vivo. Era Carlos decerto que ia sair cedo - para não se encontrar com ele e com o avô!
Num receio de o não apanhar nesse dia, desceu correndo. Carlos aferrolhara-se na alcova de banho. Ega chamou, o outro não tugiu. Por fim Ega bateu, gritou através da porta, sem esconder a sua irritação:
- Tem a bondade de escutar!... Então partes para Santa Olavia, ou quê?
Depois dum instante, Carlos lançou de lá, entre um rumor de água que caia:
- Não sei... Talvez... Logo te digo...
O outro não se conteve mais:
- É que se não pode ficar assim eternamente... Recebi uma carta de minha mãe... E se não partes para Santa Olavia, eu vou para Celorico... É absurdo! Já estamos nisto há três dias!
E quasi se arrependia já da sua violência, quando a voz de Carlos se arrastou de dentro, humilde e cansada, numa suplica:
- Por quem és, Ega! Tem um bocado de paciência comigo. Eu logo te digo...
Numa daquelas súbitas emoções de nervoso, que o sacudiam os olhos do Ega humedeceram.
Balbuciou logo:
- Bem, bem! Eu falei alto por ser através da porta... Não há pressa!
E fugiu para o quarto, cheio só de compaixão e ternura, com uma grossa lágrima nas pestanas. Sentia agora bem a tortura em que o pobre Carlos se debatera, sob o despotismo duma paixão até aí legitima, e que numa hora amarga se tornava de repente monstruosa, sem nada perder de seu encanto e da sua intensidade... Humano e frágil, ele não pudera estacar naquele violento impulso de amor e de desejo que o levava como num vendaval! Cedera, cedera, continuara a rolar àqueles braços, que inocentemente o continuavam a chamar. E aí andava agora, aterrado, escorraçado, fugindo ocultamente de casa, passando o dia longe dos seus, numa vadiagem trágica, como um excomungado que receia encontrar olhos puros onde sinta o horror do seu pecado... E ao lado, o pobre Afonso, sabendo tudo, morrendo daquela dor! Podia ele, hospede querido dos tempos alegres, partir, agora que uma onda de desgraça quebrara sobre essa casa, onde o acolhiam afeições mais largas que na sua própria? Seria ignóbil! Tornou logo a desfazer a mala; e, furioso no seu egoísmo com rodas aquelas amarguras que o abalavam, arranjava outra vez a roupa dentro da cómoda, com a mesma cólera com que a desmanchara, rosnando:
- Diabo levem as mulheres, e a vida, e tudo!...
Quando desceu, já vestido, Carlos desaparecera! Mas Baptista, tristonho, carrancudo, certo agora de que havia um grande desgosto, deteve-o para lhe murmurar:
- Tinha V.Exc.ª razão... Partimos amanhã para Santa Olavia e levamos roupa para muito tempo... Este inverno começa mal!
Nessa madrugada, ás quatro horas, em plena escuridão, Carlos cerrara de manso o portão da rua de S. Francisco. E, mais pungente, apoderava-se dele, na frialdade da rua, o medo que já o roçara, ao vestir-se na penumbra do quarto, ao lado de Maria adormecida - o medo de voltar ao Ramalhete! Era esse medo que já na véspera o trouxera todo o dia por fora no dog-cart, findando por jantar lugubremente com o Cruges, escondido num gabinete do Augusto. Era medo do avô, medo do Ega, medo do Vilaça; medo daquela sineta do jantar que os chamava, os juntava; medo do seu quarto, onde a cada momento qualquer deles podia erguer o reposteiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e no seu segredo... Tinha agora a certeza que eles sabiam tudo. E mesmo que nessa noite fugisse para Santa Olavia, pondo entre si e Maria uma separação tão alta como o muro dum claustro, nunca mais do espírito daqueles homens, que eram os seus amigos melhores, sairia a memória e a dor da infâmia em que ele se despenhara. A sua vida moral estava estragada... Então, para que partiria abandonando a paixão, sem que por isso encontrasse a paz? Não seria mais lógico calcar desesperadamente todas as leis humanas e divinas, arrebatar para longe Maria na sua inocência, e para todo o sempre abismar-se nesse crime que se tornara a sua sombria partilha na terra?
Já assim pensara na véspera. Já assim pensara... Mas antevira então um outro horror, um supremo castigo, a espera-lo na solidão onde se sepultasse. Já lhe percebera mesmo a aproximação; já noutra noite recebera dele um arrepio; já nessa noite, deitado junto de Maria, que adormecera cansada, o pressentira, apoderando-se dele, com um primeiro frio de agonia.
Era, surgindo do fundo do seu ser, ainda ténue mas já perceptível, uma saciedade, uma repugnância por ela desde que a sabia do seu sangue!... Uma repugnância material, carnal, à flor da pele, que passava como um arrepio. Fora primeiramente aquele aroma que a envolvia, fluctuava entre os cortinados, lhe ficava a ele na pele e no fato, o excitava tanto outrora, o impacientava tanto agora - que ainda na véspera se encharcara em água de Colónia para o dissipar. Fora depois aquele corpo dela, adorado sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, como era na sua realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de Amazona bárbara, com todas as belezas copiosas do animal de prazer. Nos seus cabelos dum lustre tão macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda nessa noite, o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos tumidos de seiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chama que era toda bestial. Mas, apenas o ultimo suspiro lhe morria nos lábios, aí começava insensivelmente a recuar para a borda do colchão, com um susto estranho: e imóvel, encolhido na roupa, perdido no fundo duma infinita tristeza, esquecia-se pensando numa outra vida que podia ter, longe dali, numa casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher, legitimamente sua, flor de graça domestica, pequenina, tímida, púdica, que não soltasse aqueles gritos lascivos, e não usasse esse aroma tão quente! E desgraçadamente agora já não duvidava... Se partisse com ela, seria para bem cedo se debater no indizível horror de um nojo físico. E que lhe restaria então, morta a paixão que fora a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher que o enojava - e que era... Só lhe restava matar-se!
Mas, tendo por um só dia dormido com ela, na plena consciência da consanguinidade que os separava, poderia recomeçar a vida tranquilamente? Ainda que possuísse frieza e força para apagar dentro em si essa memória - ela não morreria no coração do avô, e do seu amigo. Aquele ascoroso segredo ficaria entre eles, estragando, maculando tudo. A existência doravante só lhe oferecia intolerável amargor... Que fazer, santo Deus, que fazer! Ah, se alguém o pudesse aconselhar, o pudesse consolar! Quando chegou à porta de casa o seu desejo único era atirar-se aos pés dum padre, aos pés dum santo, abrir-lhe as misérias do seu coração, implorar-lhe a doçura da sua misericórdia! Mas ali onde havia um santo?
Defronte do Ramalhete os candeeiros ainda ardiam. Abriu de leve a porta. Pé ante pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo veludo cor de cereja. No patamar tacteava, procurava a vela - quando, através do reposteiro entreaberto, avistou uma claridade que se movia no fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no recanto. O clarão chegava, crescendo: passos lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete: a luz surgiu - e com ela o avô em mangas de camisa, lívido, mudo, grande, espectral. Carlos não se moveu, sufocado; e os dois olhos do velho, vermelhos, esgaseados, cheios de horror, caíram sobre ele, ficaram sobre ele, varando-o até ás profundidades da alma, lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma palavra, com a cabeça branca a tremer, Afonso atravessou o patamar, onde a luz sobre o veludo espalhava um tom de sangue: - e os seus passos perderam-se no interior da casa, lentos, abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem os derradeiros que devesse dar na vida!
Carlos entrou no quarto ás escuras, tropeçou num sofá e ali se deixou cair, com a cabeça enterrada nos braços, sem pensar, sem sentir, vendo o velho lívido passar, repassar diante dele como um longo fantasma, com a luz avermelhada na mão. Pouco a pouco foi-o tomando um cansaço, uma inércia, uma infinita lassidão da vontade, onde um desejo apenas transparecia, se alongava - o desejo de interminavelmente repousar algures numa grande mudez e numa grande treva... Assim escorregou ao pensamento da morte. Ela seria a perfeita cura, o asilo seguro. Porque não iria ao seu encontro? Alguns grãos de láudano nessa noite e penetrava na absoluta paz...
Ficou muito tempo, embebendo-se nesta ideia que lhe dava alívio e consolo, como se, escorraçado por uma tormenta ruidosa, visse diante dos seus passos abrir-se uma porta de onde saísse calor e silêncio. Um rumor, o chilrear dum pássaro na janela, fez-lhe sentir o sol e o dia. Ergueu-se, despiu-se muito devagar, numa imensa moleza. E mergulhou na cama, enterrou a cabeça no travesseiro para recair na doçura daquela inércia, que era um antegosto da morte, e não sentir mais nas horas que lhe restavam nenhuma luz, nenhuma coisa da terra.
O sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:
- Ó Sr. D. Carlos, ó meu menino! O avô achou-se mal no jardim, não dá acordo!...
Carlos pulou do leito, enfiando um paletó que agarrara. Na ante-câmara a governante, debruçada no corrimão, gritava, aflita: - «Adiante, homem de Deus, ao pé da padaria, o Sr. Dr. Azevedo!» E um moço que corria, com que esbarrou no corredor, atirou, sem parar:
- Ao fundo, ao pé da cascata, Sr. D. Carlos, na mesa de pedra!...
Afonso da Maia lá estava, nesse recanto do quintal, sob os ramos do cedro, sentado no banco de cortiça, tombado por sobre a tosca mesa, com a face caída entre os braços. O chapéu desabado rolara para o chão; nas costas, com a gola erguida, conservava o seu velho capote azul... Em volta, nas folhas das camélias, nas áleas arcadas, refulgiu, cor de ouro, o sol fino de inverno. Por entre as conchas da cascata o fio de água punha o seu choro lento.
Arrebatadamente, Carlos levantara-lhe a face, já rígida, cor de cera, com os olhos cerrados, e um fio de sangue aos cantos da longa barba de neve. Depois caiu de joelhos no chão húmido, sacudia-lhe as mãos, murmurando: - «Ó avô! Ó avô!» - Correu ao tanque, borrifou-o de água:
- Chamem alguém! chamem alguém!
Outra vez lhe palpava o coração... Mas estava morto. Estava morto, já frio, aquele corpo que, mais velho que o século, resistira tão formidavelmente, como um grande roble, aos anos e aos vendavais. Ali morrera solitariamente, já o sol ia alto, naquela tosca mesa de pedra onde deixara pender a cabeça cansada.
Quando Carlos se ergueu, Ega aparecia, esguedelhado, embrulhado no robe-de-chambre. Carlos abraçou-se nele, tremendo todo, num choro despedaçado. Os criados em redor olharam, aterrados. E a governante, como tonta, entre as ruas de roseiras, gemia com as mãos na cabeça: - «Ai o meu rico senhor, ai o meu rico senhor!»
Mas o porteiro, esbaforido, chegava com o médico, o Dr. Azevedo, que felizmente encontrara na rua. Era um rapaz, apenas saído da Escola, magrinho e nervoso, com as pontas do bigode muito frisadas. Deu em redor, atarantadamente, um comprimento aos criados, ao Ega, e a Carlos, que procurava serenar com a face lavada de lágrimas. Depois, tendo descalçado a luva, estudou todo o corpo de Afonso com uma lentidão, uma minuciosidade que exagerava, à medida que sentia em volta, mais ansiosos e atentos nele, todos aqueles olhos humedecidos. Por fim, diante de Carlos, passando nervosamente os dedos no bigode, murmurou termos técnicos... De resto, dizia, já o colega se teria compenetrado de que tudo infelizmente findara. Ele sentia das veras da alma o desgosto... Se para alguma coisa fosse necessário, com o máximo prazer...
- Muito agradecido a V. Exc.ª, balbuciou Carlos.
Ega, em chinelas, deu alguns passos com o Sr. Dr. Azevedo, para lhe indicar a porta do jardim.
Carlos no entanto ficara defronte do velho, sem chorar, perdido apenas no espanto daquele brusco fim! Imagens do avô, do avô vivo e forte, cachimbando ao canto do fogão, regando de manhã as roseiras, passaram-lhe na alma, em tropel, deixando-lha cada vez mais dorida e negra... E era então um desejo de findar também, encostar-se como ele àquela mesa de pedra, e sem outro esforço, nenhuma outra dor da vida, cair como ele na sempiterna paz. Uma réstia de sol, entre os ramos grossos do cedro, batia a face morta de Afonso. No silêncio os pássaros, um momento espantados, tinham recomeçado a chilrear. Ega veio a Carlos, tocou-lhe no braço:
- É necessário leva-lo para cima.
Carlos beijou a mão fria que pendia. E, devagar, com os beiços a tremer, levantou o avô pelos ombros carinhosamente. Baptista correra a ajudar; Ega, embaraçado no seu largo roupão, segurava os pés do velho. Através do jardim, do terraço cheio de sol, do escritório onde a sua poltrona esperava diante do lume aceso, foram-o transportando num silêncio só quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir as portas, acudiam quando Carlos, na sua perturbação, ou o Ega fraquejavam sob o peso do grande corpo. A governante já estava no quarto de Afonso com uma colcha de seda para estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E ali o depuseram enfim sobre as ramagens claras bordadas na seda azul.
Ega acendera dois castiçais de prata: a governante, de joelhos à beira do leito, esfiava o rosário: e Mr. Antoine, com o seu barrete branco de cozinheiro na mão, ficara à porta, junto dum cesto que trouxera, cheio de camélias e palmas de estufa. Carlos, no entanto, movendo-se pelo quarto, com longos soluços que o sacudiam, voltava a cada instante, numa derradeira e absurda esperança, palpar as mãos ou o coração do velho. Com o jaquetão de veludilho, os seus grossos sapatos brancos, Afonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o leito estreito: entre o cabelo de neve cortado à escovinha e a longa barba desleixada, a pele ganhara um tom de marfim velho, onde as rugas tomaram a dureza de entalhaduras a cinzel: as pálpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam com a consolada serenidade de quem enfim descansa; e ao deitarem-no uma das mãos ficara-lhe aberta e posta sobre o coração, na simples e natural atitude de quem tanto pelo coração vivera!
Carlos perdia-se nesta contemplação dolorosa. E o seu desespero era que o avô assim tivesse partido para sempre, sem que entre eles houvesse um adeus, uma doce palavra trocada. Nada! Apenas aquele olhar angustiado, quando passara com a vela acesa na mão. Já então ele ia andando para a morte. O avô sabia tudo, disso morrera! E esta certeza sem cessar lhe batia na alma, com uma longa pancada repetida e lúgubre. O avô sabia tudo, disso morrera!
Ega veio com um gesto indicar-lhe o estado em que estavam - ele de robe-de-chambre, Carlos com o paletó sobre a camisa de dormir:
- É necessário descer, é necessário vestir-nos.
Carlos balbuciou:
- Sim, vamo-nos vestir...
Mas não se arredava. Ega levou-o brandamente pelo braço. Ele caminhava como um sonâmbulo, passando o lenço devagar pela testa e pela barba. E de repente no corredor, apertando desesperadamente as mãos, outra vez coberto de lágrimas, num agoniado desabafo de toda a sua culpa:
Ega, meu querido Ega! O avô viu-me esta manhã quando entrei! E passou, não me disse nada... Sabia tudo, foi isso que o matou!...
Ega arrastou-o, consolou-o, repelindo tal ideia. Que tolice! O avô tinha quasi oitenta anos, e uma doença de coração... Desde a volta de Santa Olavia, quantas vezes eles tinham falado nisso, aterrados! Era absurdo ir agora fazer-se mais desgraçado com semelhante imaginação!
Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no chão:
- Não! É estranho, não me faço mais desgraçado! Aceito isto como um castigo... Quero que seja um castigo... E sinto-me só muito pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta manhã pensava em matar-me. E agora não! É o meu castigo viver, esmagado para sempre... O que me custa é que ele não me tivesse dito adeus!
De novo as lágrimas lhe correram, mas lentas, mansamente, sem desespero. Ega levou-o para o quarto, como uma criança. E assim o deixou a um canto do sofá, com o lenço sobre a face, num choro continuo e quieto, que lhe ia lavando, aliviando o coração de todas as angustias confusas e sem nome que nesses dias derradeiros o traziam sufocado.
Ao meio dia, em cima, Ega acabava de vestir-se quando Vilaça lhe rompeu pelo quarto de braços abertos.
- Então como foi isto, como foi isto?
Baptista mandara-o chamar pelo trintanário, mas o rapazola pouco lhe soubera contar. Agora em baixo o pobre Carlos abraçara-o, coitadinho, lavado em lágrimas, sem poder dizer nada, pedindo-lhe só para se entender em tudo com o Ega... E ali estava.
- Mas como foi, como foi, assim de repente?...
Ega contou, brevemente, como tinham encontrado Afonso de manhã no jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera o Dr. Azevedo, mas tudo acabara!
Vilaça levou as mãos à cabeça:
- Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa mulher que aí apareceu, que o matou! Nunca foi o mesmo depois daquele abalo! Não foi mais nada! Foi isso!
Ega murmurava, deitando maquinalmente água de Colónia no lenço:
- Sim, talvez, esse abalo, e oitenta anos, e poucas cautelas, e uma doença de coração.
Falaram então do enterro, que devia ser simples como convinha àquele homem simples. Para depositar o corpo, enquanto não fosse trasladado para Santa Olavia, Ega lembrara-se do jazigo do marquês.
Vilaça coçava o queixo, hesitando:
- Eu também tenho um jazigo. Foi o próprio Sr. Afonso da Maia que o mandou erguer para meu pai, que Deus haja... Ora parece-me que por uns dias ficava lá perfeitamente. Assim não se pedia a ninguém, e eu tinha nisso muita honra...
Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, de hora, de chave do caixão. Por fim Vilaça, olhando o relógio, ergueu-se com um grande suspiro:
- Bem, vou dar esses tristes passos! E cá apareço logo, que o quero ver pela ultima vez, quando o tiverem vestido. Quem me havia de dizer! Ainda antes de ontem a jogar com ele... Até lhe ganhei três mil reis, coitadinho!
Uma onda de saudade sufocou-o, fugiu com o lenço nos olhos.
Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado à escrivaninha, diante duma folha de papel. Imediatamente ergueu-se, arrojou a pena.
- Não posso!... Escreve-lhe tu ai, a ela, duas palavras.
Em silêncio, Ega tomou a pena, redigiu um bilhete muito curto. Dizia: «Minha senhora. O Sr. Afonso da Maia morreu esta madrugada, de repente, com uma apoplexia. V. Exc.ª compreende que, neste momento, Carlos nada mais pode do que pedir-me para eu transmitir a V. Exc.ª esta desgraçada noticia. Creia-me, etc.» Não o leu a Carlos. E como Baptista entrava nesse momento, todo de preto, com o almoço numa bandeja, Ega pediu-lhe para mandar o trintanário com aquele bilhete à rua de S. Francisco. Baptista segredou sobre o ombro do Ega:
- É bom não esquecer as fardas de luto para os criados...
- O Sr. Vilaça já sabe.
Tomaram chá à pressa em cima do tabuleiro. Depois Ega escreveu bilhetes a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos de Afonso: e davam duas horas quando chegaram os homens com o caixão para amortalhar o corpo. Mas Carlos não permitiu que mãos mercenárias tocassem no avô. Foi ele e o Ega, ajudados pelo Baptista, que, corajosamente, recalcando a emoção sob o dever, o lavaram, o vestiram, o depuseram dentro do grande cofre de carvalho, forrado de cetim claro, onde Carlos colocou uma miniatura de sua avó Runa. Á tarde, com auxilio de Vilaça, que voltara «para dar o ultimo olhar ao patrão», desceram-no ao escritório, que Ega não quisera alterar nem ornar, e que, com os damascos escarlates, as estantes lavradas, os livros juncando a carteira de pau preto, conservava a sua feição austera de paz estudiosa. Somente, para depor o caixão, tinham juntado duas largas mesas, recobertas por um pano de veludo negro que havia na casa, com as armas bordadas a ouro. Por cima o Cristo de Rubens abria os braços sobre a vermelhidão do poente. Aos lados ardiam doze castiçais de prata. Largas palmas de estufa cruzavam-se à cabeceira do esquife, entre ramos de camélias. E Ega acendeu um pouco de incenso em dois perfumadores de bronze.
Á noite o primeiro dos velhos amigos a aparecer foi D. Diogo, solene, de casaca. Encostado ao Ega, aterrado diante do caixão, só pôde murmurar: - «E tinha menos sete meses que eu!» O marquês veio já tarde, abafado em mantas, trazendo um grande cesto de flores. Craft e o Cruges nada sabiam, tinham-se encontrado na rampa de Santos; - e receberam a primeira surpresa ao ver fechado o portão do Ramalhete. O ultimo a chegar foi o Sequeira, que passara o dia na quinta, e se abraçou em Carlos, depois no Craft ao acaso, entontecido, com uma lágrima nos olhos injectados, balbuciando: - «Foi-se o companheiro de muitos anos. Também não tardo!...»
E a noite de vigília e pêsames começou, lenta e silenciosa. As doze chamas das velas ardiam, muito altas, numa solenidade funerária. Os amigos trocaram algum murmúrio abafado, com as cadeiras chegadas. Pouco a pouco, o calor, o aroma do incenso, a exalação das flores forçaram o Baptista a abrir uma das janelas do terraço. O céu estava cheio de estrelas. Um vento fino sussurrara nas ramagens do jardim.
Já tarde Sequeira, que não se movera duma poltrona, com os braços cruzados, teve uma tontura. Ega levou-o à sala de jantar, a reconforta-lo com um cálice de cognac. Havia lá uma ceia fria, com vinhos e doces. E Craft veio também - com o Taveira, que soubera a desgraça na redacção da Tarde, e correra quasi sem jantar. Tomando um pouco de Bordéus, uma sandwich, Sequeira reanimava-se, lembrava o passado, os tempos brilhantes, quando Afonso e ele eram novos. Mas emudeceu vendo aparecer Carlos, pálido e vagaroso como um sonâmbulo, que balbuciou: «Tomem alguma coisa, sim, tomem alguma coisa...»
Mexeu num prato, deu uma volta à mesa, saiu. Assim vagamente foi até à ante-câmara, onde todos os candelabros ardiam. Uma figura esguia e negra surgiu da escada. Dois braços enlaçaram-no. Era o Alencar.
- Nunca vim cá nos dias felizes, aqui estou na hora triste!
E o poeta seguiu pelo corredor, em pontas de pés, como pela nave dum templo.
Carlos no entanto deu ainda alguns passos pela ante-câmara. Ao canto dum divã ficara um grande cesto com uma coroa de flores, sobre que pousava uma carta. Reconheceu a letra de Maria. Não lhe tocou, recolheu ao escritório. Alencar, diante do caixão, com a mão pousada no ombro do Ega, murmurava: «Foi-se uma alma de herói!»
As velas iam-se consumindo. Um cansaço pesava. Baptista fez servir café no bilhar. E ai, apenas recebeu a sua chávena, Alencar, cercado do Cruges, do Taveira, do Vilaça, rompeu a falar também do passado, dos tempos brilhantes de Arroios, dos rapazes ardentes de então:
- Vejam vocês, filhos, se se encontra ainda uma gente como estes Maias, almas de leões, generosos, valentes!... Tudo parece ir morrendo neste desgraçado país!... Foi-se a faisca, foi-se a paixão... Afonso da Maia! Parece que o estou a ver, à janela do palácio em Benfica, com a sua grande gravata de cetim, aquela cara nobre de português de outrora... E lá vai! E o meu pobre Pedro também... Caramba, até se me faz a alma negra!
Os olhos enevoavam-se-lhe, deu um imenso sorvo ao cognac.
Ega, depois de beber um gole de café, voltara ao escritório, onde o cheiro de incenso espalhava uma melancolia de capela. D. Diogo, estirado no sofá, ressonava; Sequeira defronte dormitava também, descaído sobre os braços cruzados, com todo o sangue na face. Ega despertou-os de leve. Os dois velhos amigos, depois dum abraço a Carlos, partiram na mesma carruagem, com os charutos acesos. Os outros, pouco a pouco, iam também abraçar Carlos, enfiavam os paletós. O ultimo a sair foi Alencar, que, no pátio, beijou o Ega, num impulso de emoção, lamentando ainda o passado, os companheiros desaparecidos:
- O que me vale agora são vocês, rapazes, a gente nova. Não me deitem à margem! Senão, caramba, quando quiser fazer uma visita tenho de ir ao cemitério. Adeus, não apanhes frio!
O enterro foi ao outro dia, à uma hora. O Ega, o marquês, o Craft, o Sequeira levaram o caixão até à porta, seguidos pelo grupo de amigos, onde destacava o conde de Gouvarinho, soleníssimo, de gran-cruz. O conde de Steinbroken, com o seu secretario, trazia na mão uma coroa de violetas. Na calçada estreita os trens apertavam-se, numa longa fila que subia, se perdia pelas outras ruas, pelas travessas: em todas as janelas do bairro se apinhava gente: os polícias berravam com os cocheiros. Por fim o carro, muito simples, rodou, seguido por duas carruagens da casa, vazias, com as lanternas recobertas de longos véus de crepe que pendiam. Atrás, um a um, desfilaram os trens da Companhia com os convidados, que abotoavam os casacos, corriam os vidros contra a friagem do dia enevoado. O Darque e o Vargas iam no mesmo coupé. O correio do Gouvarinho passou choutando na sua pileca branca. E, sobre a rua deserta, cerrou-se finalmente para um grande luto o portão do Ramalhete.
Quando Ega voltou do cemitério encontrou Carlos no quarto, rasgando papéis, enquanto o Baptista, atarefado, de joelhos no tapete, fechava uma mala de couro. E como Ega, pálido e arrepiado de frio, esfregava as mãos, Carlos fechou a gaveta cheia de cartas, lembrou que fossem para o fumoir onde havia lume.
Apenas lá entraram, Carlos correu o reposteiro, olhou para o Ega:
- Tens dúvida em lhe ir falar, a ela?
- Não. Para que?... Para lhe dizer o que?
- Tudo.
Ega rolou uma poltrona para junto da chaminé, despertou as brasas. E Carlos, ao lado, prosseguiu devagar, olhando o lume:
- Além disso, desejo que ela parta, que parta já para Paris... Seria absurdo ficar em Lisboa... Enquanto se não liquidar o que lhe pertence, hade-se-lhe estabelecer uma mesada, uma larga mesada... Vilaça vem daqui a bocado para falar desses detalhes... Em todo o caso, amanhã, para ela partir, levas-lhe quinhentas libras.
Ega murmurou:
- Talvez para essas questões de dinheiro fosse melhor ir lá o Vilaça...
- Não, pelo amor de Deus! Para que se há de fazer corar a pobre criatura diante do Vilaça?...
Houve um silêncio. Ambos olhavam a chama clara que bailava.
- Custa-te muito, não é verdade, meu pobre Ega?...
- Não... Começo a estar embotado. É fechar os olhos, tragar mais essa má hora, e depois descansar. Quando voltas tu de Santa Olavia?
Carlos não sabia. Contava que Ega, terminada essa missão à rua de S. Francisco, fosse aborrecer-se uns dias com ele a Santa Olavia. Mais tarde era necessário trasladar para lá o corpo do avô...
- E passado isso, vou viajar... Vou à América, vou ao Japão, vou fazer esta coisa estúpida e sempre eficaz que se chama distrair...
Encolheu os ombros, foi devagar até à janela, onde morria palidamente um raio de sol na tarde que clareara. Depois voltando para o Ega, que de novo remexia os carvões:
Eu, está claro, não me atrevo a dizer-te que venhas, Ega... Desejava bem, mas não me atrevo!
Ega pousou devagar as tenazes, ergueu-se, abriu os braços para Carlos, comovido:
- Atreve, que diabo... Porque não?
- Então vem!
Carlos pusera nisto toda a sua alma. E ao abraçar o Ega corriam-lhe na face duas grandes lágrimas.
Então Ega reflectiu. Antes de ir a Santa Olavia precisava fazer uma romagem à quinta de Celorico. O Oriente era caro. Urgia pois arrancar à mãe algumas letras de credito... E como Carlos pretendia ter «bastante para o luxo de ambos», Ega atalhou muito sério:
- Não, não! Minha mãe também é rica. Uma viagem à América e ao Japão são formas de educação. E a mamã tem o dever de completar a minha educação. O que aceito, sim, é uma das tuas malas de couro...
Quando nessa noite, acompanhados pelo Vilaça, Carlos e Ega chegaram à estação de Santa Apolónia, o comboio ia partir. Carlos mal teve tempo de saltar para o seu compartimento reservado - enquanto o Baptista, abraçado ás mantas de viagem, empurrado pelo guarda, se içava desesperadamente para outra carruagem, entre os protestos dos sujeitos que a atulhavam. O trem imediatamente rolou. Carlos debruçou-se à portinhola, gritando ao Ega: - «Manda um telegrama amanhã a dizer o que houve!»
Recolhendo ao Ramalhete com o Vilaça, que ia nessa noite coligir e selar os papéis de Afonso da Maia, Ega falou logo nas quinhentas libras que ele devia entregar na manhã seguinte a Maria Eduarda. Vilaça recebera com efeito essa ordem de Carlos. Mas francamente, entre amigos, não lhe parecia excessiva a soma, para uma jornada? Além disso Carlos falara em estabelecer a essa senhora uma mesada de quatro mil francos, cento e sessenta libras! Não achava também exagerado? Para uma mulher, uma simples mulher...
Ega lembrou que essa simples mulher tinha direito legal a muito mais...
- Sim, sim, resmungou o procurador. Mas tudo isso de legalidade tem ainda de ser muito estudado. Não falemos nisso. Eu nem gosto de falar disso!...
Depois como Ega aludia à fortuna que deixava Afonso da Maia - Vilaça deu detalhes. Era decerto uma das boas casas de Portugal. Só o que viera da herança de Sebastião da Maia, representava bem quinze contos de renda. As propriedades do Alentejo, com os trabalhos que lá fizera o pai dele Vilaça, tinham triplicado de valor. Santa Olavia era uma despesa. Mas as quintas ao pé de Lamego, um condado.
- Há muito dinheiro! exclamou ele com satisfação, batendo no joelho do Ega. E isto, amigo, digam lá o que disserem, sempre consola de tudo.
- Consola de muito, com efeito.
Ao entrar no Ramalhete, Ega sentia uma longa saudade pensando no lar feliz e amável que ali houvera e que para sempre se apagara. Na ante-câmara, os seus passos já lhe pareceram soar tristemente como os que se dão numa casa abandonada. Ainda errava um vago cheiro de incenso e de fenol. No lustre do corredor havia uma luz só e dormente.
- Já anda aqui um ar de ruína, Vilaça.
- Ruínasinha bem confortável, todavia murmurou o procurador dando um olhar ás tapeçarias e aos divãs, e esfregando as mãos, arrepiado da friagem da noite.
Entraram no escritório de Afonso, onde durante um momento se ficaram aquecendo ao lume.O relógio Luís XV bateu finalmente as nove horas - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um instante e morreu. Vilaça preparou-se para começar a sua tarefa. Ega declarou que ia para o quarto arranjar também a sua papelada, fazer a limpeza final de dois anos de mocidade...
Subiu. E pousara apenas a luz sobre a cómoda, quando sentiu ao fundo, no silêncio do corredor, um gemido longo, desolado, duma tristeza infinita. Um terror arrepiou-lhe os cabelos. Aquilo arrastava-se, gemia no escuro, para o lado dos aposentos de Afonso da Maia. Por fim, reflectindo que toda a casa estava acordada, cheia de criados e de luzes, Ega ousou dar alguns passos no corredor, com o castiçal na mão tremula.
Era o gato! Era o reverendo Bonifácio, que, diante do quarto de Afonso, arranhando a porta fechada, miava doloridamente. Ega escorraçou-o, furioso. O pobre Bonifácio fugiu, obeso e lento, com a cauda fofa a roçar o chão: mas voltou logo e esgatanhando a porta, roçando-se pelas pernas do Ega, recomeçou a miar, num lamento agudo, saudoso como o duma dor humana, chorando o dono perdido que o acariciava no colo e que não tornara a aparecer.
Ega correu ao escritório a pedir ao Vilaça que dormisse essa noite no Ramalhete. O procurador acedeu, impressionado com aquele horror do gato a chorar. deixara o montão de papéis sobre a mesa, voltara a aquecer os pés ao lume dormente. E voltando-se para o Ega, que se sentara, ainda todo pálido, no sofá bordado a matiz, antigo lugar de D. Diogo, murmurou devagar, gravemente:
- Há três anos, quando o Sr. Afonso me encomendou aqui as primeiras obras, lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete. O Sr. Afonso da Maia riu de agouros e lendas... Pois fatais foram!
No dia seguinte, levando os papéis da Monforte e o dinheiro em letras e libras que Vilaça lhe entregara à porta do Banco de Portugal, Ega, com o coração aos pulos, mas decidido a ser forte, a afrontar a crise serenamente, subiu ao primeiro andar da rua de S. Francisco. O Domingos, de gravata preta, movendo-se em pontas de pés, abriu o reposteiro da sala. E Ega pousára apenas sobre o sofá a velha caixa de charutos da Monforte - quando Maria Eduarda entrou, pálida, toda coberta de negro, estendendo-lhe as mãos ambas.
- Então Carlos?
Ega balbuciou:
- Como V. Exc.ª pode imaginar, num momento destes... Foi horrível, assim de surpresa...
Uma lágrima tremeu nos olhos pisados de Maria. Ela não conhecia o Sr. Afonso da Maia, nem sequer o vira nunca. Mas sofria realmente por sentir bem o sofrimento de Carlos... O que aquele rapaz estremecia o avô!
- Foi de repente, não?
Ega retardou-se em longos detalhes. Agradeceu a coroa que ela mandara. Contou os gemidos, a aflição do pobre Bonifácio...
- E Carlos? repetiu ela.
- Carlos foi para Santa Olavia, minha senhora.
Ela apertou as mãos, numa surpresa que a acabrunhava. Para Santa Olavia! E sem um bilhete, sem uma palavra?... Um terror empalidecia-a mais, diante daquela partida tão arrebatada, quasi parecida com um abandono. Terminou por murmurar, com um ar de resignação e de confiança que não sentia:
- Sim, com efeito, neste momento não se pensa nos outros...
Duas lágrimas corriam-lhe devagar pela face. E diante desta dor, tão humilde e tão muda, Ega ficou desconcertado. Durante um instante, com os dedos trémulos no bigode, viu Maria chorar em silêncio. Por fim ergueu-se, foi à janela, voltou, abriu os braços diante dela numa aflição:
- Não, não é isso, minha querida senhora! Há outra coisa, há ainda outra coisa! Tem sido para nós dias terríveis! Tem sido dias de angustia...
Outra coisa?... Ela esperava, com os olhos largos sobre o Ega, a alma toda suspensa.
Ega respirou fortemente:
- V. Exc.ª lembra-se dum Guimarães, que vive em Paris, um tio do Dâmaso?
Maria, espantada, moveu lentamente a cabeça.
- Esse Guimarães era muito conhecido da de V. Exc.ª não é verdade?
Ela teve o mesmo movimento breve e mudo. Mas o pobre Ega hesitava ainda, com a face arrepanhada e branca, num embaraço que o dilacerava:
- Eu falo em tudo isto, minha senhora, porque Carlos assim me pediu... Deus sabe o que me custa!... E é horrível, nem sei por onde hei de começar...
Ela juntou as mãos, numa suplica, numa angustia:
- Pelo amor de Deus!
E nesse instante, muito sossegadamente, Rosa erguia uma ponta do reposteiro, com Niniche ao lado e a sua boneca nos braços. A mãe teve um grito impaciente:
- Vai lá para dentro! deixa-me!
Assustada, a pequena não se moveu mais, com os lindos olhos de repente cheios de água. O reposteiro caiu, do fundo do corredor veio um grande choro magoado.
Então Ega teve só um desejo, o desesperado desejo de findar.
- V. Exc.ª conhece a letra de sua mãe, não é verdade?... Pois bem! Eu trago aqui uma declaração dela a seu respeito... Esse Guimarães é que tinha este documento, com outros papéis que ela lhe entregou em 71, nas vésperas da guerra... Ele conservou-os até agora, e queria restituir-lhos, mas não sabia onde V. Exc.ª vivia. Viu-a há dias numa carruagem, comigo, e com o Carlos... Foi ao pé do Aterro, V. Exc.ª deve lembrar-se, defronte do alfaiate, quando vínhamos da Toca... Pois bem! o Guimarães veio imediatamente ao procurador dos Maias, deu-lhe esses papéis, para que os entregasse a V. Exc.ª... E nas primeiras palavras que disse, imagine o assombro de todos, quando se entreviu que V. Exc.ª era parenta de Carlos, e parenta muito chegada...
Atabalhoara esta história de pé, quasi dum fôlego, com bruscos gestos de nervoso. Ela mal compreendia, lívida, num indefinido terror. Só pôde murmurar muito debilmente: «Mas...» E de novo emudeceu, assombrada, devorando os movimentos do Ega que, debruçado sobre o sofá, desembrulhava a tremer a caixa de charutos da Monforte. Por fim voltou para ela com um papel na mão, atropelando as palavras numa debandada:
- A mãe de V. Exc.ª nunca lho disse... Havia um motivo muito grave... Ela tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido... Digo isto assim brutalmente, perdoe-me V. Exc.ª mas não é o momento de atenuar as coisas... Aqui está! V. Exc.ª conhece a letra de sua mãe. É dela esta letra, não é verdade?
- É! exclamou Maria, indo arrebatar o papel.
- Perdão! gritou Ega, retirando-lho violentamente. Eu sou um estranho! E V. Exc.ª não se pode inteirar de tudo isto enquanto eu não sair daqui.
Fora uma inspiração providencial, que o salvava de testemunhar o choque terrível, o horror das coisas que ela ia saber. E insistiu. Deixava-lhe ali todos os papéis que eram de sua mãe. Ela leria, quando ele saísse, compreenderia a realidade atroz... Depois, tirando do bolso os dois pesados rolos de libras, o sobrescrito que continha a letra sobre Paris, pôs tudo em cima da mesa, com a declaração da Monforte.
- Agora só mais duas palavras. Carlos pensa que o que V. Exc.ª deve fazer já é partir para Paris. V. Exc.ª tem direito, como sua filha há de ter, a uma parte da fortuna desta família dos Maias, que agora é a sua... Neste masso que lhe deixo está uma letra sobre Paris para as despesas imediatas... O procurador de Carlos tomou já um wagon-salão. Quando V. Exc.ª decidir partir, peço-lhe que mande um recado ao Ramalhete para eu estar na gare... Creio que é tudo. E agora devo deixa-la...
Agarrara rapidamente o chapéu, veio tomar-lhe a mão inerte e fria:
- Tudo é uma fatalidade! V. Exc.ª é nova, ainda lhe resta muita coisa na vida, tem a sua filha a consola-la de tudo... Nem lhe sei dizer mais nada!
Sufocado, beijou-lhe a mão que ela lhe abandonou, sem consciência e sem voz, de pé, direita no seu negro luto, com a lívidez parada dum mármore. E fugiu.
- Ao telegrafo! gritou em baixo ao cocheiro.
Foi só na rua do Ouro que começou a serenar, tirando o chapéu, respirando largamente. E ia então repetindo a si mesmo rodas as consolações que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o seu pecado fora inconsciente; o tempo acalma toda a dor; e em breve, já resignada, encontrar-se-hia com uma família séria, uma larga fortuna, nesse amável Paris, onde uns lindos olhos, com algumas notas de mil francos, têm sempre um reinado seguro...
- É uma situação de viúva bonita e rica, terminou ele por dizer alto no coupé. Há pior na vida.
Ao sair do telegrafo despediu a tipóia. Por aquela luz consoladora do dia de inverno, recolheu a pé para o Ramalhete, a escrever a longa carta que prometera a Carlos. Vilaça já lá estava instalado, com um boné de veludilho na cabeça, emassando ainda os papéis de Afonso, liquidando as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumaram junto do lume, na sala Luís XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo, numa carruagem, procurava o Sr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo Maria, alguma resolução desesperada. Vilaça ainda teve a esperança dela trazer alguma nova revelação, que tudo mudasse, salvasse da «bolada»... Ega desceu a tremer. Era Melanie numa tipóia de praça, abafada numa grande ulster com uma carta de Madame.
Á luz da lanterna Ega abriu o envelope, que trazia apenas um cartão branco, com estas palavras a lápis: «Decidi partir amanhã para Paris.»
Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora. Galgou logo as escadas: e seguido de Vilaça, que ficara na ante-câmara à espreita, correu ao escritório de Afonso, a escrever a Maria. Num papel tarjado de luto dizia-lhe (além de detalhes sobre bagagens)- que o wagon-salão estava tomado até Paris, e que ele teria a honra de a ver em Santa Apolónia. Depois, ao fazer o sobrescrito, ficou com a pena no ar, num embaraço. Devia pôr «Madame Mac-Gren» ou «D. Maria Eduarda da Maia?» Vilaça achava preferível o antigo nome, porque ela legalmente ainda não era Maia. Mas, dizia o Ega atrapalhado, também já não era Mac-Gren...
-Acabou-se! Vai sem nome. Imagina-se que foi esquecimento...
Levou assim a carta, dentro do sobrescrito em branco. Melanie guardou-a no regalo. E, debruçada portinhola, entristecendo a voz, desejou saber, da parte de Madame, onde estava enterrado o avô do senhor...
Ega ficou com o monóculo sobre ela, sem sentir bem se aquela curiosidade de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu uma indicação. Era nos Prazeres, à direita, ao fundo, onde havia um anjo com uma tocha. O melhor seria perguntar ao guarda pelo jazigo dos Snrs. Vilaças.
- Merci, monsieur, bien le bonsoir.
- Bonsoir, Melanie!
No dia seguinte, na estação de Santa Apolónia, Ega, que viera cedo com o Vilaça, acabava de despachar a sua bagagem para o Douro, quando avistou Maria que entrava trazendo Rosa pela mão. Vinha toda envolta numa grande peliça escura, com um véu dobrado, espesso como uma mascara: e a mesma gaze de luto escondia o rostosinho da pequena, fazendo-lhe um laço sobre a touca. Miss Sarah, numa ulster clara de quadrados, sobraçava um masso de livros. Atrás o Domingos, com olhos muito vermelhos, segurava um rolo de mantas, ao lado de Melanie carregada de preto que levava Niniche ao colo. Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço, em silêncio, ao wagon-salão que tinha todas as cortinas cerradas. Junto do estribo ela tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe a mão.
- Ainda nos vemos no Entroncamento, murmurou Ega. Eu sigo também para o Norte.
Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao ver sumir-se naquela carruagem de luxo, fechada, misteriosa, uma senhora que parecia tão bela, de ar tão triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a portinhola, o Neves, o da Tarde e do Tribunal de Contas, rompeu de entre um rancho, arrebatou-lhe o braço com sofreguidão:
- Quem é?
Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cair no ouvido, já muito adiante, tragicamente:
- Cleópatra!
O político, furioso, ficou rosnando: «Que asno!...» Ega abalara. Junto do seu compartimento Vilaça esperava, ainda deslumbrado com aquela figura de Maria Eduarda, tão melancólica e nobre. Nunca a vira antes. E parecia-lhe uma rainha de romance.
- Acredite o amigo, fez-me impressão! Caramba, bela mulher! Dá-nos uma bolada, mas é uma soberba praça!
O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com um lenço de cores sobre a face. E o Neves, o conselheiro do Tribunal de Contas, ainda furioso, vendo o Ega à portinhola, atirou-lhe de lado, disfarçadamente, um gesto obsceno.
No Entroncamento Ega veio bater nos vidros do salão que se conservava fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sarah lia a um canto, com a cabeça numa almofada. E Niniche assustada ladrou.
- Quer tomar alguma coisa, minha senhora?
- Não, obrigada...
Ficaram calados, enquanto Ega com o pé no estribo tirava lentamente a charuteira. Na estação mal alumiada passavam saloios, devagar, abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a máquina resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do salão, com olhares curiosos e já lânguidos para aquela magnífica mulher, tão grave e sombria, envolta na sua peliça negra.
- Vai para o Porto? murmurou ela.
- Para Santa Olavia...
- Ah!
Então Ega balbuciou com os beiços a tremer:
- Adeus!
Ela apertou-lhe a mão com muita força, em silêncio, sufocada.
Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a tiracolo que corriam a beber à cantina. Á porta do bufete voltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé, moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim que ele pela derradeira vez na vida viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, à portinhola daquele wagon que para sempre a levava.


Capítulo XVIII
Semanas depois, nos primeiros dias de ano novo, a Gazeta Ilustrada trazia na sua coluna do High-life esta noticia: «O distinto e brilhante sportman, o Sr. Carlos da Maia, e o nosso amigo e colaborador João da Ega, partiram ontem para Londres, de onde seguirão em breve para a América do Norte, devendo daí prolongar a sua interessante viagem até ao Japão. Numerosos amigos foram a bordo do Tamar despedir-se dos simpáticos touristes. Vimos entre outros os Srs. ministro da Finlândia e seu secretario, o marquês de Souzela, conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Guilherme Craft, Teles da Gama, Cruges, Taveira, Vilaça, general Sequeira, o glorioso poeta Tomás de Alencar, etc. etc. O nosso amigo e colaborador João da Ega fez-nos, no ultimo shake-hands, a promessa de nos mandar algumas cartas com as suas impressões do Japão, esse delicioso país de onde nos vem o sol e a moda! É uma boa nova para todos os que prezam a observação e o espírito. Au revoir!»
Depois destas linhas afectuosas (em que o Alencar colaborara) as primeiras noticias dos «viajantes» vieram, numa carta do Ega para o Vilaça, de New-York. Era curta, toda de negócios. Mas ele ajuntava um post-scriptum com o título de Informações gerais para os amigos. Contava aí a medonha travessia desde Liverpool, a persistente tristeza de Carlos, e New-York coberta de neve sob um sol rutilante. E acrescentava ainda: «Está-se apossando de nós a embriaguez das viagens, decididos a trilhar este estreito Universo até que cansem as nossas tristezas. Planeamos ir a Pekin, passar a Grande Muralha, atravessar a Ásia Central, o oásis de Merv, Khiva, e penetrar na Rússia; daí, pela Arménia e pela Síria, descer ao Egipto a retemperar-nos no sagrado Nilo; subir depois a Atenas, lançar sobre a Acrópole uma saudação a Minerva; passar a Nápoles; dar um olhar a Argélia e a Marrocos; e cair enfim ao comprido em Santa Olavia lá para os meados de 79 a descansar os membros fatigados. Não escrevinho mais porque é tarde, e vamos à Ópera ver a Pati no Barbeiro. Larga distribuição de abraços a todos os amigos queridos.»
Vilaça copiou este parágrafo, e trazia-o na carteira para mostrar aos fiéis amigos do Ramalhete. Todos aprovaram, com admiração, tão belas, aventurosas jornadas. Só Cruges, aterrado com aquela vastidão do Universo, murmurou tristemente: «Não voltam cá!»
Mas, passado ano e meio, num lindo dia de março, Ega reapareceu no Chiado. E foi uma sensação! Vinha esplêndido, mais forte, mais trigueiro, soberbo de verve, num alto apuro de toilete, cheio de histórias e de aventuras do Oriente, não tolerando nada em arte ou poesia que não fosse do Japão ou da China, e anunciando um grande livro, o «seu livro», sob este título grave de crónica heróica - Jornadas da Ásia.
- E Carlos?...
Magnífico! Instalado em Paris, num delicioso apartamento dos Campos-Elíseos, fazendo a vida larga dum príncipe artista da Renascença...
Ao Vilaça porém, que sabia os segredos, Ega confessou que Carlos ficara ainda abalado. Vivia, ria, governava o seu faeton no Bois - mas lá no fundo do seu coração permanecia, pesada e negra, a memória da «semana terrível».
Todavia os anos vão passando, Vilaça, acrescentou ele. E com os anos, a não ser a China, tudo na terra passa...
E esse ano passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros anos passaram.
Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, a casa dum amigo seu de Paris, o marquês de Vila-Medina. E dessa propriedade dos Vila-Medina, chamada La Soledad, escreveu para Lisboa ao Ega anunciando que - depois dum exílio de quasi dez anos, resolvera vir ao velho Portugal ver as árvores de Santa Olavia e as maravilhas da Avenida. De resto tinha uma formidável nova, que assombraria o bom Ega: e se ele já ardia em curiosidade, que viesse ao seu encontro com o Vilaça, comer o porco a Santa Olavia.
- Vai casar! pensou Ega.
Havia três anos (desde a sua ultima estada em Paris) que ele não via Carlos. Infelizmente não pôde correr a Santa Olavia, retido num quarto do Braganza com uma angina, desde uma ceia prodigiosamente divertida com que celebrara no Silva a noite de Reis. Vilaça, porém, levou a Carlos para Santa Olavia uma carta em que o Ega, contando a sua angina, lhe suplicava que se não retardasse com o porco nesses penhascos do Douro, e que voasse à grande Capital a trazer a grande nova.
Com efeito, Carlos pouco se demorou em Resende. E numa luminosa e macia manhã de janeiro de 1887, os dois amigos enfim juntos almoçavam num salão do Hotel Braganza, com as duas janelas abertas para o rio.
Ega, já curado, radiante, numa excitação que não se calmava, alagando-se de café, entalava a cada instante o monóculo para admirar Carlos e a sua «imutabilidade».
- Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra de fadiga!... Tudo isso é Paris, menino!... Lisboa arrasa. Olha para mim, olha para isto!
Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do nariz, na face chupada. E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma calva que começara havia dois anos, alastrara, já reluzia no alto.
- Olha este horror! A ciência para tudo acha um remédio, menos para a calva! Transformam-se as civilizações, a calva fica!... Já tem tons de bola de bilhar, não é verdade?... De que será?
- É a ociosidade, lembrou Carlos rindo.
- A ociosidade... E tu, então?
De resto, que podia ele fazer neste país?... Quando voltara de França, ultimamente, pensara em entrar na diplomacia. Para isso sempre tivera a blague: e agora que a mamã, coitada, lá estava no seu grande jazigo em Celorico, tinha a massa. Mas depois reflectira. Por fim, em que consistia a diplomacia portuguesa? Numa outra forma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da própria insignificância. Antes o Chiado!
E como Carlos lembrava a Política, ocupação dos inúteis, Ega trovejou. A política! Isso tornara-se moralmente e fisicamente nojento, desde que o negócio atacara o constitucionalismo como uma filoxera! Os políticos hoje eram bonecos de engonços, que faziam gestos e tomavam atitudes porque dois ou três financeiros por traz lhes puxavam pelos cordéis... Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Aí é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não se lavavam, não limpavam as unhas... Coisa extraordinária, que em país algum sucedia, nem na Roménia, nem na Bulgária! Os três ou quatro salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem for, largamente, excluem a maioria dos políticos. E porque? Porque as senhoras têm nojo!
- Olha o Gouvarinho! Vê lá se ele recebe ás terças-feiras os seus correligionários...
Carlos que sorria, encantado com aquela veia acerba do Ega, saltou na cadeira:
- É verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho?
Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A condessa herdara uns sessenta contos de uma tia excêntrica que vivia a Santa Isabel, tinha agora melhores carruagens, recebia sempre ás terças-feiras. Mas sofria uma doença qualquer, grave, no fígado ou no pulmão. Ainda elegante todavia, muito séria, uma terrível flor de pruderie... Ele, o Gouvarinho, aí continuava, palrador, escrevinhador, políticote, empertigadote, já grisalho, duas vezes ministro, e coberto de gran-cruzes...
- Tu não os viste em Paris, ultimamente?
- Não. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham partido na véspera para Vichy...
A porta abriu-se, um brado cavo ressoou:
- Até que enfim, meu rapaz!
- Oh Alencar! gritou Carlos, atirando o charuto.
E foi um infinito abraço, com palmadas arrebatadas pelos ombros, e um beijo ruidoso - o beijo paternal do Alencar, que tremia, comovido. Ega arrastara uma cadeira, berrava pelo escudeiro:
- Que tomas tu, Tomás? Cognac? Curaçáo? Em todo o caso café! Mais café! Muito forte, para o Sr. Alencar!
O poeta, no entanto, abismado na contemplação de Carlos, agarrara-o pelas mãos, com um sorriso largo, que lhe descobria os dentes mais estragados. Achava-o magnífico, varão soberbo, honra da raça... Ah! Paris, com o seu espírito, a sua vida ardente, conserva...
- E Lisboa arrasa! acudiu Ega. Já cá tive essa frase. Vá, abanca, aí tens o cafésinho e a bebida!
Mas Carlos agora também contemplava o Alencar. E parecia-lhe mais bonito, mais poético, com a sua grenha inspirada e toda branca, e aquelas rugas fundas na face morena, cavadas como sulcos de carros pela tumultuosa passagem das emoções...
- Estás típico, Alencar! Estás a preceito para a gravura e para a estátua!...
O poeta sorria, passando os dedos com complacência pelos longos bigodes românticos, que a idade embranquecera e o cigarro amarelara. Que diabo, algumas compensações havia de ter a velhice!... Em todo o caso o estômago não era mau, e conservava-se, caramba, filhos, um bocado de coração.
- O que não impede, meu Carlos, que isto por cá esteja cada vez pior! Mas acabou-se... A gente queixa-se sempre do seu país, é habito humano. Já Horácio se queixava. E vocês, inteligência superiores, sabeis bem, filhos, que no tempo de Augusto... Sem falar, é claro, na queda da república, naquele desabamento das velhas instituições... Enfim deixemos lá os Romanos! Que está ali naquela garrafa? Chablis... Não desgosto, no outono, com as ostras. Pois vá lá o Chablis. E à tua chegada, meu Carlos! e à tua, meu João, e que Deus vos dê as glorias que mereceis, meus rapazes!...
Bebeu. Rosnou: «bom Chablis, bouquet fino». E acabou por abancar, ruidosamente, sacudindo para traz a juba branca.»
- Este Tomás! exclamava Ega, pousando-lhe a mão no ombro com carinho. Não há outro, é único! O bom Deus fê-lo num dia de grande verve, e depois quebrou a fôrma.
Ora, histórias! murmurava o poeta radiante. Havia-os tão bons como ele. A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a Bíblia - ou do mesmo macaco como afirmava o Darwin...
- Que, lá essas coisas de evolução, origem das espécies, desenvolvimento da célula, cá para mim... Está claro, o Darwin, o Lamarck, o Spencer, o Claudio Bernard, o Litré, tudo isso, é gente de primeira ordem. Mas acabou-se, irra! Há uns poucos de mil anos que o homem prova sublimemente que tem alma!
- Toma o cafésinho, Tomás! aconselhou o Ega, empurrando-lhe a chávena. Toma o cafésinho!
- Obrigado!... E é verdade, João, lá dei a tua boneca à pequena. Começou logo a beijá-la, a embala-la, com aquele profundo instincto de mãe, aquele quid divino... É uma sobrinhita minha, meu Carlos. Ficou sem mãe, coitadinha, lá a tenho, lá vou tratando de fazer dela uma mulher... Hás-de vê-la. Quero que vocês lá vão jantar um dia, para vos dar umas perdizes à espanhola... Tu demoras-te, Carlos?
- Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de ar da pátria.
- Tens razão, meu rapaz! exclamou o poeta, puxando a garrafa do cognac. Isto ainda não é tão mau como se diz... Olha tu para isso, para esse céu, para esse rio, homem!
- Com efeito é encantador!
Todos três, durante um momento, pasmaram para a incomparável beleza do rio, vasto, lustroso, sereno, tão azul como o céu, esplendidamente coberto de sol.
- E versos? exclamou de repente Carlos, voltando-se para o poeta. Abandonaste a língua divina?
Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia já a língua divina? O novo Portugal só compreendia a língua da libra, da «massa». Agora, filho, tudo eram sindicatos!
- Mas ainda ás vezes me passa uma coisa cá por dentro, o velho homem estremece... Tu não viste nos jornais?... Está claro, não lês cá esses trapos que por aí chamam gazetas... Pois veio aí uma coisita, dedicada aqui ao João. Ora eu ta digo se me lembrar...
Correu a mão aberta pela face escaveirada, lançou à estrofe num tom de lamento:
Luz de esperança, luz de amor,
Que vento vos desfolhou?
Que a alma que vos seguia
Nunca mais vos encontrou!
Carlos murmurou: «Lindo!» Ega murmurou: «Muito fino!» E o poeta, aquecendo, já comovido, esboçou um movimento de asa que foge:
Minh'alma em tempos de outrora,
Quando nascia o luar,
Como um rouxinol que acorda
Punha-se logo a cantar.
Pensamentos era flores,
Que a aragem lenta de Maio...
- O Sr. Cruges! anunciou o criado, entreabrindo a porta.
Carlos ergueu os braços. E o maestro, todo abotoado num paletó claro, abandonou-se à efusão de Carlos, balbuciando:
- Eu só ontem é que soube. Queria-te ir esperar, mas não me acordaram...
- Então continua o mesmo desleixo? exclamava Carlos, alegremente. Nunca te acordam?
Cruges encolhia os ombros, muito vermelho, acanhado, depois daquela longa separação. E foi Carlos que o obrigou a sentar-se ao lado, enternecido com o seu velho maestro, sempre esguio, com o nariz mais agudo, a grunha caindo mais crespa sobre a gola do paletó.
- E deixa-me dar-te os parabéns! Lá soube pelos jornais, o triunfo, a linda ópera-cómica, a Flôr de Sevilha...
- De Granada! acudiu o maestro. Sim, uma coisita para ai, não desgostaram. - Uma beleza! gritou Alencar, enchendo outro copo de cognac. Uma música toda do sul, cheia de luz, cheirando a laranjeira... Mas já lhe tenho dito: «Deixa lá a opereta, rapaz, voa mais alto, faze uma grande sinfonia histórica!» Ainda há dias lhe dei uma ideia. A partida de D. Sebastião para a África. Cantos de marinheiros, atabales, o choro do povo, as ondas batendo... Sublime! Qual, põe-se-me lá com castanholas... Enfim, acabou-se, tem muito talento, e é como se fosse meu filho porque me sujou muita calça!...
Mas o maestro, inquieto, passava os dedos pela grenha. Por fim confessou a Carlos que não se podia demorar, tinha um rendez-vous...
- De amor?
- Não... É o Barradas que me anda atirar o retrato a óleo.
- Com a lira na mão?
- Não, respondeu o maestro, muito sério. Com a batuta... E estou de casaca.
E desabotoou o paletó, mostrou-se em todo o seu esplendor, com dois corais no peitilho da camisa, e a batuta de marfim metida na abertura do colete.
- Estás magnífico! afirmou Carlos. Então outra coisa, vem cá jantar logo. Alencar, tu também, hein? Quero ouvir esses belos versos com sossego... Ás seis, em ponto, sem falhar. Tenho um jantarinho à portuguesa que encomendei de manhã com cozido, arroz de forno, grão de bico, etc., para matar saudades...
Alencar lançou um gesto imenso de desdém. Nunca o cozinheiro do Braganza, francelhote miserável, estaria à altura desses nobres petiscos do velho Portugal. Enfim acabou-se. Seria pontual ás seis para uma grande saúde ao seu Carlos!
- Vocês vão sair, rapazes?
Carlos e Ega iam ao Ramalhete visitar o casarão.
O poeta declarou logo que isso era romagem sagrada. Então ele partia com o maestro. O seu caminho ficava também para o lado do Barradas... Moço de talento, esse Barradas!... Um pouco pardo de cor, tudo por acabar, esborratado, mas uma bela ponta de faisca.
- E teve uma tia, filhos, a Leonor Barradas! Que olhos, que corpo! E não era só o corpo! Era a alma, a poesia, o sacrifício!... Já não há disso, já lá vai tudo. Enfim, acabou-se, ás seis!
- Ás seis, em ponto, sem falhar!
Alencar e o maestro partiram, depois de se munirem de charutos. E daí a pouco Carlos e Ega seguiam também pela rua do Tesouro Velho, de braço dado, muito lentamente.
Iam conversando de Paris, de rapazes e de mulheres que o Ega conhecera, havia quatro anos, quando lá passara um tão alegre inverno nos apartamentos de Carlos. E a surpresa do Ega, a cada nome evocado, era o curto brilho, o fim brusco de toda essa mocidade estouvada. A Lucy Gray, morta. A Conrad, morta... E a Maria Blond? Gorda, emburguesada, casada com um fabricante de velas de estearina. O polaco, o louro? Fugido, desaparecido. Mr. de Menant, esse D. Juan? Sub-prefeito no departamento do Doubs. E o rapaz que morava ao lado, o belga? Arruinado na Bolsa... E outros ainda, mortos, sumidos, afundados no lodo de Paris!
Pois tudo somado, menino, observou Ega, esta nossa vidinha de Lisboa, simples, pacata, corredia, é infinitamente preferível.
Estavam no Loreto; e Carlos parara, olhando, reentrando na intimidade daquele velho coração da capital. Nada mudara. A mesma sentinela sonolenta rondava em torno à estátua triste de Camões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brazões eclesiásticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O Hotel Aliance conservava o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo sol dourava o lagedo; batedores de chapéu à faia fustigavam as pilecas; três varinas, de canastra à cabeça, meneavam os quadris, fortes e ágeis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havaneza, fumavam também outros vadios, de sobrecasaca, politicando.
- Isto é horrível quando se vem de fora! exclamou Carlos. Não é a cidade, é a gente. Uma gente feiíssima, encardida, molenga, reles, amarelada, acabrunhada!...
- Todavia Lisboa faz diferença, afirmou Ega, muito sério. Oh, faz muita diferença! Hás-de ver a Avenida... Antes do Ramalhete vamos dar uma volta à Avenida.
Foram descendo o Chiado. Do outro lado os toldos das lojas estendiam no chão uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados ás mesmas portas, sujeitos que lá deixara havia dez anos, já assim encostados, já assim melancólicos. Tinham rugas, tinham brancas. Mas lá estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas ombreiras, com colarinhos à moda. Depois, diante da livraria Bertrand, Ega, rindo, tocou no braço de Carlos:
- Olha quem ali está, à porta do Baltresqui!
Era o Dâmaso. O Dâmaso, barrigudo, nédio, mais pesado, de flor ao peito, mamando um grande charuto, e pasmaceando, com o ar regaladamente embrutecido dum ruminante farto e feliz. Ao avistar também os seus dois velhos amigos que desciam, teve um movimento para se esquivar, refugiar-se na confeitaria. Mas, insensivelmente, irresistivelmente, achou-se em frente de Carlos, com a mão aberta e um sorriso na bochecha, que se lhe esbraseara.
- Olá, por cá!... Que grande surpresa!
Carlos abandonou-lhe dois dedos, sorrindo também,
indiferente e esquecido.
- É verdade, Dâmaso... Como vai isso?
- Por aqui, nesta sensaboria... E então com demora?
- Umas semanas.
- Estás no Ramalhete?
- No Braganza. Mas não te incomodes, eu ando sempre por fora.
- Pois sim senhor!... Eu também estive em Paris, há três meses, no Continental...
- Ah!... Bem, estimei ver-te, até sempre! Adeus, rapazes. Tu estás bom, Carlos, estás com boa cara!
- É dos teus olhos, Dâmaso.
E nos olhos do Dâmaso, com efeito, parecia reviver a antiga admiração, arregalados, acompanhando Carlos, estudando-lhe por traz a sobrecasaca, o chapéu, o andar, como no tempo em que o Maia era para ele o tipo supremo do seu querido chic «uma dessas coisas que só se vêem lá fora...»
- Sabes que o nosso Dâmaso casou? disse o Ega um pouco adiante, travando outra vez do braço de Carlos.
E foi um espanto para Carlos. O quê! O nosso Dâmaso! Casado!?... Sim, casado com uma filha dos condes de Águeda, uma gente arruinada, com um rancho de raparigas. Tinham-lhe impingido a mais nova. E o óptimo Dâmaso, verdadeira sorte grande para aquela distinta família, pagava agora os vestidos das mais velhas.
- É bonita?
- Sim, bonitinha... Faz aí a felicidade dum rapazote simpático, chamado Barroso.
- O quê, o Dâmaso, coitado...
- Sim, coitado, coitadinho, coitadíssimo... Mas como vês, imensamente ditoso, até tem engordado com a perfídia!
Carlos parara. Olhava, pasmado para as varandas extraordinárias dum primeiro andar, recobertas como em dia de procissão, de sanefas de pano vermelho onde se entrelaçavam monogramas. E ia indagar - quando, de entre um grupo que estacionava ao portal desse prédio festivo, um rapaz de ar estouvado, com a face imberbe cheia de espinhas carnais, atravessou rapidamente a rua para gritar ao Ega, sufocado de riso:
- Se você for depressa ainda a encontra aí abaixo! Corra!
- Quem?
- A Adosinda!... De vestido azul, com plumas brancas no chapéu... Vá depressa... O João Eliseu meteu-lhe a bengala entre as pernas, ia-a fazendo estatelar no chão, foi uma cena... Vá depressa, homem!
Com duas pernadas esguias o rapaz recolheu ao seu rancho - onde todos, já calados, com uma curiosidade de província, examinavam aquele homem de tão alta elegância que acompanhava o Ega e que nenhum conhecia. E Ega, no entanto, explicava a Carlos as varandas e o grupo:
- São rapazes do Turf. É um club novo, antigo Jockey da travessa da Palha. Faz-se lá uma batotinha barata, tudo gente muito simpática... E como vês estão sempre assim preparados, com sanefas e tudo, para se acaso passar por aí o senhor dos Passos.
Depois, descendo para a rua Nova do Almada, contou o caso da Adosinda. Fora no Silva, havia duas semanas, estando ele a cear com rapazes depois de S. Carlos, que lhes aparecera essa mulher inverosímil, vestida de vermelho, carregando sensatamente nos rr, metendo rr em todas as palavras, e perguntando pelo Sr. virrsconde... Qual virrsconde? Ela não sabia bem. Erra um virrsconde que encontrrárra no Crroliseu. Senta-se, oferecem-lhe champagne, e D. Adosinda começa a revelar-se um ser prodigioso. Falavam de política, do ministério e do déficit. D. Adosinda declara logo que conhece muito bem o déficit, e que é um belo rapaz... O déficit belo rapaz - imensa gargalhada! D. Adosinda zanga-se, exclama que já fora com ele a Sintra, que é um perfeito cavalheiro, e empregado no Banco Inglês... O déficit empregado no Banco Inglês - gritos, uivos, urros! E não cessou esta gargalhada continua, estrondosa, frenética, até ás cinco da manhã em que D. Adosinda fora rifada e saíra ao Teles!... Noite soberba!
- Com efeito, disse Carlos rindo, é uma orgia grandiosa, lembra Heliogábalo e o Conde de Orsay...
Então Ega defendeu calorosamente a sua orgia. Onde havia melhor, na Europa, em qualquer civilização? Sempre queria ver que se passasse uma noite mais alegre em Paris, na desoladora banalidade do Grand-Treize, ou em Londres, naquela correcta e massuda sensaboria do Bristol! O que ainda tornava a vida tolerável era de vez em quando uma boa risada. Ora na Europa o homem requintado já não ri, - sorri regeladamente, lividamente. Só nós aqui, neste canto do mundo bárbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bendita e consoladora - a barrigada de riso!
- Que diabo estás tu a olhar?
Era o consultório, o antigo consultório de Carlos - onde agora, pela tabuleta, parecia existir um pequeno atelier de modista. Então bruscamente os dois amigos recaíram nas recordações do passado. Que estúpidas horas Carlos ali arrastara, com a Revista dos Dois Mundos, na espera vã dos doentes, cheio ainda de fé nas alegrias do trabalho!... E a manhã em que o Ega lá aparecera com a sua esplêndida peliça, preparando-se para transformar, num só inverno, todo o velho e rotineiro Portugal!
- Em que tudo ficou!
- Em que tudo ficou! Mas rimos bastante!
Lembras-te daquela noite em que o pobre marquês queria levar ao consultório a Paca, para utilizar enfim o divã, móvel de serralho?...
Carlos teve uma exclamação de saudade. Pobre marquês! Fora uma das suas fortes impressões, nesses últimos anos - aquela morte do marquês, sabida de repente ao almoço, numa banal noticia de jornal!... E através do Rossio, andando mais devagar, recordavam outros desaparecimentos: a D. Maria da Cunha, coitada, que acabara hidrópica; o D. Diogo, casado por fim com a cozinheira; o bom Sequeira, morto uma noite numa tipóia ao sair dos cavalinhos...
- E outra coisa, perguntou Ega. Tens visto o Craft em Londres?
- Tenho, disse Carlos. Arranjou uma casa muito bonita ao pé de Richmond... Mas está muito avelhado, queixa-se muito do fígado. E, desgraçadamente, carrega de mais nos álcoois. É uma pena!
Depois perguntou pelo Taveira. Esse lindo moço, contou o Ega, tinha agora por cima mais dez anos de Secretaria e de Chiado. Mas sempre apurado, já um bocado grisalho, metido continuamente com alguma espanhola, dando bastante a lei em S. Carlos, e murmurando todas as tardes na Havaneza, com um ar doce e contente - «isto é um país perdido»! Enfim um bom tiposinho de lisboeta fino.
- E a besta do Steinbroken?
- Ministro em Atenas, exclamou Carlos, entre as ruínas clássicas!
E esta ideia do Steinbroken, na velha Grécia, divertiu-os infinitamente. Ega imaginava já o bom Steinbroken, teso nos seus altos colarinhos, afirmando a respeito de Sócrates, com prudência: «Oh, il est très fort, il est excessivement fort!» Ou ainda, a propósito da batalha das Termópilas, rosnando, com medo de se comprometer: «C'est très grave, c'est excessivement grave!» Valia a pena ir à Grécia para ver!
Subitamente Ega parou:
- Ora aí tens tu essa Avenida! Hein?... Já não é mau!
Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Publico pacato e frondoso - um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço cor de açúcar na vibração fina da luz de inverno: e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguais, os pesados prédios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde nigrejavam piteiras de zinco, e pátios de pedra, quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portões chupavam o cigarro: e aqueles dois hirtos renques de casas ajanotadas lembravam a Carlos as famílias que outrora se imobilizavam em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa «da uma», ouvindo a Banda, com casimiras e sedas, no catitismo domingueiro. Todo o lagedo reluzia como cal nova. Aqui e além um arbusto encolhia na aragem a sua folhagem pálida e rara. E ao fundo a colina verde, salpicado de árvores, os terrenos de Vale de Pereiro, punham um brusco remate campestre àquele curto rompante de luxo barato - que partira para transformar a velha cidade, e estacara logo, com o fôlego curto, entre montões de cascalho.
Mas um ar lavado e largo circulava; o sol dourava a caliça; a divina serenidade do azul sem igual tudo cobria e adoçava. E os dois amigos sentaram-se num banco, junto de uma verdura que orlava a água dum tanque esverdinhada e mole.
Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flores na lapela, a calça apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era toda uma geração nova e miúda que Carlos não conhecia. Por vezes Ega murmurava um olá!, acenava com a bengala. E eles iam, repassavam, com um arzinho tímido e contrafeito, como mal acostumados àquele vasto espaço, a tanta luz, ao seu próprio chic. Carlos pasmava. Que faziam, ali, ás horas de trabalho, aqueles moços tristes, de calça esguia? Não havia mulheres. Apenas num banco adiante uma criatura adoentada, de lenço e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de hospedes, arejavam um cãosinho felpudo. O que atraia pois ali aquela mocidade pálida? E o que sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos...
- Isto é fantástico, Ega!
Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro - modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha... Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado - exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na ponta; - imediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico do alfinete. Por seu lado o escritor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estilo precioso e cinzelado; - imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que lá fora se levanta o nível da instrução; - imediatamente põe no programa dos exames de primeiras letras a metafísica, a astronomia, a filologia, a egiptologia, a cresmatica, a crítica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por aí adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o orador até ao fotografo, desde o jurisconsulto até ao sportman... é o que sucede com os pretos já corrompidos de S. Tomé, que vêem os europeus de lunetas - e imaginam que nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros - para serem imensamente civilizados e imensamente brancos...
Carlos ria:
- De modo que isto está cada vez pior...
- Medonho! É dum reles, dum postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pão que comemos!
Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, num gesto lento:
- Resta aquilo, que é genuíno...
E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da Penha, com o seu casario escorregando pelas encostas ressequidas e tisnadas do sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas eclesiásticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissão, irmandades de opa atulhando os adros, erva doce juncando as ruas, tremoço e fava-rica apregoada ás esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miséria da sua muralha, era o castelo, sórdido e tarimbeiro, de onde outrora, ao som do hino tocado em fagotes, descia a tropa de calça branca a fazer a bernarda! E abrigados por ele, no escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes decrépitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brazões nas paredes rachadas, onde entre a maledicência, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias, caquética e caturra, a velha Lisboa fidalga!
Ega olhou um momento, pensativo:
- Sim, com efeito, é talvez mais genuíno. Mas tão estúpido, tão sebento! Não sabe a gente para onde se há de voltar... E se nos voltamos para nós mesmos, ainda pior!
E de repente bateu no joelho de Carlos, com um brilho na face:
- Espera... Olha quem aí vem!
Era uma vitória, bem posta e correcta, avançando com lentidão e estilo, ao trote estepado de duas éguas inglesas. Mas foi um desapontamento. Vinha lá somente um rapaz muito louro, duma brancura de camélia, com uma penugem no beiço, languidamente recostado. Fez um aceno ao Ega, com um lindo sorriso de virgem. A vitória passou.
- Não conheces?
Carlos procurava, com uma recordação.
- O teu antigo doente! O Charlie!
O outro bateu as mãos. O Charlie! O seu Charlie! Como aquilo o fazia velho!... E era bonitinho!
- Sim, muito bonitinho. Tem aí uma amizade com um velho, anda sempre com um velho... Mas ele vinha decerto com a mãe, estou convencido que ela ficou por aí a passear a pé. Vamos nós ver?
Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avistaram logo foi o Euzebiosinho. Parecia mais fúnebre, mais tísico, dando o braço a uma senhora muito forte, muito corada, que estalava num vestido de seda cor de pinhão. Iam devagar, tomando o sol. E o Euzébio nem os viu, descaído e molengo, seguindo com as grossas lunetas pretas o marchar lento da sua sombra.
- Aquela aventesma é a mulher, contou Ega. Depois de varias paixões em lupanares, o nosso Euzébio teve este namoro. O pai da criatura, que é dono dum prego, apanhou-o uma noite na escada com ela a surripiar-lhe uns prazeres... Foi o diabo, obrigaram-no a casar. E desapareceu, não o tornei a ver... Diz que a mulher que o derreia à pancada.
- Deus a conserve!
- Ámen!
E então Carlos, que recordava a coça no Euzébio, o caso da Corneta, quis saber do Palma Cavalão. Ainda desonrava o Universo com a sua presença, esse benemérito? Ainda o desonrava, disse o Ega. Somente deixara a literatura, e tornara-se factotum do Carneiro, o que fora ministro; levava-lhe a espanhola ao teatro pelo braço; e era um bom empenho em política.
- Ainda há de ser deputado, acrescentou Ega! E, da forma que as coisas vão, ainda há de ser ministro... E isto está-se fazendo tarde, Carlinhos. Vamos nós tomar esta tipóia e abalar para o Ramalhete?
Eram quatro horas, o sol curto de inverno tinha já um tom pálido.
Tomaram a tipóia. No Rossio, Alencar que passava, que os viu - parou, sacudiu ardentemente a mão no ar. E então Carlos exclamou, com uma surpresa que já o assaltara essa manhã no Braganza:
- Ouve cá, Ega! Tu agora pareces íntimo do Alencar! Que transformação foi essa?
Ega confessou que realmente agora apreciava imensamente o Alencar. Em primeiro lugar no meio desta Lisboa toda postiça, Alencar permanecia o único português genuíno. Depois, através da contagiosa intrujice, conservava uma honestidade resistente. Além disso havia nele lealdade, bondade, generosidade. O seu comportamento com a sobrinhita era tocante. Tinha mais cortesia, melhores maneiras que os novos. Um bocado de piteirice não lhe ia mal ao seu feitio lírico. E por fim, no estado a que descambara a literatura, a versalhada do Alencar tomara relevo pela correcção, pela simplicidade, por um resto de sincera emoção. Em resumo, um bardo infinitamente estimável.
- E aqui tens tu, Carlinhos, a que nós chegamos! Não há nada com efeito que caracterize melhor a pavorosa decadência de Portugal, nos últimos trinta anos, do que este simples facto: tão profundamente tem baixado o carácter e o talento, que de repente o nosso velho Tomás, o homem da For de Martírio, o Alencar de Alenquer, aparece com as proporções dum Génio e dum Justo!
Ainda falavam de Portugal e dos seus males quando a tipóia parou. Com que comoção Carlos avistou a fachada severa do Ramalhete, as janelinhas abrigadas à beira do telhado, o grande ramo de girassóis fazendo painel no lugar do estudo de armas! Ao ruído da carruagem, Vilaça apareceu à porta, calçando luvas amarelas. Estava mais gordo o Vilaça - e tudo na sua pessoa, desde o chapéu novo até ao castão de prata da bengala, revelava a sua importância como administrador, quasi directo senhor durante o longo desterro de Carlos, daquela vasta casa dos Maias. Apresentou logo o jardineiro, um velho, que ali vivia com a mulher e o filho, guardando o casarão deserto. Depois felicitou-se de ver enfim os dois amigos juntos. E ajuntou, batendo com carinho familiar no ombro de Carlos:
- Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolónia, fui tomar um banho ao Central e não me deitei. Olhe que é uma grande comodidade o tal sleeping-car! Ah lá isso, em progresso, o nosso Portugal já não está atrás de ninguém!... E V. Exc.ª agora precisa de mim?
- Não, obrigado, Vilaça. Vamos dar uma volta pelas salas... Vá jantar conosco. Ás seis! Mas ás seis em ponto, que há petiscos especiais.
E os dois amigos atravessaram o peristilo. Ainda lá se conservavam os bancos feudais de carvalho lavrado, solenes como coros de catedral. Em cima porém a ante-câmara entristecia, toda despida, sem um móvel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros. Tapeçarias orientais que pendiam como numa tenda, pratos mouriscos de reflexos de cobre, a estátua da Friorenta rindo e arrepiando-se, na sua nudez de mármore, ao meter o pésinho na água - tudo ornava agora os aposentos de Carlos em Paris: e outros caixões empilhavam-se a um canto, prontos a embarcar, levando as melhores faianças da Toca. Depois no amplo corredor, sem tapete, os seus passos soaram como num claustro abandonado. Nos quadros devotos, num tom mais negro, destacava aqui e além, sob a luz escassa, um ombro descarnado de eremita, a mancha lívida duma caveira. Uma friagem regelava. Ega levantara a gola do paletó.
No salão nobre os móveis de brocado cor de musgo estavam embrulhados em lençóis de algodão, como amortalhados, exalando um cheiro de múmia a terebentina e cânfora. E no chão, na tela de Constable, encostada à parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido escarlate de caçadora inglesa, parecia ir dar um passo, sair do caixilho dourado, para partir também, consumar a dispersão da sua raça...
- Vamos embora, exclamou Ega. Isto está lúgubre...
Mas Carlos, pálido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Aí, que era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente acumulados na confusão das artes e dos séculos, como num armazém de bric-à-brac, todos os móveis ricos da Toca. Ao fundo, tapando o fogão, dominando tudo na sua majestade arquitectural, erguia-se o famoso armário do tempo da Liga Hanseática, com os seus Martes armados, as portas lavradas, os quatro Evangelistas pregando aos cantos, envoltos nessas roupagens violentas que um vento de profecia parece agitar. E Carlos imediatamente descobriu um desastre na cornija, nos dois faunos que entre troféus agrícolas tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucólica...
- Que brutos! exclamou ele furioso, ferido no seu amor da coisa de arte. Um móvel destes!...
Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no entanto, errava entre os outros móveis, cofres nupciais, contadores espanhóis, bufetes da Renascença italiana, recordando a alegre casa dos Olivais que tinham ornado, as belas noites de cavaco, os jantares, os foguetes atirados em honra de Leónidas... Como tudo passara! De repente deu com o pé numa caixa de chapéu sem tampa, atulhada de coisas velhas - um véu, luvas desirmanadas, uma meia de seda, fitas, flores artificiais. Eram objectos de Maria, achados nalgum canto da Toca, para ali atirados, no momento de se esvaziar a casa! E, coisa lamentável, entre estes restos dela, misturados como na promiscuidade dum lixo, aparecia uma chinela de veludo bordada a matiz, uma velha chinela de Afonso da Maia! Ega escondeu a caixa rapidamente debaixo dum pedaço solto de tapeçaria. Depois, como Carlos saltava da cadeira, sacudindo as mãos, ainda indignado, Ega apressou aquela peregrinação, que lhe estragava a alegria do dia.
- Vamos ao terraço! Dá-se um olhar ao jardim, e abalamos!
Mas deviam atravessar ainda a memória mais triste, o escritório de Afonso da Maia. A fechadura estava perra. No esforço de abrir a mão de Carlos tremia. E Ega, comovido também, revia toda a sala tal como outrora, com os seus candeeiros Carcel dando um tom cor de rosa, o lume crepitando, o reverendo Bonifácio sobre a pele de urso, e Afonso na sua velha poltrona, de casaco de veludo, sacudindo a cinza do cachimbo contra a palma da mão. A porta cedeu: e toda a emoção de repente findou, na grotesca, absurda surpresa de romperem ambos a espirrar, desesperadamente, sufocados pelo cheiro acre dum pó vago que lhes picava os olhos, os estonteava. Fora o Vilaça, que, seguindo uma receita de almanaque, fizera espalhar ás mãos cheias, sobre os móveis, sobre os lençóis que os resguardavam, camadas espessas de pimenta branca! E estrangulados, sem ver, sob uma névoa de lágrimas, os dois continuavam, um defronte do outro, em espirros aflictivos que os desengonçavam.
Carlos por fim conseguiu abrir largamente as duas portadas duma janela. No terraço morria um resto de sol. E, revivendo um pouco ao ar puro, ali ficaram de pé, calados, limpando os olhos, sacudidos ainda por um ou outro espirro retardado.
- Que infernal invenção! exclamou Carlos, indignado.
Ega, ao fugir com o lenço na face, tropeçara, batera contra um sofá, coçava a canela:
- Estúpida coisa! E que bordoada que eu dei!... Voltou a olhar para a sala, onde todos os móveis desapareciam sob os largos sudários brancos. E reconheceu que tropeçara na antiga almofada de veludo do velho Bonifácio. Pobre Bonifácio! Que fora feito dele?
Carlos, que se sentara no parapeito baixo do terraço, entre os vasos sem flor, contou o fim do reverendo Bonifácio. Morrera em Santa Olavia, resignado, e tão obeso que se não movia. E o Vilaça, com uma ideia poética, a única da sua vida de procurador, mandara-lhe fazer um mausoléu, uma simples pedra de mármore branco, sob uma roseira, debaixo das janelas do quarto do avô.
Ega sentara-se também no parapeito, ambos se esqueceram num silêncio. Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez de inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido que já ninguém ama: uma ferrugem verde de humidade cobria os grossos membros da Vénus Citereia; o cipreste e o cedro envelheciam juntos como dois amigos num ermo; e mais lento corria o prantosinho da cascata, esfiado saudosamente gota a gota na bacia de mármore. Depois ao fundo, encaixilhada como uma tela marinha nas cantarias dos dois altos prédios, a curta paisagem do Ramalhete, um pedaço de Tejo e monte, tomava naquele fim de tarde um tom mais pensativo e triste: na tira de rio um paquete fechado, preparado para a vaga, ia descendo, desaparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; no alto da colina o moinho parara, transido na larga friagem do ar; e nas janelas das casas à beira de água um raio de sol morria, lentamente sumido, esvaído na primeira cinza do crepúsculo, como um resto de esperança numa face que se anuvia.
Então, naquela mudez de saudade e de abandono, Ega, com os olhos para o longe, murmurou devagar:
- Mas tu desse casamento não tinhas a menor indicação, a menor suspeita?
- Nenhuma... Soube-o de repente pela carta dela em Sevilha.
E era esta a formidável nova anunciada por Carlos, a nova que ele logo contara de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abraços, em Santa Apolónia. Maria Eduarda ia casar.
Assim o anunciara ela a Carlos numa carta muito simples, que ele recebera na quinta dos Vila-Medina. Ia casar. E não parecia ser uma resolução tomada arrebatadamente sob um impulso do coração; mas antes um propósito lento, longamente amadurecido. Ela aludia nessa carta a ter «pensado muito, reflectido muito...» De resto o noivo devia ir perto dos cinquenta anos. E Carlos portanto via ali a união de dois seres desiludidos da vida, maltratados por ela, cansados ou assustados do seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades sérias de coração e de espírito, punham em comum o seu resto de calor, de alegria e de coragem para afrontar juntos a velhice...
- Que idade tem ela?
Carlos pensava que ela devia ter quarenta e um ou quarenta e dois anos. Ela dizia na carta «sou apenas mais nova que o meu noivo seis anos e três meses». Ele chamava-se Mr. de Trelain. E era evidentemente um homem de espírito largo, desembaraçado de prejuízos, duma benevolência quasi misericordiosa, porque quisera Maria, conhecendo bem os seus erros.
- Sabe tudo? exclamou Ega, que saltara do parapeito.
- Tudo não. Ela diz que Mr. de Trelain conhecia do seu passado «todos aqueles erros em que ela caíra inconscientemente». Isto dá a entender que não sabe tudo... Vamos andando, que se faz tarde, e quero ainda ver os meus quartos.
Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados pela ala onde cresciam outrora as roseiras de Afonso. Sob as duas olaias ainda existia o banco de cortiça; Maria sentara-se ali, na sua visita ao Ramalhete, a atar num ramo flores que ia levar como relíquia. Ao passar Ega cortou uma pequenina margarida que ainda floria solitariamente.
- Ela continua a viver em Orleans, não é verdade?
Sim, disse Carlos, vivia ao pé de Orleans, numa quinta que lá comprara, chamada Les Rosières. O noivo devia habitar nos arredores algum pequeno château. Ela chamava-lhe «vizinho». E era naturalmente um gentilhome campagnard, de família séria, com fortuna...
Ela só tem o que tu lhe dás, está claro.
- Creio que te mandei contar tudo isso, murmurou Carlos. Enfim ela recusou-se a receber parte alguma da sua herança... E o Vilaça arranjou as coisas por meio duma doação que lhe fiz, correspondente a doze contos de reis de renda...
- É bonito. Ela falava de Rosa na carta?
- Sim, de passagem, que ia bem... Deve estar uma mulher.
- E bem linda!
Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jardim aos quartos de Carlos. Com a mão na porta da vidraça, Ega parou ainda, numa derradeira curiosidade:
- E que efeito te fez isso?
Carlos acendia o charuto. Depois atirando o fósforo por cima da varandinha de ferro onde uma trepadeira se enlaçava:
- Um efeito de conclusão, de absoluto remate. É como se ela morresse, morrendo com ela todo o passado, e agora renascesse sob outra forma. Já não é Maria Eduarda. É Madame de Trelain, uma senhora francesa. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixar memória... Foi o efeito que me fez.
- Tu nunca encontraste em Paris o Sr. Guimarães?
- Nunca. Naturalmente morreu.
Entraram no quarto. Vilaça, na suposição de Carlos vir para o Ramalhete, mandara-o preparar; e todo ele regelava - com o mármore das cómodas espanejado e vazio, uma vela intacta num castiçal solitário, a colcha de fustão vincada de dobras sobre o leito sem cortinados. Carlos pousou o chapéu e a bengaIa em cima da sua antiga mesa de trabalho. Depois, como dando um resumo:
- E aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste quarto, durante noites, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente, com uma conclusão lógica. Por fim dez anos passaram, e aqui estou outra vez...
Parou diante do alto espelho suspenso entre as duas colunas de carvalho lavrado, deu um jeito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente:
- E mais gordo!
Ega espalhava também pelo quarto um olhar pensativo:
- Lembras-te quando apareci aqui uma noite, numa agonia, vestido de Mefistófeles?
Então Carlos teve um grito. E a Raquel, é verdade! A Racial? Que era feito da Racial, esse lírio de Israel?
Ega encolheu os ombros:
- Para aí anda, estuporada...
Carlos murmurou - «coitada! E foi tudo o que disseram sobre a grande paixão romântica do Ega.
Carlos no entanto fora examinar, junto da janela, um quadro que pousava no chão, para ali esquecido e voltado para a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurça na mão, os grandes olhos árabes na face triste e pálida que o tempo amarelara mais. Colocou-o em cima duma cómoda. E atirando-lhe uma leve sacudidela com o lenço:
- Não há nada que me faça mais pena do que não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.
Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enterrara, se, nesses últimos anos, ele não tivera a ideia, o vago desejo de voltar para Portugal...
Carlos considerou Ega com espanto. Para que? Para arrastar os passos tristes desde o Grémio até à Casa Havaneza? Não! Paris era o único lugar da terra congenere com o tipo definitivo em que ele se fixara: - «o homem rico que vive bem». Passeio a cavalo no Bois; almoço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no club com os jornais; um bocado de florete na sala de armas; à noite a Comédie Française ou uma soirée; Trouvile no verão, alguns tiros ás lebres no inverno; e através do ano as mulheres, as corridas, certo interesse pela ciência, o bric-à-brac, e uma pouca de blague. Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agradável.
- E aqui tens tu uma existência de homem! Em dez anos não me tem sucedido nada, a não ser quando se me quebrou o faeton na estrada de Saint-Cloud... Vim no Figaro.
Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
- Falhámos a vida, menino!
- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «vou ser assim, porque a beleza está em ser assim». E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Ás vezes melhor, mas sempre diferente.
Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de inverno. Carlos pôs também o chapéu: e desceram pelas escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panóplias de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que naquela primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residência eclesiástica, com as suas paredes severas, a sua fila de janelinhas fechadas, as grades dos postigos térreos cheias de treva, mudo, para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.
Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:
- É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só ali no Ramalhete ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida - a paixão.
- Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântica, meu Ega!
- E que somos nós? exclamou Ega. Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...
Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...
- Creio que não, disse o Ega. Por fora, à vista, são desconsolar-se. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor...
- Resumo: não vale a pena viver...
- Depende inteiramente do estômago! atalhou Ega.
Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.
- Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rotschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saia deste passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.
- Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva.
E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:
- Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas.
E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e síntese da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!
- Oh, diabo!... E eu que disse ao Vilaça e aos rapazes para estarem no Braganza pontualmente ás seis! Não aparecer por aí uma tipóia!...
- Espera! exclamou Ega. Lá vem um «Americano», ainda o apanhamos.
- Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
- Que raiva ter esquecido o paiosinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma...
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder...
A lanterna vermelha do «Americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o «Americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

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